domingo, 24 de setembro de 2000

As flores e os frutos


Quero que o que eu amo siga vivo
e a ti eu te amei e cantei sobre todas as coisas,
por isso continua florescendo, florida.
Pablo Neruda. 

            Cien sonetos de amor, como outros de seus livros publicados entre 1958 e 1964 é, no dizer de Emir Rodriguez Monegal, o livro das folhas outonais de Pablo Neruda. Um livro que se inscreve nesse momento da vida do poeta em que se revelam as experiências mais complexas e profundas que ele irá aprisionar nas leis do soneto. Não mais aquele soneto clássico, feito para cantar com perfeição a mulher amada mas outro, pleno, também, do poético encontrado no mais chão  cotidiano. Porque Pablo Neruda se apropriando das coisas e dos seres, na sua avidez de existir e no seu poder de forjar maravilhas lhes dá vida com as palavras. Sejam elas oriundas do mais simples e real prosaico, sejam possuidoras da força de sugestão exigida para a elaboração do poético. Fiel a si mesmo, nos Cien sonetos de amor em que a presença da mulher amada se faz de enumerações, de comparações, de metáforas, de confissões, de lembranças, do vislumbrar do futuro, a sua emoção se ampara, ainda uma vez, dos elementos da terra: e âmbar, areia, turquesas, ágata, esmeraldas, metais e cereais e flores e frutos. Referências à acácia, amapola, amaranto, cravo, gardênia, jasmim, madressilva, magnólia, nenúfar, rosa e violeta se espalham pelos sonetos, assim como aquelas a uns poucos frutos: ameixa, amêndoa, laranja, limão, maçã, melancia, pêssego, uva.


            Acácia, amapola, amaranto, gardênia, magnólia, madressilva, nenúfar (exceção feita da madressilva cuja referência é feita ao perfume que exala e da gardênia num verso onde se vislumbram suas inquietações sociais), são expressões que aparecem uma única vez e para delinear Matilde: tens peso de acácia, de legume dourado, e tu irás aparecer em outra estrela,/ determinadamente transitória,/ convertida por fim em amapola, se tinge tua boca de amaranto, oh! radiante magnólia desatada na espuma, deixa que teus quadris imponham na água/ uma nova medida de cisne ou nenúfar.

            Ao jasmim e à violeta são feitas duas referências: numa delas, jasmim com o fogo e com a lua, aparece, no soneto XXIII para dar idéia de um romper da ordem natural das coisas, em outra, para dizer das pegadas de Matilde. E, violeta, num epíteto, significando um amor áspero, violeta coroada de espinhos, e, noutro soneto,  para designar a voz de Matilde, carregada de violetas.

            Quase numa dezena de vezes é a presença do cravo e da rosa: o cravo, usado, sempre, no plural, terá função de espaço (ali onde respiram os cravos), será gosto na boca do poeta, fruto da terra, qualidade de Matilde nos seu desprender de aromas e recompensa (os amantes felizes têm direito a todos os cravos). A palavra rosa aparece tanto no singular quanto no plural. Para descrever o mar e suas ondas ou comparada a uma pedra do mar ou à luz que traz Matilde nas mãos, ou objeto de seus cuidados ou numa comparação em que o poeta reafirma o amor que sente e, ainda, num epíteto para o amor: rosa molhada por sereias e espumas.

            Quanto aos frutos, o poeta repetirá, sobretudo, a palavra uva. Para dizer do estilo de Matilde (estilo de uva grande), para definir o amor e numa comparação em que desditas são comparadas à uvas pequenas que juntaram o verde amargo. Também, repetidas vezes, a palavra maçã: dando-lhe a primazia de poder tocar Matilde: Não te toque a noite, nem o ar, nem a aurora,/só a terra, a virtude dos cachos,/ as maçãs que crescem ouvindo a água pura), e para esboçar um espaço de luz e de liberdade.

Duas vezes aparecerão melancia e laranja. No soneto XX os beijos de Matilde são comparados ao frescor da melancia e no soneto LXXVI, a sua boca é a melancia; no soneto XCIX, o poeta a vê caminhando entre as melancias .Da laranja é a cor da vespa e laranja é, como o relógio, claridade ou  sombra, alvo de despedidas. Limões são luz; pêssegos, como a ágata e o trigo, matérias próprias para erigir a estatua de Matilde. Ameixas são o perfume de sua sombra, amêndoa, a pele que o poeta almeja. Por castanha, a qual acrescenta o adjetivo despenteada, designa a mulher amada.

            Esse curioso emprego do adjetivo, antropomorfizando o fruto se constitui uma das muitas surpresas que oferecem os sonetos nerudianos de Cien sonetos de amor. Mas, há, igualmente, além dessas surpresas ancoradas no inesperado do adjetivo (rosa molhada por sereias e espumas, uvas tempestuosas), as que inventam um mundo de contradições (violetas coroadas de espinho, povoados lancinantes de andrajos e gardênias)  ou que rompem a lógica nesse dizer em que os limões desprendem luz e as sombras, perfumes.

            Assim, num dizer prosaico do dia a dia ou na esmerada riqueza de um verso perfeito, são cores e perfumes e formas que emergem num desabrochar e florescer de emoção para delinear ou homenagear Matilde. E, ao envolvê-la ou entrelaçá-la nesses frutos e nessas flores, dádivas da terra, Pablo Neruda se mostra, como nunca, nos seus melhores e verdadeiros ímpetos de lirismo.
 

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