Os
trilhos do trem avançando terra a dentro trouxeram para Filisbino Nieto só
motivos de sofrimento.
Instalara-se
em Sán José de las Cañas para viver
feliz com Pajita a mulher que escolhera. Mas, os gringos loiros de olhos azuis, trazendo a estrada de ferro o
obrigaram a mudar o rumo de sua vida. Porque, para os ingleses, era
imprescindível colocar o teodolito, exatamente, onde estava a parede de seu
rancho. E, então, a parede foi derrubada sob a proteção de dois soldados
armados de metralhadoras.
Enquanto
isso, o povoado quase inteiro – os que moravam em casas de tijolo, ganhando
mais; os que moravam em rancho ganhando menos – trabalhavam na terraplanagem e comiam carne de cavalo e
ervilha em lata que a Companhia punha à venda no seu armazém. Foi assim que
Filisbino Nieto viu arruinado seu negócio de tradicional contrabandista.
Trata-se
dele, certamente, e trata-se de Pajita e
do inglês Stirling ou Estirlin como era chamado, a história. Formam um insólito
triângulo amoroso que se faz e se desfaz sem causar demasiado sofrimento nesses
surpreendentes personagens.
Vagamente
esboçados – Pajita tem a pele de canela e o sorriso bem de negra; Estirlin é loiro e só; Filisbino Nieto tem um rosto
redondo como um queijo – sobretudo, eles esperam que algo aconteça para lhes
mudar a vida. Definem-se por algum gesto, uma ou outra palavra e são parte de
um universo em que pouco ou quase nada acontece: o gringo bebe seus tragos
diante de uma janela que o deixa olhando longe; Filisbino toma chimarrão;
Pajita se distrai comendo um prato de canjica.
Isto
acontece nas primeira páginas de Estado de gracia, um pequeno romance
publicado no ano de 1983, em Montevidéu. Número 25 de “Lectores de Banda
oriental”, uma coleção de obras cuja venda se destina, exclusivamente, a
assinantes, é o segundo livro de Mario Delgado Aparaín. Setenta e cinco páginas
de perfeição que desabrocha em cada pequeno episódio, em cada diálogo, no
dinamismo de uma narrativa que não desdenha se deter em insignificantes
detalhes.
Mario
Delgado Aparaín não abandona em Estado de gracia os principais temas de
Literatura Latino-americana: o fantástico, o lúdico, o riso, a morte, o compromisso com o homem. A partir
deles é que irá realizar a aventura de uma escrita de extraordinária
criatividade – sem precedentes no Uruguai, diz o crítico Alcides Abella – que se constitui, sem dúvida, uma expressão do
Continente.
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