domingo, 1 de outubro de 1989

Acerto de contas

            Poderia ser o roteiro de uma seqüência de filme americano pela violência e fria precisão com que um dos personagens persegue e elimina o outro.

            O cenário é uma orla marítima. A praia deserta, as dunas, depois a floresta. O barquinho a remo que no cenário se inscreve, tem, no seu bojo, um ser gordo e inexperiente. Vestido de  branco, ele rema com ineficácia, é atirado na praia pelo acaso das ondas e tenta alcançar as dunas, sua meta e salvação. Qualquer de seus gestos são mal esboçados e parece que se  move, somente, porque a isso é induzido pelo barco que lhe vem ao encalço, na busca de um confronto.

            De um personagem, apenas se sabe que é fugitivo, que não sabe nadar e nem  usar um revólver e que, por obeso, não pode correr. O ser gordo, desajeitado, medroso e careca fazem dele o vilão ainda que esteja indefeso diante do outro.

            O perseguidor é calmo, domina as ondas através do remar  dos negros que lhe cumprem as ordens e do rumo do barco. Sua voz é diáfana e seus cabelos, loiros. Sabe que não perderá a presa e espera o momento propício para atirar. Chama-se Van Guld.

            O conto tem por título “En la playa”. O livro no qual foi publicado, Narda o el verano. Salvador  Elizondo é o autor. Mexicano, nascido em 1932, começou a publicar em 1960: Farabeuf o la crónica de un instante que recebeu o prêmio Villaruttias e ao qual se seguiram El hjipogeu secreto, El retrato de Zoe y otras mentiras, Cuaderno de escritura e El grafógrafo. Na Literatura Mexicana ocupa, no dizer de alguns críticos, um lugar ímpar na medida em que nenhum antecedente na Literatura de seu país explica seus textos.

            “ En la Playa”é o segundo dos textos que formam o livro e o melhor deles para o leitor que procura, na ficção,  o postulado que Alejo tão bem sintetizou: a função definitiva do romance consiste em violar constantemente o  princípio ingênuo de ser um  relato destinado a causar prazer estético ao leitor para se tornar um instrumento de indagação, um modo de conhecimento dos homens e de sua época. Porque Salvador Elizondo é, sobretudo, um autor de signos, de composição pura, do abstrato e dos jogos de linguagem.

            A leitura de “En la playa” lembra algum texto do “nouveau roman” francês. O narrador descreve apenas o que vê e nada mais do que isso saberá o leitor. Nem a identidade dos personagens, nem o motivo da perseguição ou o que vai ser desse cadáver que ficou jogado na areia; ou qual o destino do executor que não teme o testemunho dos negros que remam o seu barco e que atira com arma de matar elefante. Preciso, claro, autoritário, afasta-se pelo caminho que veio. Chama-se Van Guld e tem cabelos loiros.

            Certamente, por ter sido sempre  aceitos como bons e justos os seres de raça branca, essas informações orientam simpatias numa experiência trocista do exercício lúdico que tantas vezes se inscreve no texto de Salvador Elizondo.O cadáver do gordo abandonado ao sol carece de importância diante do homem que se afasta do lugar do crime. Como se os cabelos loiros ao vento tivesse feito dele não um assassino mas um justiceiro.

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