domingo, 10 de dezembro de 1989

Nos trilhos do trem

            Os trilhos do trem avançando terra a dentro trouxeram para Filisbino Nieto só motivos de sofrimento.

            Instalara-se em Sán José de las Cañas  para viver feliz com Pajita a mulher que escolhera. Mas, os gringos loiros  de olhos azuis, trazendo a estrada de ferro o obrigaram a mudar o rumo de sua vida. Porque, para os ingleses, era imprescindível colocar o teodolito, exatamente, onde estava a parede de seu rancho. E, então, a parede foi derrubada sob a proteção de dois soldados armados de metralhadoras.

            Enquanto isso, o povoado quase inteiro – os que moravam em casas de tijolo, ganhando mais; os que moravam em rancho ganhando menos – trabalhavam na  terraplanagem e comiam carne de cavalo e ervilha em lata que a Companhia punha à venda no seu armazém. Foi assim que Filisbino Nieto viu arruinado seu negócio de tradicional contrabandista.

            Trata-se dele, certamente, e trata-se  de Pajita e do inglês Stirling ou Estirlin  como  era chamado, a história. Formam um insólito triângulo amoroso que se faz e se desfaz sem causar demasiado sofrimento nesses surpreendentes personagens.

            Vagamente esboçados – Pajita tem a pele de canela e o sorriso bem de negra; Estirlin é loiro e só; Filisbino Nieto tem um rosto redondo como um queijo – sobretudo, eles esperam que algo aconteça para lhes mudar a vida. Definem-se por algum gesto, uma ou outra palavra e são parte de um universo em que pouco ou quase nada acontece: o gringo bebe seus tragos diante de uma janela que o deixa olhando longe; Filisbino toma chimarrão; Pajita se distrai comendo um prato de canjica.

            Isto acontece nas primeira páginas de Estado de gracia, um pequeno romance publicado no ano de 1983, em Montevidéu. Número 25 de “Lectores de Banda oriental”, uma coleção de obras cuja venda se destina, exclusivamente, a assinantes, é o segundo livro de Mario Delgado Aparaín. Setenta e cinco páginas de perfeição que desabrocha em cada pequeno episódio, em cada diálogo, no dinamismo de uma narrativa que não desdenha se deter em insignificantes detalhes.
            Mario Delgado Aparaín não abandona em Estado de gracia os principais temas de Literatura Latino-americana: o fantástico, o lúdico, o riso, a  morte, o compromisso com o homem. A partir deles é que irá realizar a aventura de uma escrita de extraordinária criatividade – sem precedentes no Uruguai, diz o crítico Alcides Abella – que se constitui, sem dúvida, uma expressão do Continente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário