domingo, 2 de julho de 1989

Carlos, o patriota

            É um dizer como quem não quer nada, insinuado em contos que tem o seu curso se alinhavando num fiapo de história. Estudantes que perdem mais tempo em observar a vizinha da frente – radiosa cabeleira como uma acácia em flor- do que em estudar; a conquista amorosa a   partir de uma partitura musical; a viagem dos contrabandistas cegos num trem que atravessa o país. Uma linguagem pontilhada de expressões populares, sugerindo uma ingenuidade negada pela expressão culta que aparece perto. O efeito dessa mescla, irônico ou cordialmente cômico são farpas que denunciam situações na aparência inofensivas.


            “Despegues”, título de um dos textos e do livro de Alfredo Gravina  que foi Prêmio Casa de las Américas em 1974.   Como diz  Rodolfo Walsh, embora não nomeado  é o Uruguai a grande presença do livro: o  Uruguai empobrecido e enfastiado e seus heróis da luta cotidiana. Naturalmente, um Uruguai que é parte do Continente quando perde seus filhos para os países industrializado, quando possibilita e encoraja o culto pelo dólar porque parece ser unicamente a salvação  que resta. É disso que se trata no conto “Música e dólares”: um músico se contrapõe a uma comunidade voltada para as duas únicas soluções tidas por possíveis diante dos problemas econômicos: emigrar, procurando em outros países as oportunidades de trabalho o  quê no seu próprio país é negado. Ou, converter tudo em dólar: Estava alucinada pelos dólares, coitada. A gente a ouvia, como a tantos outros, comentar sobre o dólar e as subidas do dólar e as negociaçõe, negócios e negocinhos que essas subidas ofereciam. Durante a temporada de verão, Fulano alugava em dólares seu chalezinho de Punta del Este; Beltrano tinha se apurado para comprar dólares e viajar para a Europa quase de graça, já Fulaninha tinha em previsão tantos dólares embolsados, Sicrano vendia um terreno em disparada para comprar dólares; Beltrano punha proa em direção da Austrália à caça de dólares, Sicrana, que era uma avarenta tirava suas economias do banco para inverter nos dólares. O dólar retumbava em todas as cabeças. 

            São essas as observações de Carlos, o enraizado, aquele que só pode viver entre os seus, na sua geografia. Embora sem dinheiro e sem grandes possibilidades de ganhá-lo, embora sem oportunidade para realizar consertos. Inesperadamente, recebe convite para sair do país: uma carta lacônica vindo do exterior oferecendo um contrato para ensinar guitarra no exterior numa afamada instituição com pagamento em dólar aterrissou em sua casa           para povoá-la de esplendor e alegria. Sua mulher, eufórica, no mesmo instante, fez rapidamente as malas. Para ficar sabendo, alguns dias mais tarde, que o marido não abandonaria o país. Aproveitou as malas feitas para voltar para a casa do pai e pedir o divórcio porque, no seu entender, era impossível viver com alguém que desdenhava dólares e, assim,  a conseqüente oportunidade de se salvar.

            Para Carlos, aceitar a proposta estrangeira seria baixar a guarda, seria encarar a possibilidade de deixar seus pais na velhice; seria viver num país onde, no inverno sobraria neve e onde o tempo todo faltaria erva para o chimarrão. Seria, sobretudo, abandonar o barco avariado.

            Tendo em vista a importância da avaria e, principalmente, aquele que está no timão, não há dúvida que se tratou de uma opção , no mínimo,  patriótica.

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