domingo, 13 de agosto de 2000

As glosas de Don Ricardo.


Como um fiapo de palha
que no vento anda perdido
a vida é uma partida
onde é o outro quem embaralha
onde se sobe e se desce
como se fosse um carrossel.

            Cinqüenta anos se passaram desde que o compromisso foi assumido. Francisco R. Bello exercia sua atividade diplomática na Venezuela quando, num passeio com amigos, prometeu glosar em décimas os sextetos de Martin Fierro. Embaixador, professor do Instituto del Servicio Exterior, membro do Consejo Argentino para las Relaciones Internacionales, Deus e a Chancelaria demoraram para lhe dar tempo de realizar o prometido. Assim, somente em 1996, é que, finalmente, publicou, em Buenos Aires, Glosas, por décimas al Martin Fierron  numa edição do Repertorio Latinoamericano,  publicação da qual é Diretor.
 
            São dezessete estrofes do Martin Fierro que dão origem a cento e duas nas quais Ricardo R. Bello não apenas dá provas de sua arte de poetar como de um profundo conhecimento da alma humana. Embora apareçam nesses versos algo que se poderia identificar como auto-biográfico (a sua ida à Venezuela, a amizade em Caracas com o poeta Petro Sotillo, o estar cativo de uma ingrata, o viajar constante, a estada em Washington, o sentir a velhice chegando, a relação com os livros que lê ou que escreve) ou testemunho de seu tempo (troça de um impotente tratamento médico, referência ao big-bang do firmamento, menção às drogas perniciosas e ao colesterol, à insegurança e ao alto custo de vida em Buenos Aires, a mudança de comportamento das mulheres)  sobressai,    sem dúvida, pela argúcia e pela propriedade   a sua  reflexão sobre a vida: “ melhor  do que ter dinheiro/ é ser rico em experiência”; “ podes confiar no  teu Fado/ mas ata bem teu camelo;/ que não te cegue a fagulha/ de um destino afortunado”; “que ninguém se vanglorie/ de ser descobridor/ do mistério do amor/ porque isto tem outra chave”; “o homem de estirpe dura/ altivo e provocador/ somente teme ao amor” Desta reflexão não está isenta uma ou outra confissão: as penas de amor (Por algo sobrevivi;/ se sobrevivo a tua ausência/ e a cruel indiferença/ e a teu desdém e a teu olvido), a alegria de viver (Aqui tenho minha morena/ meu pranto e meu riso, /minha máquina de escrever, meus livros, minha companheira...../ o que vou fazer no céu/ privado de tantos bens? ), a breve  profissão de fé (  minha  liberdade, prefiro meu rancho a parte), a  visão de mundo conservadora ( Serás o que deves ser. Ou então não será nada/ o caminho esta assinalado/desde a hora de nascer/Cada um no seu mister/ tem a razão de trabalhar/ porque o boi tem que arar/ porque a fêmea tem que parir,/ porque o pobre tem que sofrer/ porque o cardo tem que espinhar.

            Na verdade, Ricardo R. Bello escolheu apenas as estrofes de José Hernández que serviriam a seus desígnios  pois, como ele mesmo diz, um diplomata não se mata, trabalhando. Ao glosar cada um dos versos,  fê-lo ao acaso, ao sabor do momento, expressando   idéias e emoções  que não repetem o dizer de Martin Fierro, de seu filho mais velho ou do Sargento Cruz, também vozes do Martin Fierro,  pois, é evidente, tal não foi o seu propósito. Então,  Glosas, por décimas al Martin Fierro não se faz de um tema único, de um relato de andanças e de lutas como é o caso da obra em que se inspira mas de estrofes que dizem – um tema eterno – do homem e de seus sentimentos numa homenagem feita de belo e sábio exercício poético..

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