domingo, 3 de setembro de 2000

Para distrair a elite.


Era difícil acreditar que, no alegre  governo de Juscelino, com a capital da esperança nascendo no cerrado, como uma flor de concreto ou uma ave espacial desenhada por Niemeyer, nordestinos estivessem sendo vendidos como escravos em Minas Gerais. Roberto Drummond. 

         
    O assunto – uma jovem de família que, sem explicações, tudo abandona e se instala num quarto de hotel para viver como prostituta – poderia estar na origem de um personagem de profunda riqueza psicológica ; o meio acanhado e preconceituoso de uma cidadezinha do interior de Minas Gerais, ser motivo para detalhada e devastadora crônica de costumes; a iniciação do narrador na profissão de jornalista, matéria para construir uma narrativa de formação em que se aliam sonhos e fracassos submissos a um pano de fundo de preciso momento histórico. No entanto, Hilda Furacão, quinto romance de Roberto Drummond que a Siciliano de São Paulo publicou em 1991, é um relato feito de breves episódios, leve e cordial no seu cunho anedótico e, definitivamente, longe de se constituir uma obra ficcional em que à composição se aliem qualidades de estilo próprias para que um texto se constitua algo de precursor ou de definitivo no seu gênero. Um episódio, porém, emerge com algo de emoção desse todo ameno e levemente trocista: aquele em que o narrador, entre as lembranças de suas primeiras incursões no jornalismo, destaca a maneira como conseguiu a matéria que lhe abriu as portas de uma carreira vitoriosa. Tem início no vigésimo primeiro texto da quarta parte com o ultimato que recebeu o narrador dos dirigentes do Binômio onde trabalhava: ou achava um assunto tão empolgante quanto descobrir porquê Hilda Gualtieri Von Echveger deixara seu mundo de filha de família, mimada, para viver da venda de seu corpo ou seria dispensado de seus serviços no jornal. Passa, então, a tecer considerações sobre os jornalistas de sua geração, exemplos – e o que se fez de louco num hospício para escrever sobre o que lá se passava; o que passando-se por mendigo, escreve uma reportagem de grande sucesso – e razão para o culto do “repórter heróico”. Logo, o seu achado numa pequena nota do Estado de Minas : a denúncia do deputado estadual Teófilo Pires na Assembléia Legislativa de que nordestinos trazidos em caminhões eram vendidos como escravos em Minas Gerais. Corre para o Binômio, entusiasmando seu dono com a idéia e, na manhã seguinte, acompanhado de um fotógrafo, num antigo avião DC-3 da Panair, voa para Montes Claros, a cidade empoeirada onde se realizavam as inacreditáveis transações. Transações negadas por todos, embora admitindo que muitos caminhões, carregados de retirantes, passassem por ali. Assim, no dia seguinte, logo de manhã, jornalista e fotógrafo se postaram nas aforas da cidade. Quando um caminhão, com placa da Paraíba, lotado de nordestinos passou o seguiram até um curral abandonado onde parou. Homens e mulheres, um velho e uma criança começaram a descer. Explicando que estava interessando num homem para trabalhar na fazenda de seu pai, inicia com o dono do caminhão, o incrível diálogo em que foi tratado preço e desconto na compra de dois homens. Intuindo que a reportagem faria mais furor se ele comprasse um casal assim o fez, pagando quatro mil pelo Manuel, sertanejo típico cuja mão direita tinha um dedo avariado que tentava esconder, e sua mulher Francisca, bem mais nova do que ele, frágil, mulata. Apesar de passarem, a partir desse momento, de terem dono para o todo o sempre, eles estavam exultantes. Na verdade, a vida para eles mudaria, como também mudaria para o jornalista. A reportagem que o Binômio publicou teve grande repercussão nacional e o casal, colmado de presentes, começou a viver um conto de fadas. As fotos tiradas, mostrando o repórter de calça preta e um paletó de linho branco, examinando os nordestinos em fila, a cerca do curral ao fundo  fizeram estardalhaço e, inclusive, a revista Time  publicou a que aparece ao lado de Manuel e Francisca.  Era a glória. Roberto Drummond passara a ser um profissional  de sucesso. De muito sucesso. Como ele diz, com essa matéria havia superado o trabalho de  repórteres de sua geração  no Brasil inteiro. No romance, publicado quase trinta anos  depois, lembra dessas figuras da desgraça que lhe deram fama e prestígio mas que, certamente, jamais foram redimidas: Como esquecer aqueles momentos no curral na periferia de Montes Claros? Como esquecer os olhos de 45 retirantes, homens e mulheres, os olhos de cães famintos implorando que eu os comprasse também?
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



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