Eram dois meninos.
Um, morava na vila do Maia, nas aforas da cidade; o outro, no casarão azul, em
frente da praça da Matriz. Por acaso ou porque estava escrito, se fizeram
amigos e, ignorando os ralhos e as proibições oriundas dos preconceitos de
classe, brincavam juntos, às escondidas. “Cafuringa”, uma história sem segredos
que a maestria do narrar torna um marcante momento lírico e a sabedoria da
construção do relato, um conto exemplar.
A
narrativa, dividida em quatro tempos, tem início com uma indicação de espaço: a
estrada cheia de pó, os ranchos pobres,
as casas sem cor, os campos secos. E com a apresentação de Cafuringa, ainda não
nominado: miúdo, esgalgado, retinto,
engelhado, vestido com roupas puídas e pouco limpas embora, se saberá
depois, a mãe seja lavadeira. Mas que, de seu mundo, os atalhos escondidos, os
pequenos capões, o vau das sangas, é conhecedor. Tanto quanto do tempo pelo demudar das nuvens, pelo sopro dos ventos, pela cor das águas do rio. Logo, o outro
espaço, o casario branco da cidade. Um outro mundo. Mundo ao qual Cafuringa,
assim era chamado, não tem direito de pertencer senão aquele que ele mesmo se
dá: o de espiar, acocorado num banco da praça, as janelas do casarão onde vive
o seu amigo branco e que um dia lhe dera um doce e um balão vermelho: Zé Maria.
Ele é ruivo, vai à escola e foge da mãe e se esgueira pelo portão para, junto
com Cafuringa, se meter pelos matos vizinhos, estilingue na mão, ou percorrer
os arrabaldes, descobrindo becos e ruelas. Nesse dia de minuano, da janela do
casarão enxergou Cafuringa que da praça espreitava e saiu, para brincar, com a
enorme bola na mão. No descampado, perto do rio, fazendo um de Tostão, outro de
Pelé, jogaram muito, felizes de estarem
juntos, até que a bola, impulsionada por um forte chute, subiu alto e levada
pelo vento caiu nas águas do rio. Zé Maria, medroso de apanhar se a perdesse,
pede para o negrinho ir buscá-la,
ignorando razões: que está dentro do rio, que o rio está cheio de correnteza.
Mas, ao olhar para o amigo, seu rosto cheio de susto, olhos claros derramando
lágrimas, Cafuringa pensa nesse dia em que dele recebera um doce e um balão e
se atira na água gelada ,agüentando o frio que lhe chega no corpo cada vez mais
na tentativa de pegar a bola, sempre levado para mais longe . Antes de perder o
pé no perau e sumir, ainda faz um esforço para gritar: -Amigaço, não deu...
Se
o conto de Jader Chagas Gonçalves (“Caderno de Sábado”, Correio do Povo de Porto Alegre, 22-8-70) impressiona pela terna
figura de Cafuringa no seu desamparo e pobreza e por, a partir dela, traçar o
universo de contrastes que desde sempre determinou a vida no Continente, o seu
texto se impõe, também e muito, por um expressivo uso do adjetivo (mirar reluzente, rancherio escalavrado, casas
desbotadas, campos loucos de ralo)
e um inusual emprego de verbos (as casas
desbotadas, sarapintando de sujo as beiras do caminho, aqui e acolá fumacinhas escafedendo-se de ruídas chaminés pra caírem nas garras do minuano, esbandalhando-se,
e o vento almapenando-se, vara de marmelo silvando na mão nervuda,
vaguevagando pela praça) . Porém, é no
traçar dos perfis que o conto se mostra como genuína expressão do Continente:
Zé Maria, temeroso da perda e, mais ainda do meio para impedi-la que pede ou
ordena a quem julga dever atendê-lo ou obedecer à tarefa impossível; o negrinho que nada possui a não ser a
própria vida, e que paga com ela a alegria, talvez única, certamente efêmera,
de um doce e de um balão.

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