domingo, 9 de julho de 1989

Olhares indiscretos

            “e então, James Stewart com seu jeito de cara legal, claro que diz uma piada e o filme termina com gargalhada final de todo  elenco como nos filmes americanos que não se decidem entre a tragédia grega  e os três patetas. Estas são as considerações finais do narrador de “El diablo son las cosas”, conto da cubana Mirta Yañez, parte do livro homônimo, referindo-se ao filme Janela indiscreta. E, a propósito da coincidência de estar vivendo uma situação semelhante à de James Stewart, observador forçado do que se passa na casa em frente a sua janela:  o ritual cotidiano da velha professora que, ao voltar para casa, todas as tardes, toma chá sem açúcar, rega as plantas e senta-se para tomar o ar fresco do anoitecer. Tranqüilidade interrompida pela presença de um camundongo na sua cozinha e da necessidade premente de se livrar dele. Tentativa que procura meios incruentos como entupir com jornal todos os cantos onde o camundongo possa se esconder. Porém, como as disposições tomadas foram se mostrando ineficazes, acabou por se estabelecer uma convivência pacífica entre os dois personagens. Até que o acaso deu cabo do camundongo: a porta batendo no exato momento em que ele passava, lhe tira a vida que muito  garbosamente, defendia.

            O observador de perna engessada que tudo acompanhava da janela, presenciou, então, o choro sentido da velha professora e escutou a sua melancólica observação: como são as coisas desta vida.

            Embora se trate de solidões, a do observador, a da velha professora e a do camundongo, o tom informal, por vezes trocista da narrativa, evita um comprometimento mais profundo com  personagens  e situações que, somente determinadas características idiomáticas e dois ou três  referencias permitem situar no espaço do Continente. 

            Não é o que acontece em “La risa”, conto de Eduardo Gravina que faz parte do livro Despegues (Prêmio Casa de las Américas, 1974) em que a cidade na qual  se passa o episódio não é mencionada mas é espaço iniludível. Numa de suas ruas, de seu quarto de pensão,  estudantes se divertem espiando a vizinha que mora na frente e que, todos os dias, aparece, perturbadoramente  fiel,  na sacada:  esplêndida jovem de flutuante cabeleira loira, rosto de beleza nórdica. Seguem-lhe os gestos e os passos na expectativa de um olhar, um sorriso, uma palavra, recebendo, em troca, somente um  cauto, um breve evanescente movimento de cabeça, nunca dos lábios.  O imprevisto acontece com a chegada, a desoras,  do pai da jovem musa. A quase chegada, aliás, pois a embriaguez que o conduzia aos tropeções, o deixou a meio caminho. Na sacada, os observadores, incautos, deixam escapar a gargalhada que a situação propiciava. Inesperadamente, surge na calçada, para ajudar o pai, a bela vizinha e, pela primeira vez, ouvem-lhe a voz numa frase que lhes chega como um copo de cicuta: idiotas, mal educados, ordinários.  Palavras suficientes para oferecer-lhes a grande decepção  - adeus divindade nossa, adeus jogos de imaginação e ao conto dar o seu final.

            No Continente, porém, raras vezes, as intenções da narrativa são ingênuas. Em “La risa”,  o autor uruguaio apenas menciona os golpes e as prisões sofridas por estudantes, mas descreve, detalhadamente o vir pela rua aos trambolhões, o cair após as evoluções prévias, o lutar para passar da posição zoomórfica para a antropomórfica de um cidadão considerado pelos estudantes como “coronel anti- subversivo”.

            Com certeza, pouca ou nenhuma relação com o final feliz moralista em que pontificou James Stwart em A janela indicreta. No Continente Latino-americano, os olhares indiscretos seguiram em Cuba os passos espertos de um camundongo e seu tragicômico destino; no Uruguai, os passos cambaleantes de uma autoritária figura que, em pleno dia, os excessos etílicos levam a perder o equilíbrio e a tão imprescindível compostura.

            Talvez uma metáfora. Certamente, uma catarse irrenuncíavel para quem escreve e, imprescindível para quem lê pois não é fácil  continuar respirando em meio aos miasmas do Continente.

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