sábado, 5 de agosto de 1989

O universo dos outros

            A música regeu o destino de Ansín. Minha mãe dizia que eu nasci com a flauta na boca, ele repetia. Desde pequeno, na retreta de domingo, ele chegava primeiro que todos para aprender , ouvindo a banda. Um dia, porque faltou um músico  na festa da Escola, alguém se lembrou  que  Ansín sabia tocar. E tocou porque de sua flauta saiam todos os sons. E, assim, passou a tocar nas festas do povoado durante anos até que  os músicos profissionais lhe tomaram o lugar. Foi sendo cada vez mais esquecido, sua flauta silenciando cada vez mais. Só tocava para si mesmo, sozinho, no seu rancho.

            Ansín  é personagem de “ Hombre-Flauta”, título do conto e do livro de Julio C.da Rosa, uruguaio, nascido em 1920, na cidade de Treinta y Trés. Autor de vasta obra, inserida na “Literatura Criollista”, os contos que fazem parte desse livro, no dizer de Heber Raviolo, que lhe escreveu o prólogo, se constituem um resumo exemplar de algumas características do gênero:  enfoque realista de temas,  preocupações pelo resgate da linguagem popular, opção pela narrativa cujo eixo seja aqueles que habitam o campo.

            As cinco narrativas de Hombre-Flauta estão centradas em cinco perfis: o de Ansín, incapaz de aprender a ler ou de fazer qualquer outra coisa que não fosse tocar a flauta; o de Abedonio Lemos que de guri sem dono se fez homem sozinho e lutando; o de dona Isabel, forte como madeira de lei e valente para suportar a miséria; o de Andrés Rosa, homem do campo para quem a cidade era um labirinto; o de Francisco Vaz, contrabandista amansado pelo anos. A partir desses perfis se desenha a vida de cada um, gerida por acasos. Ansín passa a ganhar a vida, tocando um instrumento porque  faltou músico no dia da festa; Abedonio  encontrou sua vocação, já homem feito quando lhe ofereceram para ser treinador de cavalos; a pobreza de Dona Isabel se instala com o advento  da estrada de ferro que tornou sem sentido o trabalho do marido; a festa do centenário da cidade revelou para Andrés Rosa alegrias desconhecidas; o contrabando realizado nos trens de fronteira neutralizou aquele que fazia Francisco Vaz, enfrentando perigos na travessia dos campos. São vidas inscritas num universo que ao se transformar, provoca marginalizações, isolamento. A pequena cidade ou  seus arredores onde essas vidas transcorrem se transforma com a chegada do progresso e para alguns – os que não se dão conta ou são incapazes de mudar – acaba faltando espaço.

            E é extraordinária a maestria com que Julio C. da Rosa fixa esses momentos. Recriando esse homem do interior do país e seu destino bloqueado por circunstâncias facilmente geradoras de derrotas – que não inocenta nem responsabiliza pelas misérias e tristezas que narra – seu texto se constitui uma ficção documental.

            Entre o imaginário e o real, a beleza desse universo que, por distante ou ignorado, é somente o dos outros.

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