domingo, 27 de agosto de 2000

Roteiro das verdades

       Charqueada grande.
Um talho fundo na carne do mapa:
Américas e África margeiam. 
Um navio negreiro como faca:
Mar de sal, sangue e lágrimas no meio. 
Um sol bem tropical ardendo forte,
Ventos alíseos no varal dos juncos
E sal e sol e vento sul no corte
De uma ferida que não seca nunca.
             Oliveira Silveira
  
            Com vinte e um anos, Oliveira Ferreira da Silveira, publicou, em Porto Alegre, em edição do Autor, seu primeiro livro de poemas, Germinou. Seguiram-se muitos outros: Poemas regionais (1968),  Banzo, saudade negra (1970), Décima do negro peão (1974), Praça da palavra (1976), Pêlo escuro (1977). E, em 1981, Roteiro dos tantãs. É uma pequena obra com pouco mais de vinte páginas de sugestiva capa em vermelho e preto sobre fundo branco onde a palavra tantãs aparece dividida nas suas duas sílabas a indicar esse barulho produzido por batidas repetidas. Precedida da palavra roteiro, ocupa a metade da capa que é completada por figuras de tambores, crescendo em diagonal, numa bela criação de Willy Soares da Costa Filho. Reafirmando a composição gráfica, o título a significar um caminho a ser percorrido, um itinerário de tambores, dos seus sons. O primeiro poema, “Tantã”, define esse som: voz do ser, feita das profundezas do chão, do sofrimento que entra nos ouvidos, ecoa no mais íntimo do ser. É a emoção do poeta, confessando as raízes, atendendo ao chamado dos irmãos no poema “Vozes”, descobrindo os seus e se descobrindo no poema “Ancestral”. Uma primeira pessoa que se multiplica nesse encontrar das trágicas origens: malditos objetos/troncos e grilhetas [...] no leste/no mar de imundos tumbeiros. E, no poema “Elo”, enfim, clara, inevitável, definitiva a palavra África, a outra extremidade do cordão: espaço despojado é um ímã que atrai a parte dos humanos que dela foi roubada, provocando neles um desejo de retorno e que se instala no peito do poeta ( mãe/eu quero me repor dentro de ti), resultando daí uma assunção de verdades – ritos, cor da pele, cantos – que o irá igualar aos seus semelhantes do Continente e, então, clamará pelos negros de Cuba, do Haiti, dos Estados Unidos nesse destino comum de sofrimentos e humilhações, marcado, sempre, pelo silêncio. E é este silêncio que Oliveira Silveira, com a tenacidade que faz de seus livros de poemas, Edições do Autor, e com o dom de poetar que lhe foi dado, quer romper. E, do extremo sul do país, nascido que é nos arredores de Rosário, espalha seus versos. Eles se ancoram no repetir de um som – batuque lamento e teimosia – para se fazer testemunho do que foi ( cara lanhada, alma rasgada ,sangue vertido e ultrajado, marcas no punho) e do que é (ser negro e proletário/é levar carga dupla). Para almejar um basta das tristezas ignóbeis e perenes desse presente que é intocável. Como fagulhas, a revolta e a raiva se abrigando nesse ter consciência do próprio fado e do fado dos que o precederam (vítimas da ignomínia, povoando o Continente), a se liberar em palavras ponteagudas de ódio justo, inequívocas nas suas razões, comoventes nesse lirismo que traduz mil vozes.
            Ao todo, são quarenta e dois poemas. Simples, evidentes. Breves narrativas cristalizadas em beleza, reflexões rebeldes, doloridas queixas num poetar em que se alternam versos da  mais cotidiana das linguagens com outros, elaborados e impiedosamente  sugestivos.
            Porque Roteiro dos tantãs sabe o que persegue e, também, é um roteiro das verdades. Dessas que não devem e nem deveriam jamais ter sido  caladas. Principalmente, num país de senzalas.

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