domingo, 24 de dezembro de 1989

Tempo de crenças e descrenças

            É a história de um operário bêbado que, abandonado pela mulher,  passou a dizer que o santo da igreja conversava com ele.  Uma história real contada por um médico a Carlos Droguett que a transformou em romance: El Compadre, publicado pela Joaquín Mortiz do México, em 1967. Nele, o operário, um carpinteiro, se chama Ramón Neira. Numa fria manhã, é encontrado pela mãe que o procurava, dormindo na igreja, perto da imagem de São Judas Tadeu. Um tempo antes, apaixonado, se casara com Yolanda e fora feliz. Ao sentir que ela começa a  se afastar, prende-se, cada vez,  mais à bebida. Entre o prazer de beber e o andaime, deixa o tempo passar. Seu filho cresce e somente quando já tem oito anos é que Ramón Neira cede aos pedidos de sua mãe e decide batizá-lo. Em honra de Pedro Aguirre, ex-presidente do Chile, lhe dará o nome de Pedro.

            Pedro Aguirre, negando o governo de seu antecessor quis voltar-se para os desprivilegiados do país. Morreu antes de cumprir as promessas feitas e para Ramón Neira sua morte foi o esvair-se de todas as esperanças: se ele não tivesse morrido, teria mudado o mundo. E o “velhinho negro” como era, carinhosamente,  chamado pelos chilenos, será a partir de então, habitante de suas fantasias e de seus pesadelos, fazendo dele, pela segunda vez, um órfão. Seu pai, bêbado, morrera de um balaço; Pedro Aguirre, preconizando mudanças, morrera para que os pobres continuassem na terra porque são eles que devem gastar o sofrimento que existe no mundo.  Os doutores o mataram, diz a mãe para Ramón Neira. Ingenuamente, ele pensa nas injeções  que os doutores lhe aplicaram para provocar a morte. Pobre, como os outros pobres, acreditava que o presidente era bom, acreditava nas coisas importantes que ele havia jurado fazer. E, também, que a felicidade – a visão de Yolanda, tão bonita, quando a viu pela primeira vez no dia do enterro de Pedro Aguirre – era um presente do “velhinho negro”.

            Ramón Neira trabalha em cima do andaime, ao sol e ao vento, bebe para enfrentar os seus dias. Lúcido, ele sabe que é um cidadão sem direitos e sóbrio ou bêbado, ele precisa ter esperanças. Perto dele, a voz discordante da mãe, pequena, enrugada, sofrida. Para ela já não são as ilusões. Nem as da terra, nem as do céu. O “velhinho negro” morreu de pura maldade, diz. Os ricos vão diretamente para o céu e lá são recebidos com todas as honras.

            Porém o carpinteiro é um homem do Continente. Sem crenças o que será dele? E acredita no que lhe é dado perceber. O que não é muito. Diz para a sua mãe: - Era um homem bom, velha. Ela ficou olhando para ele com a cabeça levantada porque ele era muito mais alto  ela o enxergava mais alto; agora., que estava triste, parecia que tinha crescido. – Era um homem rico, filho!.

domingo, 10 de dezembro de 1989

Nos trilhos do trem

            Os trilhos do trem avançando terra a dentro trouxeram para Filisbino Nieto só motivos de sofrimento.

            Instalara-se em Sán José de las Cañas  para viver feliz com Pajita a mulher que escolhera. Mas, os gringos loiros  de olhos azuis, trazendo a estrada de ferro o obrigaram a mudar o rumo de sua vida. Porque, para os ingleses, era imprescindível colocar o teodolito, exatamente, onde estava a parede de seu rancho. E, então, a parede foi derrubada sob a proteção de dois soldados armados de metralhadoras.

            Enquanto isso, o povoado quase inteiro – os que moravam em casas de tijolo, ganhando mais; os que moravam em rancho ganhando menos – trabalhavam na  terraplanagem e comiam carne de cavalo e ervilha em lata que a Companhia punha à venda no seu armazém. Foi assim que Filisbino Nieto viu arruinado seu negócio de tradicional contrabandista.

            Trata-se dele, certamente, e trata-se  de Pajita e do inglês Stirling ou Estirlin  como  era chamado, a história. Formam um insólito triângulo amoroso que se faz e se desfaz sem causar demasiado sofrimento nesses surpreendentes personagens.

            Vagamente esboçados – Pajita tem a pele de canela e o sorriso bem de negra; Estirlin é loiro e só; Filisbino Nieto tem um rosto redondo como um queijo – sobretudo, eles esperam que algo aconteça para lhes mudar a vida. Definem-se por algum gesto, uma ou outra palavra e são parte de um universo em que pouco ou quase nada acontece: o gringo bebe seus tragos diante de uma janela que o deixa olhando longe; Filisbino toma chimarrão; Pajita se distrai comendo um prato de canjica.

            Isto acontece nas primeira páginas de Estado de gracia, um pequeno romance publicado no ano de 1983, em Montevidéu. Número 25 de “Lectores de Banda oriental”, uma coleção de obras cuja venda se destina, exclusivamente, a assinantes, é o segundo livro de Mario Delgado Aparaín. Setenta e cinco páginas de perfeição que desabrocha em cada pequeno episódio, em cada diálogo, no dinamismo de uma narrativa que não desdenha se deter em insignificantes detalhes.
            Mario Delgado Aparaín não abandona em Estado de gracia os principais temas de Literatura Latino-americana: o fantástico, o lúdico, o riso, a  morte, o compromisso com o homem. A partir deles é que irá realizar a aventura de uma escrita de extraordinária criatividade – sem precedentes no Uruguai, diz o crítico Alcides Abella – que se constitui, sem dúvida, uma expressão do Continente.

domingo, 26 de novembro de 1989

Pela saudade

            A cidade de Vera Cruz nasceu com a chegada dos espanhóis na Península de Yucatán. Atualmente, sua Universidade estende-lhe a presença por todo o Continente através de  publicações da área humanística:  Texto Crítico que surgiu sob a direção do uruguaio Jorge Rufinelli e  se constitui uma das mais importantes revistas sobre Literatura Latino-americana e a Coleção “Ficción  Universidad Veracruzana” já, há muitos publicando, em excelentes edições, não somente autores mexicanos, mas, também, aqueles de outros países da América.

            Em 1964, o qüinquagésimo nono volume da coleção é de autoria de Elena Garro: La semana  de los colores. Um livro de onze contos, ancorado num México que emerge, sobretudo, na consciência mestiça, formada pelos valores ibéricos superpostos aos que já existiam antes da chegada dos espanhóis no Continente.

            Solidariedade, traição, expressão de um mundo infantil, os temas universais  se particularizam em La semana de los colores num universo incapaz de fugir daquela dicotomia dramática instaurada nos anos da conquista, verdadeira lei a separar os homens em compartimentos estanques.

            Em quase todos os contos, mundos paralelos coexistem: o dos patrões e dos empregados; o dos adultos e o das crianças; o dos ricos e o dos pobres; o dos brancos e o dos índios.

            No conto “El árbol” se defrontam duas mulheres: Marta e Luiza. Marta, senhora  vestida de negro, colar de pérolas rosadas, solidão dourada numa casa em que as cortinas e os tapetes abafam os ruídos externos. Marta que acreditava, como seus amigos e parentes, que  os índios estavam mais perto dos animais do que dos seres humanos. Diante de Luiza, a índia que lhe bate à porta, ao entardecer, ferida, suja, medrosa, parece ter razão. E o tratamento que lhe dá é o que poderia ser dado, também, a um animal: atender as suas necessidades básicas e  exigir o comportamento adequado.

            Porém, para Luiza, era preciso mais  do que essa eventual caridade. Desamparada, desorientada, procurou refúgio na casa de Marta, branca e rica. Para ela contou  sobre o seu passado de misérias e sobre o crime que a levara à prisão; para ela contou da felicidade sentida, nesses anos de reclusão, em que, pela primeira vez, fora tratada como ser humano. Na cadeia, executara tarefas, se banhara, se alimentara e dançara, o que jamais  havia feito até então: Eu nunca tinha dançado antes, Martinha! A vida do pobre não é baile, mas caminhadas sobres as pedras e fome. Também contou para a branca que a solidão a levara a abraçar-se a uma árvore para confidenciar  seus pecados e suas tristezas e que eles foram tantos e tão cruéis que a árvore tinha secado. E teve medo.

            No desencontro entre as duas vozes, os destinos foram selados. Marta morreu esfaqueada por Luiza. Luiza  apenas desejou reencontrar a prisão e nela os dias felizes que escapavam como água. Quando procurou as antigas companheiras, ao entrar outra vez no cativeiro, não as encontrou. Havia esquecido que, entre a liberdade que fora forçada a aceitar ao término da pena e a prisão que acabava de buscar, se haviam passado vinte e cinco anos.

domingo, 19 de novembro de 1989

Pela honra

            Para lavar sua honra foi que Don Emilio, índio de sessenta anos, apunhalou o mascate.

Don Emilio, marido de Isabel, índia jovem que um dia, ao voltar  do trabalho, entre as mercadorias de um mascate, vê um vestido cor-de-rosa com enfeites brancos e azuis, com rendas, fitas, laços, lantejoulas. Maravilhada, Isabel fica muito tempo olhando, a vontade de possui-lo escorrendo dos olhos. Mas, nada deve ter que não lhe venha do marido.

            Outra vez o mascate na praça, outra vez o vestido diante dos olhos e ofertado mais barato. Isabel se afasta. No terceiro encontro, casual, o mascate indo embora, talvez tocado pelo olhar da índia, lhe dá de presente o vestido. Isabel ainda resiste às lantejoulas, às fitas, às rendas mas pega o vestido e foge.



            E passa a viver com seu delicioso segredo. À noite, quando todos dormem, Isabel põe o vestido e o admira. Depois, o despe e o esconde novamente. No caminho que percorre para levar comida ao marido, se detém, tira o seu vestido velho  põe o novo, cor de rosa, enfeitado. Caminha um trecho, feliz, para voltar a se trocar e continuar seu caminho.

            Mas, a descobrem as velhas do povoado. Corre a notícia de que Isabel tem um vestido recebido de alguém, um vestido exposto junto com as mercadorias do mascate. Inocência, ela jura para o marido. Porém, ele não mais a toca. Bastaram-lhe monossílabos com os velhos índios para saber o que fazer.

            Quando o mascate, novamente, aparece no povoado, don Emilio vai procurá-lo: Venho matá-lo, senhor. Venho para que nos matemos por causa de um vestido. Muita gente o acompanha. Todos sabem porque e como Don Emilio deve fazer o que é preciso. Como em Crônica de uma morte anunciada, ninguém irá impedir o ritual. Ambos levantam o punhal. Para um deles, a luz do sol fica negra.

            Isabel sofre as sanções de um pecado não cometido. Don Emilio, surdo às suas palavras, cego a sua vaidade adolescente, fica preso aos usos das leis patriarcais. Lava uma honra supostamente manchada. O mascate e Isabel parecem culpados e o que havia entre os três, era, apenas, um vestido cor-de-rosa.

            “Isabel es culpable” é um dos contos que compõem o livro El gobierno del cuerpo  (Joaquín Mortiz, 1977) de Ricardo Garabay. Mexicano, nascido em 1923, publicou Beber un cálice, Bellísima bahía, Lo que es de César, La casa que arde de noche e Diálogos mexicanos.

            Clássicos na sua forma ou se aproximando da expressão dinâmica do cinema, os contos de Goberno del cuerpo estão em acorde com a temática que os orienta: as tensões de uma classe média urbana essencialmente preocupada com seus  cotidianos problemas existenciais.

            Exceção do conjunto, o conto “Isabel es culpable”. Um universo distante, em todos os sentidos, dos demais que povoam o livro. O trabalho da terra e o silêncio bastam às duas vidas simples cuja trajetória deveria ser linear. E, simples, e linear se constrói o conto. Parco em palavras, enuncia apenas o perfil de cada personagem, o desejo pueril de Isabel e os atos de Don Emilio e do mascate que se seguirão ao desejo satisfeito.

            Os atos masculinos se inscrevem na tradição. Um procurando dar a morte; outro se defendendo. Ambos aceitando a lei. A mesma lei que impõe à mulher a impotência e a solidão. Silenciosa, submissa, Isabel sem defesa, se refugia na ilusão do vestido.Na arena da vida – mundo masculino – o direito que ela tem de possuir essa ilusão é decidido com punhais.

domingo, 5 de novembro de 1989

Nódoa no paraíso

            Nunca vi um lugar mais belo. Folhas de palmeira tão grandes que servem para cobri o teto das casas. Na praia, milhares de conchinhas nacaradas. E sempre, a mesma sinfonia do canto dos pássaros. Assim descrevia Cristovão Colombo as costas orientais de Cuba oito dias depois de chegar ao Novo Mundo. E, em nome dos reis da Espanha, ele tomou posse da ilha para um domínio que só iria terminar no dia 10 de dezembro de 1898 quando, pela Tratado de Paris, a Espanha, finalmente, a ela renunciou.

            Foi, portanto, numa colônia espanhola que chegou Fredrika Bremer, romancista sueca, autora de várias obras ( La familia, El presidente y sus hijas, Nina, Los vecinos, Herta, La casa), escritas entre 1831 e 1860. Após visitar os Estados Unidos, de Nova Órleans, ela viaja para Cuba. Das cartas que escreve à irmã e nas quais conta a sua descoberta do Continente, cinco tratam de Cuba (  as de número XXXII  à XXXV). Propriedade do Instituto Iberoamericano da Universidade de Gotemburgo, foram traduzidas para o espanhol e publicadas em La Habana pela editora Arte e Literatura, em 1981.

            Embora tenha observado, com muita curiosidade, a arquitetura local em que as casas são pintadas de azul, amarelo, verde ou alaranjado para evitar o brilho da luz sobre as paredes ,e, minuciosamente, descrito a vida familiar e social  e as atividades públicas e comerciais das cidades que visitou, Fredrika Bremer se deixa impressionar, sobretudo, pela maravilhosa natureza dos trópicos que, em tudo, contrasta com as neves de seu país natal.

            Na primeira carta, datada de 5 de fevereiro de 1815, diz que se encontra sob um céu claro e cálido, que o ar é esplêndido e delicioso. Nas páginas seguintes, a emoção de escutar os gorjeios dos pássaros e as vozes das lagartixas que povoam a noite como se fossem cantos de pássaros noturnos; ou o prazer que lhe proporciona a visão de milhares de colibris ao redor das flores coloridas e das palmeiras se movendo ao vento.

            Uma natureza em que o sol aquece, as árvores dão frutos e a lua exibe uma luz rosada Onde  não existe nenhuma planta tóxica, nenhum animal venenoso. Onde nem as abelhas tem veneno no seu aguilhão.

            Mas, para conhecer as plantações de cana e de café, Fredrika Bremer se adentra na ilha. Então, ela testemunha a vida dos escravos, os dias sem descanso, a força do látigo. Senzalas iguais a todas as que povoaram tantos outros territórios do Continente.

            Na embriaguez do ar, na luz radiosa da ilha, no colorida que desabrocha das casas e das flores, irrompe a sombra. A escritora sueca não a elude e se detém no sofrimento dos negros e nas injustiças e maldades dos brancos.

            Porque o homem ibérico fizera sua entrada no paraíso.

domingo, 22 de outubro de 1989

As desventuras de Batman no Chile

            Ele chegou com toda a ingenuidade e pureza de intenções. Veio falando um espanhol aprendido em Porto Rico ou por correspondência: nos momentos difíceis, aí está Batman.

            Juana Sommers, agente da FBI que fizera seu aprendizado nos corpos da Paz, sub-secretária de relações públicas do primeiro administrador dos capitais estrangeiros,  o recebeu emocionadíssima. Seu coração, embora  dotado de músculos de aço, se inflamou como se tivesse sito tocado pela bandeira norte-americana flameando numa festa de formatura. Num helicóptero, fugindo dos jornalistas, ela o conduz para os contatos profissionais necessários; depois, para outros mais íntimos.

            Em mansões com pistas de aterrissagem  e escadas de mármore, providas de corredores e portas secretas, em ambientes com paredes de vidro transparente e luz estroboscópica, Batman tenta, seriamente, entender para quem e em que momento deve lutar.

            Entre Juana Sommers, há sete meses sem apoio psiquiátrico, Willlie Morgan, o inspirador econômico da Revolução Conservadora, ex-presos de Alcaraz  e esquerdistas infiltrados no esquema de segurança, o primeiro e maior problema de Batman foi a falta de respostas para suas perguntas: quem eram no Chile, os verdadeiros representantes da lei e da Ordem? Onde estava o inimigo?

            Com ou sem razão, acabou preso nas malhas de uma lei que não chegou a entender. Apreenderam-lhe seus apetrechos de luta e num deles acharam um pouco de cocaína. Como se isso não bastasse para deixá-lo aturdido, Batman deu-se conta que o poderoso cidadão chileno a quem viera ajudar a dar um fim na  “ditadura do proletariado” era um fora da lei. Depois, tomou conhecimento que o estrangulador que ajudara a mandar para Alcaraz, estava em liberdade e a serviço da CIA, mal passados cinco dos vinte que deveria ficar na prisão. E, tão atônito que chegou a transpirar, ainda escutou Juan Sommers explicando: Nós os corrompemos com o seu próprio dinheiro e ocupamos seus países com seus próprios exércitos porque precisamos dessas guerras parciais para que nossa economia não perca o ritmo de crescimento.

            Entrincheirado na sua convicção – nós combatemos o comunismo- só atinou a pensar que a sua visita a esse país democrático tinha sido extemporânea. Ou tinha chegado cedo demais ou demasiado tarde. Seu único grande feito acabou sendo  o de salvar uma jovenzinha de uma perseguição amorosa indesejável.
            Do Chile, só conheceu uma azulada lua minguante e um pedaço da cordilheira branca de neve . E esses  chilenos, empregados das grandes companhias norte-americanas, gentílíssimos com seus patrões.

            Partiu para encontrar, como a secretária Juan Sommers, um destino inglório, fruto da catarse do romancista.           

            Enrique Lihn, poeta e contista chileno, escreveu essa história que chamou Batman no Chile. Em junho de 1973, ela foi publicada pela Editora De la Flor, de Buenos Aires. No dia 10 de setembro desse mesmo ano, era bombardeado o Palácio de La Moneda em Santiago e assassinado o presidente Salvador Allende.

domingo, 8 de outubro de 1989

Certezas

            Jacques  Stéphen Alexis nasceu no dia 22 de abril de 1922 em Gonaives, Haiti. Para fazê-lo desaparecer, em 1961, a repressão de seu país não somente o cegou e matou mas fez com que até o lugar de seu túmulo ficasse desconhecido. Onde  repousam seus ossos não há uma lápide. Mas, suas obras continuam-lhe a vida.    

Seu primeiro romance foi publicado em 1955, pela Gallimard de Paris: Compère Général Soleil. Teve um reconhecimento unânime da crítica e dois anos depois, publicava Les arbres musiciens e, em 1959, L’espace d’un cillement. Logo no ano seguinte, seu primeiro livro de contos, Romancero aux étoiles. Ao morrer, deixou dois romances inconclusos e um número  muito grande de artigos, ensaios e textos culturais e sócio-políticos.

Dez anos antes, ainda estudante de medicina, havia iniciado um movimento revolucionário que iria abrir caminho para as conquistas democráticas no seu país. No jornal La Colmena,  assinou, regularmente, uma coluna  que tinha por título “Carta a los hombres viejos” onde incitava a juventude a manter-se combativa. Porém, mais uma vez o povo haitiano havia arado no mar, sintetizou Gerard Pierre Charles ao tratar da obra de Jacques Stéphen Alexis porque, na década seguinte, o que fora conquistado desapareceria sob o arbítrio e o escritor  partia para o exílio. Em Paris, se especializa em neurologia e se intensifica a sua paixão pela escrita.

Neste ano de 1989, L’espace d’un cillement  completa trinta anos de publicação.  O título do livro é o mesmo de seu último capítulo. Os anteriores são em número de cinco e cada um é nomeado por  um dos cinco sentidos: a vista, o olfato, a audição, o gosto e o tato. As cinco moradas ( a palavra morada antecede, em caracteres menores o título dos capítulos) serão habitadas por Niña Estrellita e por Caucho. Uma mulher e um homem guiados por uma violenta emoção que tem sua gênese num olhar, em muitos olhares e que se amplia e aprofunda na satisfação de cada um  dos sentidos. Ambos estão imersos num mundo de torpezas e de delações, de exploração do trabalho alheio e do vício do lupanar. A mulher, na plenitude de sua feminilidade erótica e desvairada. O homem, consciente dos significados sociais e da força do proletariado. Verso e reverso da medalha. Para se encontrarem, Niña Estellita parte – como as prostitutas de Bizâncio – em busca da recuperação moral pelo trabalho. Caucho, que a deseja como companheira, acredita nessa reabilitação pois a sua crença no homem, como a do  autor que o criou, é ilimitada. Sai no seu encalço mas, já não a encontra. No seu quarto somente ficaram os moveis e uma grande desordem. No bilhete, a razão de ter ido embora e o desejo de voltar uma verdadeira mulher, digna dele.

 Caucho tem certeza de que a irá encontrar e as últimas linhas do romance atestam a sua esperança.

domingo, 1 de outubro de 1989

Acerto de contas

            Poderia ser o roteiro de uma seqüência de filme americano pela violência e fria precisão com que um dos personagens persegue e elimina o outro.

            O cenário é uma orla marítima. A praia deserta, as dunas, depois a floresta. O barquinho a remo que no cenário se inscreve, tem, no seu bojo, um ser gordo e inexperiente. Vestido de  branco, ele rema com ineficácia, é atirado na praia pelo acaso das ondas e tenta alcançar as dunas, sua meta e salvação. Qualquer de seus gestos são mal esboçados e parece que se  move, somente, porque a isso é induzido pelo barco que lhe vem ao encalço, na busca de um confronto.

            De um personagem, apenas se sabe que é fugitivo, que não sabe nadar e nem  usar um revólver e que, por obeso, não pode correr. O ser gordo, desajeitado, medroso e careca fazem dele o vilão ainda que esteja indefeso diante do outro.

            O perseguidor é calmo, domina as ondas através do remar  dos negros que lhe cumprem as ordens e do rumo do barco. Sua voz é diáfana e seus cabelos, loiros. Sabe que não perderá a presa e espera o momento propício para atirar. Chama-se Van Guld.

            O conto tem por título “En la playa”. O livro no qual foi publicado, Narda o el verano. Salvador  Elizondo é o autor. Mexicano, nascido em 1932, começou a publicar em 1960: Farabeuf o la crónica de un instante que recebeu o prêmio Villaruttias e ao qual se seguiram El hjipogeu secreto, El retrato de Zoe y otras mentiras, Cuaderno de escritura e El grafógrafo. Na Literatura Mexicana ocupa, no dizer de alguns críticos, um lugar ímpar na medida em que nenhum antecedente na Literatura de seu país explica seus textos.

            “ En la Playa”é o segundo dos textos que formam o livro e o melhor deles para o leitor que procura, na ficção,  o postulado que Alejo tão bem sintetizou: a função definitiva do romance consiste em violar constantemente o  princípio ingênuo de ser um  relato destinado a causar prazer estético ao leitor para se tornar um instrumento de indagação, um modo de conhecimento dos homens e de sua época. Porque Salvador Elizondo é, sobretudo, um autor de signos, de composição pura, do abstrato e dos jogos de linguagem.

            A leitura de “En la playa” lembra algum texto do “nouveau roman” francês. O narrador descreve apenas o que vê e nada mais do que isso saberá o leitor. Nem a identidade dos personagens, nem o motivo da perseguição ou o que vai ser desse cadáver que ficou jogado na areia; ou qual o destino do executor que não teme o testemunho dos negros que remam o seu barco e que atira com arma de matar elefante. Preciso, claro, autoritário, afasta-se pelo caminho que veio. Chama-se Van Guld e tem cabelos loiros.

            Certamente, por ter sido sempre  aceitos como bons e justos os seres de raça branca, essas informações orientam simpatias numa experiência trocista do exercício lúdico que tantas vezes se inscreve no texto de Salvador Elizondo.O cadáver do gordo abandonado ao sol carece de importância diante do homem que se afasta do lugar do crime. Como se os cabelos loiros ao vento tivesse feito dele não um assassino mas um justiceiro.

domingo, 10 de setembro de 1989

Um rio imita o Reno cinqüenta anos depois

            Viana Moog nasceu em São Leopoldo, Rio Grande do Sul, às margens do rio dos Sinos, no ano de1906. Iniciou suas atividades jornalísticas no Jornal da Noite, de Porto Alegre, depois da Revolução de 30 mas, sua vida literária começou, verdadeiramente, em 1943, no período em que viveu no norte do país – Amazonas e Piauí – penalizado por ter sido um dos participantes da Revolução Constitucionalista.

            Na Amazônia, escreveu seus dois primeiros livros de ensaio: Heróis da decadência em que reflete sobre   o humor de Petrônio, Cervantes e Machado de Assis e o Ciclo do ouro negro em que interpreta a realidade da Amazônia.

            Quando, em 1934, a anistia, concedida pelo Congresso lhe permite voltar para Porto Alegre, passou a dirigir a Folha da Tarde e de seus textos satíricos sobre a situação político- social do país resultou  o livro  Novas cartas persas. Das obras que se seguiram, destacam-se Tóia, romance cuja ação se passa no México onde Viana Moog viveu mais de dez anos,como presidente da Comissão de Ação Cultura da OEA , Bandeirantes e Pioneiros ( traduzido para o inglês e para o francês) e Um rio imita o Reno.

             O fato de ter escrito um excelente ensaio, Eça de Queirós e o século XIX, induziu, talvez, a alguns críticos o considerarem um discípulo do romancista português. No dizer de Antonio Carlos Villaça, o autor gaúcho torna a fazer do romance uma narrativa a partir da observação da realidade objetivamente vista. Na verdade, não há dúvida que, ao se deter na realidade exterior em Um rio imita o Reno, Viana Moog pouco inventa ao descrever a pequena cidade de Blumental, seus habitantes e a natureza que a circunda. Rotulado de “romance social”, trata-se de uma obra que poderia, também, ser chamada de “romance de idéias”. Porque a história de amor entre o amazonense Geraldo Torres e Lore Wolff, descendente de alemães parece apenas ser motivo para falar de um Brasil onde os imigrantes vieram em busca do futuro e mostrar alguns momentos de sua aculturação.

            Um rio imita o Reno é construído em quatro partes, cujos títulos são as estações do ano. Inicia-se no verão, quando chega à cidade para construir a hidráulica, o engenheiro de pele bronzeada. Da janela do hotel, ele olha a cidade: Blumental dava-lhe a impressão de uma cidade do Reno extraviada em terra americana. Desde o gótico da igreja, até a dura austeridade das fachadas, tudo nela, à exceção do jardim era grave, rígido, tedesco.

            Mal chega, o engenheiro caboclo, como o chama um outro personagem, sente-se atraído pela moça loira: bugre enamorada da deusa branca. A emoção que, por sua vez, provoca em Lore nada significa diante  dos preconceitos da família. Para eles, Geraldo Torres faz parte dos outros, os de raça inferior como diz Frau Marta, a mãe;  os que, fracos, morrem à primeira gripe, como afirma Karl, o irmão.

            Embora a tensão  do romance esteja nesse preconceito racial, o que acaba ficando em primeiro plano são as idéias que fluem das discussões, das opiniões, dos monólogos que expressam   o significado do Brasil para os brasileiros, tanto para os descendentes de europeus    que ainda sentem o Velho Continente e procuram viver como se ali estivessem, como para os que usam sobrenomes portugueses. Tanto no que se refere à aparência física, como no que se refere à visão de mundo, eles são o reverso da moeda.

            Os extremos podem significar uma convivência pacifica entre loiros, morenos, caboclos, mulatos, cafusos, negros, alemães, polacos, teuto-brasileiros, luso-brasileiros ou um repúdio baseado na cor da pele. Ou,  ainda, um desejo de riqueza e progresso, materializado na instalação de indústrias que se opõe ao trabalho artesanal – confecção de redes de tucum ou de objetos de cerâmica – oferecido aos visitantes porque um eventual lucro, originado da venda desses objetos, não faz falta.

            No  outono, se instala a crise que irá afastar o engenheiro; no inverno, a sua partida. Assim como a politicagem não deixará que a hidráulica seja concluída, assim os preconceitos irão impedir a união dos namorados.

            Acreditando na unidade nacional, Viana Moog faz com que um raio de sol penetre no velho casarão dos Wollf e, na primavera, após a chuva, a velha frau Marta não mais se oponha às brincadeiras do neto loiro com os moleques da rua.

            Quando, em 1930, Um rio imita o Reno foi publicado, Viana Moog dizia, pela boca de Geraldo Torres, que os pardais chegam em bando e impedem o canto dos outros pássaros; que eles grasnam em coro para que não os humilhe a voz dos pássaros de canto. Passados cinqüenta anos, as vozes dos preconceitos e do racismo não se calaram. Resulta daí, certamente, a oportunidade desse romance e de sua reedição pela José Olympio, em 1987.

            Morto recentemente, Viana Moog certamente não ignorou que os pardais estão voltando.

domingo, 3 de setembro de 1989

Já foi dito e legislado



            O sol e o pampeiro lhe tingiram a pele. Falava baixo e pausado e tinha os olhos azuis. José Artigas, um dos libertadores da América.

            Capitán luminoso, jinete del escalofrio, caudillo del rumbo, centauro de la polvoreda o chamou Pablo Neruda no seu Canto general. Nos pampas do Uruguai, conforme testemunho do inglês Robertson, sentado numa caveira de boi, perto do fogo, vai ditando as cartas a seus dois secretários. Pelo chão, espalhadas, as muitas que lhe chegavam da província inteira.

            Pobremente vestido com um velho poncho, ao mesmo tempo, ele bebia genebra, fumava, conversava e despachava todos os assuntos que lhe caíam nas mãos.

            E foi em setembro de 1815 que José Artigas decretou os regulamentos que dispunham sobre as terras, sobre os direitos alfandegários e sobre o comércio de seu país. Que as terras fossem repartidas entre os que, laboriosos, não as possuíam; que os livros não pagassem impostos de importação; que o comércio e a indústria estivessem nas mãos dos uruguaios.

            Claras e límpidas resoluções que assegurariam, no seu entender, o trabalho e o desenvolvimento voltados para um grande mercado comum regional. No sistema que engendrou, a nação seria formada pelos que nela nascessem.

            Por isso, os forâneos de outros hemisférios logo lhe fizeram cerco e José Artigas, el capitán luminoso, terminou seus dias, solitário, num exílio que durou  trinta anos.

           

domingo, 27 de agosto de 1989

Gosto de dizer obrigada

            Foram aproximadamente oito milhões e meio de crianças de terceiro a sexto ano de escola primária que, no México, participaram de um concurso de redação, instituído pela “Comissão para a defesa do idioma espanhol”. Selecionados, primeiramente, pelos professores e, numa segunda fase, por um juri composto por escritores, os textos foram reunidos sob o título Así escriben los niños de México.

Embora as normas do concurso indicassem que tanto o tema quanto a extensão do trabalho fossem livres, percebe-se a submissão aos  velhos temas escolares: “O que eu gostaria de ser”, “Minha boneca”, “O cachorrinho”, “O gato”, “Quando eu era pequeno”, “A primavera”. O que, certamente, não irá impedir que, encerrados nesses temas, floresçam idéias e expressões cuja espontaneidade e riqueza evidenciam o inestimável potencial que existe em cada criança. Quando elas imaginam, são as fadas, as bruxas, os animais falantes que aparecem e, a exemplo dos contos de fadas tradicionais, o final é sempre moralizante – o mau desaparece ou é castigado – quem sabe, expressando o velho desejo do Homem de viver num mundo onde reine a justiça.

Mais do que a invenção, porém, o que prevalece nesses textos é a realidade a partir de situações  vividas. Sensações de prazer, originadas do calor que esquenta o chão, do cheiro de terra molhada que dá tanta alegria, da visão  do céu azul, bonito,estrelado. Ou, dos barulhos da casa, todo um universo para quem  tem nove anos: o suave ressonar da irmã a dormir, o virar das folhas do jornal que o pai lê,  os risos familiares, o leve roçar das agulhas de tricô, o bater     dos pratos na cozinha. Ou, ainda, emoções que chegam, com a alegria de encontrar e poder  levar para casa um animalzinho perdido; com a tristeza, tão grande, de perder um bichinho de estimação às quais, se misturam¸por vezes, reflexões sobre a maneira como devem sr tratados os animais para que sejam felizes.

E, extremamente sugestivo, o que se inscreve no tema “Eu gostaria”. Mais do que os outros, é um tema que extrapola o desejo infantil para ser, também, reflexo  de carências sociais:  a falta de água que vai impedir o cultivo de uma horta; a ausência  de posses que não permite a família conhecer o mar. Carência que está presente, também, no desejo de poder estrear sapatos novos, de oferecer à mãe, coisas que, pela pobreza, ela nunca teve.

Para alguns poucos – quem sabe aqueles raros iluminados que talvez venham a salvar a Humanidade – a aspiração consiste em ajudar os outros, no futuro. Ensinando, cuidando de doentes, construindo casas para que todos possam morar bem.

E há os que pensam num mundo vivendo em paz, numa sala de aula em que só existam crianças estudiosas. E há aqueles para quem a felicidade está nas coisas singelas: plantar melancia, comer chocolate, ver a andorinha tomar água na fonte, olhar para as gotas de chuva, caindo no chão.

E, como diz Gabriela Herrara Rodea, nove anos: Eu gosto  de tudo, menos das coisas ruins. Gosto de dizer obrigada. 

domingo, 20 de agosto de 1989

Antigas imagens

            O México ainda era colônia da Espanha quando nasceu José Joaquín Fernándes Lizardi. Como muitos outros, ele almejou ver a terra em que nascera como um país independente e para isso lutou com as armas de que dispunha: as palavras. Seus primeiros textos foram folhetos que vendia por alguns centavos. Mais tarde, fundou um jornal, El pensador mexicano. Tão inflamados os seus argumentos e tão cheios de razões que antes de ser publicado o número dez, ele já fora preso por ordem do rei.

            Impedido de divulgar seu pensamento, decidiu escrever obra de ficção e, assim, surgiu El periquillo sarniento, publicado em 1816, um ano depois de ter desistido de seu segundo projeto jornalístico, Alacena de frioleras, censurado porque não agradavam ao governo suas diatribes  contra a escravidão.

            El periquillo sarniento é um romance picaresco. Narra, em primeira pessoa, a vida de Pedro Sarniento, apelidado pelos colegas de periquito sarnento por se vestir de verde e amarelo e por ter sarna. Sua vida de estudante e de jogador que acaba por conduzi-lo ao hospital e à prisão, é uma sucessão de  aventuras  cujo relato  o narrador procura tornar agradável, evitando a monotonia do estilo com a mistura de um tom sério e sentencioso com  outro, trivial e bufão. Perfeitamente encaixadas nos episódios, digressões sobre sucessos do cotidiano ou sobre aspectos morais que, no dizer dos críticos, diminuem o ritmo narrativo. A estas observações sobre a estrutura da obra se acrescentam as que censuram, igualmente, em Lizardi, sua galeria de tipos populares e um estilo eivado de mexicanismos.

            Parece incompreensível que tais razões se sobreponham ao fato de ser El periquillo sarniento, uma das primeiras tentativas de romance na América que traz, no seu bojo, importantes idéias  de liberação, não somente da metrópole, mas de tudo o que por preconceituoso, supersticioso, dogmático ou conservador, retarda o desenvolvimento de um povo.

            Muitas das obras que tratam da História da Literatura no Continente, mal mencionam El periquillo sarniento. No entanto, além de ser um clássico no gênero, não espelha apenas o México do século XVIII mas, como diz Anita Arroyo no seu livro Américo en su Literatura,  todo  o Continente  Latino-americano cujas transformações se produzem numa sincronia historicamente fatal. Assim, ao pintar Lizardi as feridas sociais de sua pátria, estava pintando os mesmos erros e os mesmos horrores das outras colônias hispano-americanas.

            E quer queira, quer não, o Brasil faz parte desse Continente e não de outro, permitindo estabelecer, sincronicamente e diacronicamente inúmeros paralelismos. Então, é lamentável o se poder constatar quanto é atual esse romance de Lizardi. Porque as incontáveis décadas transcorridas desde o seu aparecimento não foram  suficientes para que as transformações almejadas por ele e por tantos outros, fossem concretizadas. A conquista da liberdade e com ela os benefícios de uma vida digna para todos ainda é um sonho distante no Continente.

sábado, 5 de agosto de 1989

O universo dos outros

            A música regeu o destino de Ansín. Minha mãe dizia que eu nasci com a flauta na boca, ele repetia. Desde pequeno, na retreta de domingo, ele chegava primeiro que todos para aprender , ouvindo a banda. Um dia, porque faltou um músico  na festa da Escola, alguém se lembrou  que  Ansín sabia tocar. E tocou porque de sua flauta saiam todos os sons. E, assim, passou a tocar nas festas do povoado durante anos até que  os músicos profissionais lhe tomaram o lugar. Foi sendo cada vez mais esquecido, sua flauta silenciando cada vez mais. Só tocava para si mesmo, sozinho, no seu rancho.

            Ansín  é personagem de “ Hombre-Flauta”, título do conto e do livro de Julio C.da Rosa, uruguaio, nascido em 1920, na cidade de Treinta y Trés. Autor de vasta obra, inserida na “Literatura Criollista”, os contos que fazem parte desse livro, no dizer de Heber Raviolo, que lhe escreveu o prólogo, se constituem um resumo exemplar de algumas características do gênero:  enfoque realista de temas,  preocupações pelo resgate da linguagem popular, opção pela narrativa cujo eixo seja aqueles que habitam o campo.

            As cinco narrativas de Hombre-Flauta estão centradas em cinco perfis: o de Ansín, incapaz de aprender a ler ou de fazer qualquer outra coisa que não fosse tocar a flauta; o de Abedonio Lemos que de guri sem dono se fez homem sozinho e lutando; o de dona Isabel, forte como madeira de lei e valente para suportar a miséria; o de Andrés Rosa, homem do campo para quem a cidade era um labirinto; o de Francisco Vaz, contrabandista amansado pelo anos. A partir desses perfis se desenha a vida de cada um, gerida por acasos. Ansín passa a ganhar a vida, tocando um instrumento porque  faltou músico no dia da festa; Abedonio  encontrou sua vocação, já homem feito quando lhe ofereceram para ser treinador de cavalos; a pobreza de Dona Isabel se instala com o advento  da estrada de ferro que tornou sem sentido o trabalho do marido; a festa do centenário da cidade revelou para Andrés Rosa alegrias desconhecidas; o contrabando realizado nos trens de fronteira neutralizou aquele que fazia Francisco Vaz, enfrentando perigos na travessia dos campos. São vidas inscritas num universo que ao se transformar, provoca marginalizações, isolamento. A pequena cidade ou  seus arredores onde essas vidas transcorrem se transforma com a chegada do progresso e para alguns – os que não se dão conta ou são incapazes de mudar – acaba faltando espaço.

            E é extraordinária a maestria com que Julio C. da Rosa fixa esses momentos. Recriando esse homem do interior do país e seu destino bloqueado por circunstâncias facilmente geradoras de derrotas – que não inocenta nem responsabiliza pelas misérias e tristezas que narra – seu texto se constitui uma ficção documental.

            Entre o imaginário e o real, a beleza desse universo que, por distante ou ignorado, é somente o dos outros.

domingo, 30 de julho de 1989

A fuga



        São vinte e cinco breves relatos que formam o livro Los gauchos judios, publicado em 1910, primeira obra de Alberto Gerchunoff. Vindo de uma aldeia da Ucrânia para a província de Entre Rios, na Argentina, buscando se livrar dos repetidos “progroms”, parte de  sua vivência está contida nesses relatos.

            A chegada dos emigrantes europeus nos campos argentinos, seus trabalhos, suas lutas, suas vitórias, sua inevitável assimilação aparecem em pequenos quadros. Breves momentos – o passar  do arado na terra, o leite jorrando no balde, a nuvem de gafanhotos e o combate para afastá-los, um duelo entre gaúchos, o roubo do candelabro -  que se justapõem para fixar a história desses personagens que vieram em busca de um mundo mais justo, desejando, porém, refazer  em cada gesto, em cada palavra a sua tradição, seus costumes e sua fé.

            No livro de Alberto Gerchunoff são muito bem desenhados esses que vieram para a nova terra. Com sóbria precisão, o autor delineia caracteres e evoca paisagens mas não pode impedir que suas palavras contenham um mundo de emoções.

            Esses dois universos que convivem aparecem, de maneira exemplar,  no relato “El episódio de Miryam”. Don Jacobo representa um deles: Velho de barba rala, nariz curvo, faces enxutas arguto, instruído, religioso, capaz de discorrer sobre difíceis temas bíblicos. Rogelio, seu peão, o outro. Ele é o homem inculto do campo, o que executa trabalhos rudes e se exprime, magnificamente, pela música. São universos que convivem e que, sem dúvida, se defrontam porque Don Jacobo repete o que lhe foi dito há centenas de gerações e desses valores não quer se afastar. Para o gaúcho Rogelio, o passado significa silêncio e do presente só escuta o chamado para a vida, para o amor.           

            Entre os dois que tudo separa – o idioma, os costumes, as  crenças – Miryam, a bela moça loira como a tarde e os trigais. Quando Rogelio entoava uma canção no idioma para ela duro como uma pedra, respondia inevitavelmente com um canto judeu, estranho aos ouvidos do gaúcho.

            Era festejada a Páscoa. Na improvisada sinagoga, a comunidade reunida, as moças com seus trajes coloridos, os jovens discutindo a excelência de seus cavalos. Entre eles, Don Jacobo com a túnica sagrada nos ombros. A tarde era de outono e Rogelio e Miryam fugiam. Passaram como vento, erguido altivamente o gaúcho e ela, cabeleira solta, envolveu os que a olhavam com um olhar de desafio, os olhos como uma chama e quando todos voltaram a si   de seu  assombro, os fugitivos eram um ponto na distância.

            No caminho já trilhado há mil anos e nos qual os emigrantes desejam prosseguir, outro surgira diz Gerchunoff: Na estrada, a poeira levantava franjas de ouro.

domingo, 23 de julho de 1989

Um boliche no pago

            “El Resorte” é um boliche no meio do pago, boliche como deve ser: um balcão para o freqüentador se encostar, um gato instalado num canto, uma aranha no teto e, cá e lá, pendurados uns salames.

Quase seria aquela “pulperia” de que fala Sarmiento em Facundo: ali se dão e se recebem as notícias sobre animais extraviados; fica-se sabendo onde caçar o tigre, onde aparecem os rastros do leão. É ali onde se combinam as carreiras e onde se conhecem os melhores cavalos; ali está o cantor, ali se confraterniza no passar do copo. Quase seria porque, na verdade, o que mais acontece no “El Resorte”  é a confraternização, é o passar do copo. E sempre lá estão a Duvija, o pardo Santiago, o índio Olmedo e os outros que chegam, que passam. Todos recebem atenções e, se for o caso, um conselho oportuno.

O índio Olmedo, com dor de dente, escuta, do recém chegado, que deve mascar fumo. O velho Turufa, entre vários conselhos, leva em consideração o da Duvija. Chegou a “El Resorte” desesperado de sono. A filha gostava tanto de serenata que toda a gauchada do pago lhe fazia o gosto, deixando o velho, sem poder dormir. Sabiamente, Duvija aconselhou :  case a moça. E foi o que ele fez. Para voltar outro dia, morto de sono e responder quando lhe perguntaram que tal lhe tinha saído o genro: louco por bombo.

E, entre  uns tragos e um jogo de truco, o tempo sobra. Para escutar “os causos”, para contar da vida e do coração, para armar um cigarro de palha. E os freqüentadores de  “El Resorte” não se admiram de nada: um chega no boliche com uma fantasminha que encontrou perdida; outro com uma planta de estimação e, ainda, outro com um guarda chuva maluco

Agora, quanto ao passar do copo, tem que ser de vinho. Porque diz o índio Olmedo: Cristão que se põe a tomar gasosa quando todos estão tomando vinho, não gosta de ninguém. Tomador de gasosa nem para vizinho serve.

E ao chegar um forasteiro, o pardo  Santiago se pergunta quanto tempo é preciso para que ele se torne de casa. E nisso pensava  quando, ao ouvir um galope, no melhor estilo de “gaúcho mau”,  o estranho se encosta no balcão empunhando a arma. A Duvija, solícita, lhe pergunta: Quer que lhe esconda o cavalo, forasteiro? Certamente, os tempos são outros porque o valente responde: Não esconda nada porque depois não acho o cavalo e vou ter que ir embora a pé.

Um mundo de amizades e de loucuras que, no contar risonho e terno de Don Verídico (Don Verídico se la cuenta, Montevideo, Ediciones de La Flor, 1975), só pode parecer verdade e não essa incrível e maravilhosa invenção de Julio César Castro o uruguaio dono de mil histórias, todas inigualáveis na arte de  fazer rir.

domingo, 16 de julho de 1989

O rastreador

            São quatro as figuras do Pampa argentino,  descritas magistralmente  por Domingo Sarmiento no seu livro Facundo: o vaqueano, o “gaúcho mau”, o cantor e o rastreador. Este, diz Sarmiento, o mais extraordinário de todos, uma pessoa grave, circunspeta, cônscia do saber que possui. Saber que o torna respeitado, temido. Sua palavra é lei e ricos e pobres podem vir, um dia, a precisar dela ou de seus serviços. O rastreador sabe seguir nas amplas planícies, onde se cruzam trilhas e caminhos em todas as direções, onde em campos abertos pasta o gado, o rastro do animal e distingui-lo entre mil.
 
            Facundo foi escrito em 1845. Em nosso dias, Don Verídico, fala de um outro rastreador. Em Don Verídico se la cuenta, Julio César Castro recria um universo campeiro povoado de jogadores, pintores, apostadores, trançadores e outros tantos que, abstraindo o exagero do narrador, um Barão de Munchaussen local, fazem parte de um cenário circunscrito ao “rancho”e ao “boliche”, os dois polos entre os quais eles se movimentam.

            É no boliche “El Resorte” que as coisas acontecem. Quase sempre, lá estão os mesmos freqüentadores com seu copinho de pinga ou congregados ao redor de um garrafão de vinho. E, nos melhores dias, congregados, também, ao redor de uns pedaços de queijo. É para lá que se dirigem todos os habitantes masculinos do pago para expor suas preocupações, contar suas penas, procurar soluções . Lá, se encontraram  Clemento Saliva e Nicanuto Lereno. O primeiro, tomando pinga perto do balcão e como que meio bravo porque era assim que estava desde que lhe fugira a mulher.. Viu entrar Nicanuto Lereno, o rastreador. Dele se aproxima para dizer que os homens foram feitos para servir uns aos outros e que por isso e, também, por conhecer sua fama, queria pedir que lhe  encontrasse a mulher.

            O rastreador respondeu que isso de ir embora era típico de mulher. O marido explicou que não era tanto pela mulher a tristeza mas por que ela havia levado junto um poncho que era dele e da maior estimação. Compreensivo, o rastreador não pode se negar de prestar-lhe a ajuda pedida e foi embora a pé, puxando o cavalo pelo cabresto. Ele era um rastreador, dizia Don Verídico, que tanto rastreava bicho como cristão. Qualquer coisa lhe servia para marcar o rumo: um capimzinho seco, um fósforo apagado, a maneira do quero-quero gritar, a cara de susto de uma aranha, uma formiga de perna quebrada.

            Era uma fama pesada de carregar. Nicanuto Lereno chegando em casa mateou a noite inteira. E foi lá pela madrugada que ele falou na direção do quarto:
- Chê, Forina!
 -Que?

 -Junta tuas coisas e volta para casa. Não esquece de levar o poncho.

domingo, 9 de julho de 1989

Olhares indiscretos

            “e então, James Stewart com seu jeito de cara legal, claro que diz uma piada e o filme termina com gargalhada final de todo  elenco como nos filmes americanos que não se decidem entre a tragédia grega  e os três patetas. Estas são as considerações finais do narrador de “El diablo son las cosas”, conto da cubana Mirta Yañez, parte do livro homônimo, referindo-se ao filme Janela indiscreta. E, a propósito da coincidência de estar vivendo uma situação semelhante à de James Stewart, observador forçado do que se passa na casa em frente a sua janela:  o ritual cotidiano da velha professora que, ao voltar para casa, todas as tardes, toma chá sem açúcar, rega as plantas e senta-se para tomar o ar fresco do anoitecer. Tranqüilidade interrompida pela presença de um camundongo na sua cozinha e da necessidade premente de se livrar dele. Tentativa que procura meios incruentos como entupir com jornal todos os cantos onde o camundongo possa se esconder. Porém, como as disposições tomadas foram se mostrando ineficazes, acabou por se estabelecer uma convivência pacífica entre os dois personagens. Até que o acaso deu cabo do camundongo: a porta batendo no exato momento em que ele passava, lhe tira a vida que muito  garbosamente, defendia.

            O observador de perna engessada que tudo acompanhava da janela, presenciou, então, o choro sentido da velha professora e escutou a sua melancólica observação: como são as coisas desta vida.

            Embora se trate de solidões, a do observador, a da velha professora e a do camundongo, o tom informal, por vezes trocista da narrativa, evita um comprometimento mais profundo com  personagens  e situações que, somente determinadas características idiomáticas e dois ou três  referencias permitem situar no espaço do Continente. 

            Não é o que acontece em “La risa”, conto de Eduardo Gravina que faz parte do livro Despegues (Prêmio Casa de las Américas, 1974) em que a cidade na qual  se passa o episódio não é mencionada mas é espaço iniludível. Numa de suas ruas, de seu quarto de pensão,  estudantes se divertem espiando a vizinha que mora na frente e que, todos os dias, aparece, perturbadoramente  fiel,  na sacada:  esplêndida jovem de flutuante cabeleira loira, rosto de beleza nórdica. Seguem-lhe os gestos e os passos na expectativa de um olhar, um sorriso, uma palavra, recebendo, em troca, somente um  cauto, um breve evanescente movimento de cabeça, nunca dos lábios.  O imprevisto acontece com a chegada, a desoras,  do pai da jovem musa. A quase chegada, aliás, pois a embriaguez que o conduzia aos tropeções, o deixou a meio caminho. Na sacada, os observadores, incautos, deixam escapar a gargalhada que a situação propiciava. Inesperadamente, surge na calçada, para ajudar o pai, a bela vizinha e, pela primeira vez, ouvem-lhe a voz numa frase que lhes chega como um copo de cicuta: idiotas, mal educados, ordinários.  Palavras suficientes para oferecer-lhes a grande decepção  - adeus divindade nossa, adeus jogos de imaginação e ao conto dar o seu final.

            No Continente, porém, raras vezes, as intenções da narrativa são ingênuas. Em “La risa”,  o autor uruguaio apenas menciona os golpes e as prisões sofridas por estudantes, mas descreve, detalhadamente o vir pela rua aos trambolhões, o cair após as evoluções prévias, o lutar para passar da posição zoomórfica para a antropomórfica de um cidadão considerado pelos estudantes como “coronel anti- subversivo”.

            Com certeza, pouca ou nenhuma relação com o final feliz moralista em que pontificou James Stwart em A janela indicreta. No Continente Latino-americano, os olhares indiscretos seguiram em Cuba os passos espertos de um camundongo e seu tragicômico destino; no Uruguai, os passos cambaleantes de uma autoritária figura que, em pleno dia, os excessos etílicos levam a perder o equilíbrio e a tão imprescindível compostura.

            Talvez uma metáfora. Certamente, uma catarse irrenuncíavel para quem escreve e, imprescindível para quem lê pois não é fácil  continuar respirando em meio aos miasmas do Continente.