A
música regeu o destino de Ansín. Minha
mãe dizia que eu nasci com a flauta na boca, ele repetia. Desde pequeno, na
retreta de domingo, ele chegava primeiro que todos para aprender , ouvindo a
banda. Um dia, porque faltou um músico
na festa da Escola, alguém se lembrou
que Ansín sabia tocar. E tocou
porque de sua flauta saiam todos os sons. E, assim, passou a tocar nas festas
do povoado durante anos até que os
músicos profissionais lhe tomaram o lugar. Foi sendo cada vez mais esquecido,
sua flauta silenciando cada vez mais. Só tocava para si mesmo, sozinho, no seu
rancho.
Ansín é personagem de “ Hombre-Flauta”, título do
conto e do livro de Julio C.da Rosa, uruguaio, nascido em 1920, na cidade de
Treinta y Trés. Autor de vasta obra, inserida na “Literatura Criollista”, os
contos que fazem parte desse livro, no dizer de Heber Raviolo, que lhe escreveu
o prólogo, se constituem um resumo
exemplar de algumas características do gênero: enfoque realista de temas, preocupações pelo resgate da linguagem
popular, opção pela narrativa cujo eixo seja aqueles que habitam o campo.
As
cinco narrativas de Hombre-Flauta estão centradas em cinco perfis: o de
Ansín, incapaz de aprender a ler ou de fazer qualquer outra coisa que não fosse
tocar a flauta; o de Abedonio Lemos que de guri
sem dono se fez homem sozinho e lutando; o de dona Isabel, forte como
madeira de lei e valente para suportar a miséria; o de Andrés Rosa, homem do
campo para quem a cidade era um labirinto; o de Francisco Vaz, contrabandista
amansado pelo anos. A partir desses perfis se desenha a vida de cada um, gerida
por acasos. Ansín passa a ganhar a vida, tocando um instrumento porque faltou músico no dia da festa; Abedonio encontrou sua vocação, já homem feito quando
lhe ofereceram para ser treinador de cavalos; a pobreza de Dona Isabel se
instala com o advento da estrada de
ferro que tornou sem sentido o trabalho do marido; a festa do centenário da
cidade revelou para Andrés Rosa alegrias desconhecidas; o contrabando realizado
nos trens de fronteira neutralizou aquele que fazia Francisco Vaz, enfrentando
perigos na travessia dos campos. São vidas inscritas num universo que ao se transformar,
provoca marginalizações, isolamento. A pequena cidade ou seus arredores onde essas vidas transcorrem
se transforma com a chegada do progresso e para alguns – os que não se dão
conta ou são incapazes de mudar – acaba faltando espaço.
E
é extraordinária a maestria com que Julio C. da Rosa fixa esses momentos.
Recriando esse homem do interior do país e seu destino bloqueado por
circunstâncias facilmente geradoras de derrotas – que não inocenta nem
responsabiliza pelas misérias e tristezas que narra – seu texto se constitui
uma ficção documental.
Entre
o imaginário e o real, a beleza desse universo que, por distante ou ignorado, é
somente o dos outros.

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