domingo, 19 de novembro de 1989

Pela honra

            Para lavar sua honra foi que Don Emilio, índio de sessenta anos, apunhalou o mascate.

Don Emilio, marido de Isabel, índia jovem que um dia, ao voltar  do trabalho, entre as mercadorias de um mascate, vê um vestido cor-de-rosa com enfeites brancos e azuis, com rendas, fitas, laços, lantejoulas. Maravilhada, Isabel fica muito tempo olhando, a vontade de possui-lo escorrendo dos olhos. Mas, nada deve ter que não lhe venha do marido.

            Outra vez o mascate na praça, outra vez o vestido diante dos olhos e ofertado mais barato. Isabel se afasta. No terceiro encontro, casual, o mascate indo embora, talvez tocado pelo olhar da índia, lhe dá de presente o vestido. Isabel ainda resiste às lantejoulas, às fitas, às rendas mas pega o vestido e foge.



            E passa a viver com seu delicioso segredo. À noite, quando todos dormem, Isabel põe o vestido e o admira. Depois, o despe e o esconde novamente. No caminho que percorre para levar comida ao marido, se detém, tira o seu vestido velho  põe o novo, cor de rosa, enfeitado. Caminha um trecho, feliz, para voltar a se trocar e continuar seu caminho.

            Mas, a descobrem as velhas do povoado. Corre a notícia de que Isabel tem um vestido recebido de alguém, um vestido exposto junto com as mercadorias do mascate. Inocência, ela jura para o marido. Porém, ele não mais a toca. Bastaram-lhe monossílabos com os velhos índios para saber o que fazer.

            Quando o mascate, novamente, aparece no povoado, don Emilio vai procurá-lo: Venho matá-lo, senhor. Venho para que nos matemos por causa de um vestido. Muita gente o acompanha. Todos sabem porque e como Don Emilio deve fazer o que é preciso. Como em Crônica de uma morte anunciada, ninguém irá impedir o ritual. Ambos levantam o punhal. Para um deles, a luz do sol fica negra.

            Isabel sofre as sanções de um pecado não cometido. Don Emilio, surdo às suas palavras, cego a sua vaidade adolescente, fica preso aos usos das leis patriarcais. Lava uma honra supostamente manchada. O mascate e Isabel parecem culpados e o que havia entre os três, era, apenas, um vestido cor-de-rosa.

            “Isabel es culpable” é um dos contos que compõem o livro El gobierno del cuerpo  (Joaquín Mortiz, 1977) de Ricardo Garabay. Mexicano, nascido em 1923, publicou Beber un cálice, Bellísima bahía, Lo que es de César, La casa que arde de noche e Diálogos mexicanos.

            Clássicos na sua forma ou se aproximando da expressão dinâmica do cinema, os contos de Goberno del cuerpo estão em acorde com a temática que os orienta: as tensões de uma classe média urbana essencialmente preocupada com seus  cotidianos problemas existenciais.

            Exceção do conjunto, o conto “Isabel es culpable”. Um universo distante, em todos os sentidos, dos demais que povoam o livro. O trabalho da terra e o silêncio bastam às duas vidas simples cuja trajetória deveria ser linear. E, simples, e linear se constrói o conto. Parco em palavras, enuncia apenas o perfil de cada personagem, o desejo pueril de Isabel e os atos de Don Emilio e do mascate que se seguirão ao desejo satisfeito.

            Os atos masculinos se inscrevem na tradição. Um procurando dar a morte; outro se defendendo. Ambos aceitando a lei. A mesma lei que impõe à mulher a impotência e a solidão. Silenciosa, submissa, Isabel sem defesa, se refugia na ilusão do vestido.Na arena da vida – mundo masculino – o direito que ela tem de possuir essa ilusão é decidido com punhais.

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