domingo, 18 de dezembro de 1988

Todos os gatos são pardos

            Carlos Fuentes foi o galardoado de 1988 com o Prêmio Cervantes, recebido do rei da Espanha, em cerimônia realizada no dia 21 d abril, no Palácio do Oriente, em Madrid. Autor de vários romances, alguns traduzidos para o português e publicados no Brasil, escreveu, em 1970, uma peça de teatro, Todos los gatos son pardos que no mesmo ano foi publicada pela Siglo Veintiuno do México.   Antecedendo o texto, um prólogo do autor, explicando as razões que o levaram a escrevê-la: as palavras que lhe disse  Arthur Miller sobre a História da Conquista do México ( o encontro dramático de Montezuma,  um homem que tudo possuiu com outro, Cortez que nada tinha)  e o ter se deparado com uma expressão  de  Jacques Lacan (o inconsciente e o discurso do outro )  e,  as suas próprias interrogações que exigiram uma reposta que fez, então polifônica.

            Todos los gatos son pardos é um texto belíssimo de extraordinário potencial dramático que ensejaria ( até hoje não foi levado ao palco) uma extraordinária montagem: magníficas possibilidades de cenário e de guarda roupa, grande número de participantes e importante  envergadura dos personagens. E, principalmente, pelo tema conduzido por uma ação onde se intercalam momentos de ritmo lento com outros de grande agitação e dramaticidade.

            Um lugar qualquer às margens do mar do México, um acampamento espanhol, um templo indígenas, o palácio de Montezuma  são os diferentes espaços onde  se passa a ação. O esplendor das plumas nas vestes dos indígenas e dos metais nas couraças dos conquistadores, as frutas e as carnes, o grande animal estranho trazido pelo caçador completam o efeito plástico cuja exuberância é, as vezes, quebrada pela nudez dos personagens.

            Os personagens são muitos: Montezuma, os sacerdotes, os deuses, os magos, o jovem sacrificado,  o pastor, o caçador, o mercador; Cortez e seus capitães, algum soldados, Frei Olmedo e Malinche. Ora eles são rodeados por muitos figurantes ( guerreiros, albinos, corcundas, anões, donzela), ora na solidão ou, diante do outro, enfrentam seus fantasmas em  monólogos ou diálogos, verdadeiras sínteses dos sentimentos que nortearam a conquista e a entrega do Continente.

            E as vozes coletivas e os ruídos que acompanham a ação – choros, alaridos, arfares eróticos, sons de tambores e de choque de metais, relinchos de cavalos e zumbidos de gafanhotos – são, por si só, testemunho de como se fez essa conquista.

            Entremeando um discurso que procura entender ou procura explicar, a ação violenta, agressivamente expressiva: guerreiros que obedecem a Montezuma e apunhalam homens desarmados; soldados cristãos que destroem imagens indígenas e cortam as mãos dos emissários do rei inca.

            Se essa ação coloca em dúvida o uso de poder da elite indígena ou espanhola (daí o título da peça), na expressão do indivíduo – Malinche, Cortez, Montezuma, Frei Olmedo – ela enuncia uma História que sendo a dos submetidos é parte de toda a História do Continente.

domingo, 11 de dezembro de 1988

Das amadas

            Falar da amada em verso é descrever, recordar, imaginar. Chorar ausências, desejar. Querer que renasça.

            O corpo da amada é como se lírio fosse, diz Enrique Loynaz. E Pablo Neruda diz: “doce jacinto azul, pequena rosa”. Evocada, muda e pálida, em meio a uma noite de som e de perfumes como no “Nocturno”de José Asunción Silva. Mulher imaginária impregnando tudo –as paredes, o ar, os gerânios – com uma presença irreal e tão plena que provoca o  medo do encontro. Assim conta Lopes Vallencillos no seu poema “as vezes tenho medo de te encontrar na rua”. Também é sofrer da ausência irremediável como Amado Nervo ao longo dos anos que se seguiram à morte da amada. Ainda, como um demiurgo, dar vida à mulher como faz o poeta salvadorenho Roque Dalton: No dia em que morras te enterrarei nua, como quando nasceste de novo entre minhas pernas.

            Mas, falar da amada em versos significa também falar de si mesmo. De angústias e solidão, de desejos inefáveis. Voltar-se para si mesmo e aspirar encontrar-se ou encontrar no outro, na amada, as respostas da vida: amar é somente/  saldar contas / com o que e está mais longe, escreve, temeroso, Teobaldo Noriega.

            E, nesses sentires todos, aqui e ali, no Continente, surge o olhar para além do próprio sentir. Mario Benedetti explica: uma nova linguagem mediante novas maneiras de assumir não somente o amor mas também uma realidade que inclui o amor.
            E, então, Roberto Fernández Retamar, nascido em Cuba, em 1930. Seu poema “Con las mismas manos” se inicia com um verso em que  o elemento erótico-afetivo se entrelaça à uma ação voltada para o dever do homem: Com as mesmas mãos que te acaricio estou construindo uma escola. Nos demais versos, imagens de homens do Continente que esperam um futuro. Diante deles, o poeta para registrar: cheguei quase ao amanhecer, com o que pensei  seriam roupas de trabalho. Os outros, em farrapos, já o esperavam. Não dormem mais sob as pontes ou sob as soleiras. Estão construindo uma escola e não sabem ler.

            Um poema em que se misturam as verdades. A dos que trabalham e cansam. A verdade de um eu que ao compartilhar com os deserdados o trabalho e a refeição, passa a ter os olhos iluminados: Que longe estávamos das coisas verdadeiras, amor, que longe!            Um refletir, um trabalhar que é caminho para a mulher amada. Mulher amada que não se constitui um universo inteiro mas faz parte dele. E numa dimensão em que tão importante quanto amar a amada é guardar a coerência com a própria visão de mundo. Os versos se repetem: Não há momento em que não pense em ti / Hoje talvez mais, e enquanto ajudo a construir esta escola com as mesmas mãos que te acaricio.

domingo, 4 de dezembro de 1988

De ofertas e recusas

            Quando, no Brasil, se publicava Macunaíma, Francisco Espínola escrevia seus primeiros contos. Autor de um romance, hoje um clássico da Literatura Uruguaia, Sombras sobre la tierra e de um livro infantil, Saltoncito, também já um clássico no gênero e de um livro de contos, Cuentos completos ( Montevidéu, Arca,1993). Entre eles,  alguns  se constituem páginas definitivas da Literatura do Continente. Narrativas que se constroem a partir de um eixo: o homem do campo, o criollo uruguayo, um ser humano, encerrado nos seus valores, herança gaúcha que avança no tempo e norteia as ações. Inseridos num universo, fixado em rituais (  a marcação, o enterro) por vezes apenas esboçados num espaço fechado ou na paisagem, são tipos que se definem diante de situações extremas – quando as escolhas surgem de um movimento da alma.

             O homem pálido que chega ao rancho para roubar, diante de Elvira, de seus olhos de um olhar tão doce, tão leal, tão triste, perde a ferocidade. Mata o companheiro para impedir que lhe advenha algum mal; arrombando a porta do quarto na casa da fazenda solitária, os ladrões se deparam com Amélia em trabalho de parto. Tentam ajudar e fogem, não sem antes mandar em busca de vizinhos para socorrê-la; por se sentir desonrada, Maria del Carmem se suicida e o preço  de sua vida é pago com a vida do sedutor: o pai da moça ofendida o apunhala diante de todos. O pai desse nova vítima não reage.  O ritual se cumprira.

            Em meio a esses personagens submissos as suas paixões e as suas verdades, sobressai Rodriguez, personagem título do último conto da coletânea. Brevíssima cena que retoma um tema de tradição judaico-cristã: a Tentação, situando-a em pleno campo e tendo como personagens um gaúcho e o Tentador.

            Foi numa noite de lua iluminando o campo que os dois se encontraram. Rodriguez ( o gaúcho) e o outro que o esperava atravessar o Passo. Voz melíflua, olhar que se humilha diante do olhar do outro. E a voz e o gesto ofertando,  eis o Tentador. Rodriguez, desinteressado, logo aborrecido por tantas palavras, ouve, sem dar resposta, as ofertas: a submissão de mulher desejada, o ouro, o poder que também é bom. E segue o gaúcho no trote, indiferente ao outro que diante de tal silêncio como que havia perdido a fala. Mas, reagiu, exibindo, para convencer, o seu poder: transformou o cavalo negro que montava, em cavalo branco; transformou um galho em víbora, transformou seu cavalo em bagre. Fê-lo dar voltas em torno de Rodriguez que seguia no trote pois bagre, por maior que fosse, não representava perigo para o seu cavalo.

            O Tentador ainda insistiu, chamando a sua atenção para as suas incríveis proezas. Conseguiu a indiferente resposta: Isso? É mágica!  E, então, viu Rodriguez afastar-se sob a luz da lua, deixando para trás possibilidades de riqueza, de sedução e de poder. Imperturbável. Incorruptível...

            Bela história para contar e recontar no Continente!

domingo, 27 de novembro de 1988

Histórias de galpão

            O estudo da Literatura Gauchesca como expressão regional de três países (dos quais um se expressa em idioma diferente), ignorando as fronteiras políticas impostas, se constitui uma proposta de estudo da Literatura a partir de fronteiras geográficas.

            O Uruguai, o sul do Rio Grande do Sul e as planícies argentinas que com ele fazem fronteira se constituem um exemplo de região  geográfica cujos habitantes e cujos costumes possuem inúmeros denominadores comuns. E, no domínio da narrativa, o contador de causos – um  relato fantástico, exagerado – criado para o entretenimento numa roda de chimarrão.

            De um mesmo espaço geográfico, separado pelas linhas demarcatórias oficiais, dois narradores: Simões Lopes Neto, gaúcho de Pelotas e José Maria Obaldía, uruguaio de Treinta y Três. Na recriação literária dos causos de galpão, eles contam três causos iguais. Um deles, o da cobra enregelada.

            É’ um inverno muito frio e ao buscar  espeto para o churrasco, o gaúcho encontra um, excelente. Nele espeta a carne e a coloca no fogo. Eis que de repente, carne e espeto saem deslizando campo afora. Alguém percebe, chama a atenção para o estranho fato e constata-se  que o “espeto”era uma cobra. Enregelada pelo frio, ao calor do fogo se reanimou e fugiu para o seu ninho.

            Em Língua Portuguesa, o causo foi recolhido por Simões Lopes Neto. Aconteceu a Romualdo quando ele era cadete e a tropa, em meio à marcha forçada, fez alta para um churrasco. Cada soldado devia assar o seu pedaço de carne e Romualdo logo achou o espeto ideal duma meia braça, grossinho, liso, e o que mais é, já com a ponta feita. A carne no fogo, a prosa e o alerta de que o assado ia indo embora, fugindo da fogueira.

            Publicado em folhetim (o primeiro, em junho de 1914) no Correio Mercantil de Pelotas, este caso é um dos Casos de Romualdo, livro que, tantas vezes, a Editora Globo (a velha editora Globo) publicou.

            No livro de José Maria Obaldía , 20 mentiras de verdad (publicado em Montevidéu, em 1971), a história da cobra é contada por Don Brígido, uma entre tantas que vai desnovelando entre mate e mate. Falava-se sobre os duros invernos. Don Brígido lembra daquele que foi o  mais frio de sua vida: O campo tinha amanhecido branqueando como um lençol.... Ele andava tropeando e foi encarregado de assar a carne. Ao procurar um galho para fazer o espeto, achou um, retinho e pontiagudo. Colocada a carne no espeto perto das brasas,  foi tratar do mate quando o capataz lhe grita que o assado estava disparando. Era que o pau, retinho e pontiagudo que eu tinha escolhido para o espeto era uma bruta cobra enregelada pelo frio. Quando sentiu o calorzinho das brasas, reviveu de repente e saiu disparando rumo à cova.

            Simões Lopes Neto, apaixonado pelas tradições de sua terra, folclorista de galpão, como o chamou Augusto Meyer, deu voz ao Romualdo que existiu de verdade e que muitas histórias contou. Ou, deu vida àquelas vozes antigas que se perpetuam no anonimato..

            José Maria Obaldía, dominado pela necessidade de recriar o mundo de sua infância, dele extrai os relatos que  Don Brígido irá contar. No prólogo de 20 mentiras de verdad, Julio D. da Rosa o considera um precursor neste resgate da mentira criola. Precursor, também, foi Simões Lopes Neto ao coligir, pacientemente, as mentiras do Romualdo.

            Cada um , no seu desejo de fixar a criatividade do homem do campo. Um homem que foi separado por fronteiras, por interesses, por idiomas. E que, no entanto, lá ficou, na sua visão de mundo, enraizado, comprometido com  a sua terra.

domingo, 20 de novembro de 1988

A América de um ilhéu

                                                                               Tardes são feitas para durar
                                                                               mentiras não
                                                                               pesco todos os dias
                                                                               águas escuras
                                                                               por enquanto. 

            Um jovem poeta gaúcho assina esses versos. Renato Tapado, nascido em 1962, estudante de Letras na Universidade Federal de Santa Catarina cuja Editora lhe publicou os versos: Poemas para quem caminha. Com esta obra e Grifos e Emblemas de Hugo Mund Junior, ambas vencedoras do Prêmio Luiz Delfino – 1987, a Editora da Universidade catarinense inicia a coleção “Ípsis Literis”, destinada a divulgar a produção do Estado nas áreas de ficção, poesia e teatro.

            Poemas para quem caminha  é um pequeno livro de cinqüenta e cinco páginas . Os poemas, muitos deles de reduzidas dimensões ( dois, três, quatro versos), misturados com outros maiores ( nunca mais de vinte e seis versos), são como lampejos poéticos cujo início e fim não foram cristalizados pela escrita tradicional com suas maiúsculas, com  sua pontuação, com seus títulos. Dois aspectos chamam, especialmente, a atenção nos poemas de Renato Tapado. Uma lírica  despida daquele individualismo juvenil, tantas vezes, expressão primeira dos primeiros anos, testemunha das tensões de seu tempo; e, raro  na expressão poética brasileira, a presença da América Latina.

            A inserção do poeta no tempo presente irá definir o caminho de quem se quer em transformação ( amanheço / esqueço as âncoras em balsas) e orientar o olhar que não se esquiva de uma realidade que, também, precisa ser transformada ( no cotidiano dos que estão morrendo / junto com as mentiras e os pássaros inocentes).

            Um sentir que se estende além do espaço natal, ampliando uma geografia na qual se inscreve o Continente. Presença feita de poemas , aliás os únicos que possuem títulos ( Uruguai, Argentina, Honduras, Cuba); ou de referências esparsas em versos ( queira ler quatro livros sobre a América / receber uma carta de Havana); em expressões ( irmão da Nicarágua, chileno, Buenos Aires, ou casa tomada, lembrança do nome de um dos mais conhecidos contos de Julio Cortazar); em uma ou duas palavras em espanhol.  Ou presenças ainda mais efetiva, expressa nos versos de poetas latino-americanos que aprecem em epígrafe ou na recriação que se sobrepõe aquela frase tão cara a tantos latino-americanos: a morte é cotidianamente / endurecer-se / porém sem ternura.

            Poemas para quem caminha são os primeiros passos de um poeta. Na rota que escolheu encontra raízes e sonhos. E farpas. Do sofrimento que delas advém, também versos.

domingo, 13 de novembro de 1988

O mundo maravilhoso de Piquín e Chispita

               Serafin J.García, poeta e narrador uruguaio da cidade de Treinta e Três é, sobretudo, conhecido por Tacuruses. Um livro de versos que teve sucessivas edições porque, além de muitas outras qualidades, é expressão perfeita da voz do gaúcho que, sobrevivendo às transformações sociais,  submetido pelas leis do trabalho, tenta, ainda, se manter livre.É’, também, autor de contos e de relatos infantis, muitos dos quais  são livros textos nas escolas uruguaias. Um deles, Piquín y Chispita foi relacionado entre os dez melhores livros infantis, publicados em 1967/68 com vistas ao prêmio internacional Hans Christian Andersen de 1970.

              Ao sair de sua toca subterrânea, pela primeira vez, o tuco-tuco Piquín fica maravilhado com  o radiante céu azul, o rio largo e de águas prateadas, os ondulados campos verdes, o sol brilhante. Ele somente desprega os olhos dessas belezas para ver Chispita, a lagartixa verde. Simpatia mútua, palavras trocadas e juntos decidem ver o mundo.         Suas descobertas vão acontecendo. Cada capítulo do livro é uma aventura. O encontro com João Sem Medo que, apesar do nome (ou, por causa dele), diante do perigo se põe a tremer e quer fugir; ou com o boi Sem Pressa que os ajuda a atravessar o riacho; o espetáculo feérico dos vagalumes dançando no céu....

               Cada encontro, um favor recebido, um favor prestado: Piquín abrindo um túnel para livrar os peixes das presas do lobo que os havia aprisionado para se poupar o trabalho de caçar; ou cavando galerias subterrâneas que, ao deixar o solo sem firmeza assustaram a capivara  cuja avidez herbívora deixava  sem alimento outros pequenos animais.

               E, assim, as aventuras se sucedem. Encantadoras num mundo de planícies, de arroios cantantes, de aromas silvestres e pontilhado de borboletas coloridas. Um mundo em que a maldade, quando existe, é a expressão da luta pela sobrevivência. Para  que reine  a harmonia, trabalham alguns e entre eles, Piquín e Chispita.

               Mais de vinte e cinco anos se passaram desde a primeira edição dessa história. O mundo mudou e na velocidade das mudanças muita coisa se perdeu. Outras chegaram: imagens de mundos mecânicos e personagens robotizadas, movidas, em lugares estranhos, por forças fantásticas e inumanas. Nos estereótipos, a luta entre o Bem e o Mal contém significados a serviço de verdades que servem a uns em detrimento de outros. Como se não houvesse mais espaço para bichinhos ingênuos e espaços luminosos, é imposto, hoje, um outro mundo infantil que o despreparo dos países do Terceiro Mudo aceita sem discutir, ignorando que valores se transmitem e que somente eles podem evitar que o Continente continue a perder a sua identidade.

                 Ao oferecer em Piquín y Chispita a natureza em que o tom e as cores e os seres são nossos e com eles, cenas de amizade de altruísmo, Serafín J. García não apenas encanta seus pequenos leitores. Também faz pensar: já é tempo que o Continente conte para seus filhos suas próprias histórias

domingo, 23 de outubro de 1988

Crônica de uma morte anunciada

            Já há alguns meses exibido nas telas européias, o filme baseado na obra de Gabriel García Márquez, Crônica de uma morte anunciada.

            Publicado após um silêncio de seis anos e lançada como objeto de consumo, haja visto o imenso aparato publicitário que o cercou antes e no momento de sua aparição, é um romance que somente admite uma leitura ininterrupta.

            Dizer isto, aliás, até pode causar estranheza pois foi dito tantas vezes - e já é lugar comum repetir -  que é um livro que se inicia desvendando o seu final: No dia em que o iriam matar, Santiago Nasar se levantou às cinco e trinta da manhã... Nada mais preciso, então, do que o título dessa narrativa de fatos presenciados por outros que não o narrador que apenas recompõe, vinte e sete anos depois, o que lhe é contado.

            A morte anunciada no título e nas primeiras linhas da narrativa é a de Santiago Nasar. Duas horas antes de que se levantasse para assistir à chegada do bispo na cidade, já era voz corrente a ameaça que pesava sobre ele. Concretizada, morreu na condição de um triângulo amoroso que ele próprio ignorava, em nome de uma honra que não foi ofendida, pelas mãos de quem, verdadeiramente, não desejava matar e diante de uma pequena cidade atônita.

            Da narrativa cronológica de seus passos, na explicação de cada uma de suas omissões e verdades, se entremeiam as informações sobre o assassinado ( jovem, rico, religioso, caçador, mulherengo, habituado ao sangue dos bezerros que castrava) e sobre os tipos que o rodeiam, figuras imutáveis que a Literatura recria e torna a recriar ( Balzac e Eça) e que, de repente, ou repetidamente, a vida faz existir e a sociedade atuar: o delegado, o padres, o militar, a prostituta, o prefeito, a criada, a mãe, a noiva. E sobre as outras duas figuras, partes do triângulo que, talvez, tenha existido. São tipos que sobressaem em meio a outros quarenta. Todos eles apresentados nominalmente, alguns pela sua função na narrativa, outros pela sua função  na micro-sociedade do pequeno povoado. Com exceção dos dois personagens masculinos principais, os outros se definem por uns poucos traços, umas poucas palavras e, principalmente, por suas ações: o general Petrônio San Román, usando o barco de cerimônias do Congresso Nacional para ir ao casamento do filho; as famílias colocando os enfermos na passagem do bispo para receber a bênção e curar-se; a exibição do lençol na manhã seguinte à noite de núpcias.

            Mais do que nada, são a cristalização de uma sociedade tradicional onde as autoridades, as crenças, os costumes não apenas se prestam, mas até exigem um traço mais forte, caricatural como  o aparecimento, na autópsia, de uma medalha da Virgem do Carmo que Santiago Nasar havia engolido aos quatro anos, entre o lodo do conteúdo gástrico.

            Construído em idas e vindas, num ritmo circular, aparentemente, lento porém cheio de surpresas, Crônica de uma morte anunciada parece ter sido escrito para a linguagem cinematográfica. Se essa linguagem conseguir, como o romance, diluir o trágico que seria a inocência de Santiago Nasar e se permitir a emergência do cômico estará fiel à intenção primeira de uma obra que se presta ao riso.

            Ao espectador caberá, como coube ao leitor, entender esse riso que está longe de ser inocente.

domingo, 16 de outubro de 1988

Diana Morán: entrelaçar de amores

            No início de 1987, morria na cidade do México onde vivia exilada, a poetisa Diana Morán. Deixara inédita uma tese de doutoramento, apresentada em 1979 no Colégio de México, que foi publicada pela Universidade Autônoma Metropolitana, após sua morte: Cien Años de soledad, novela de la desmitificación é um trabalho crítico ente os melhores que trataram da obra de Gabriel García Márques não somente pela firme e rigorosa análise como por ter se afastado de caminhos críticos já trilhados.

            O estudo do que a autora chama de imagens primárias – nascimento, desenvolvimento e morte – é o ponto de partida de sua pesquisa que enfocará o tempo, o espaço, os personagens, elementos integradores do romance. O enclausuramento dos personagens e o isolamento de Macondo levaram a pesquisadora à constatação de que no romance está, implicitamente, contida a condenação do individualismo e da incomunicação, causadoras do desgaste progressivo que aniquila a família Buendía e o espaço em que vivem.

             Desde muito jovem, como profissional e como cidadã, Diana Morán comprometeu-se com o destino de seu povo. Um compromisso que lhe norteou os atos ao longos dos anos, fazendo da poetisa o reverso das figuras que analisou na ficção   e lhe conferindo um lugar de destaque no Continente.

            Professora, poetisa, figura proeminente nos movimentos nacionais e socialistas panamenhos e latino-americanos, nunca esteve à margem do que se passava a seu redor. Sua poesia amorosa como aquela de Pablo Neruda, esteve sempre entrelaçada a uma preocupação social .

            Em “ Eva difinida”, seu primeiro poema longo, publicado em 1957, se misturam as mais perfeitas sensações femininas e um ideário de lutas. Compõe-se de dez poemas de estruturas diversas que introduzem o espanhol panamenho numa expressão lírica em que a mulher se nutre de um amor-seiva que pacifica  e alimenta: “de tua silvestre pele de hortelã-pimenta / brota a aurora da pátria pura” (poema II); “Ah! Simbiose de pátria e beijo” (poema VI); “Início de minha luz foram tuas mãos / tuas amplas mãos...latitude de pátria”( poema IX). Mesclas de sensações e sonhos aninhados num ser feminino que não se alheia na felicidade da mulher desabrochada mas vive também para a esperança de chegar ao tempo da farinha comum/ da terra prometida ( poema IV).

            Diana Morán viveu com os olhos fixos num horizonte que no Continente é, muitas  vezes, distante e noutras tantas inatingível,  para conseguir apenas o direito de retornar à sua terra. Após dezoito anos de exílio, morta, volta para nela ser enterrada. Concessão, talvez, pequena e pouca para quem legou ao Panamá um momento ímpar da poesia latino-americana que se inscreve, belíssima, no amor e no construir do Continente.

domingo, 9 de outubro de 1988

Para pensar o 12 de outubro

          Da conquista da América sabe-se de atos heróicos. Extraordinárias ações que submeteram mil seres, destruíram outros tantos e que foram imortalizadas em monumentos e pinturas e textos, cantando loas ao domínio que, então, foi estabelecido no Continente.

         Da multidão  que acompanhou os executores da vontade real, pouco se conhece. Do cotidiano, anseios e tristezas desses homens que a península ibérica, exaurindo-se relegou,  tudo se ignora.


          E a História se conta sem as nuanças da vida, sem os detalhes do dia a dia. Abstrata. Fria. Impessoal. Para que os que a fizeram possam viver, para que nos convençam de que viveram é preciso buscá-los na Literatura. A História da Conquista da América é ajudada a se reconstituir  com a leitura dos romances e, entre eles, Supay el Cristiano, Cien gotas de sangre y docientas de sudor, El hombre que trasladaba las ciudades de Carlos Droguett, romancista chileno.  Baseia-se em documentos  e imagina as esperanças e as desilusões dos que vieram para conquistar e destruir.

      No terceiro volume da trilogia, El hombre que trasladaba las ciudades, a presença desses conquistadores será fixada em rápidos traços: mãos cuidadas e envelhecidas, rosto golpeado e velho. A presença dos soldados e dos índios serão indicadas por ações: derrubar árvores, serrar madeiras, desembainhar espadas.

          No ar, os ruídos do Continente a se misturar aos ruídos dos recém-chegados. Da natureza são os sons do bosque, das cascatas, da chuva e do vento. São as vozes dos animais: o cantar dos pássaros, o grasnar dos abutres, o zumbir das moscas. Com a chegada dos conquistadores, a essas vozes se acrescentarão o ladrar dos cães, o relinchar dos cavalos e os muitos tons das vozes humanas. Serão acompanhadas pelos ruídos dos homens no seu labutar; golpes de martelo, ranger das carretas, ruídos das ferramentas e dos disparos perdidos. Em meio a esse novo universo de sons, o barulho das espadas e armaduras que se punham e se tiravam.

           Das páginas desse mundo ficcional, emergem os cenários do Continente, as lutas e o sofrimento dos homens que, embora estejam calcados em textos oficiais, se desvencilharam do esquecimento e da cristalização que o tempo lhes havia conferido.

          Nesse desvencilhar do tempo, obra do romancista, a Conquista se povoou de homens semelhantes aos de hoje. Uma aproximação que não leva ao culto dos heróis - talvez, nem houvessem existido -  nem à lástima das vítimas, embora essas, sim, tenham sido reais. Certamente,  à reflexão  que não convém esquecer   pois  em nome das verdades consideradas perfeitas, a conquista também semeou a destruição e a morte – árvores, animais, seres humanos – no solo do Continente.

domingo, 2 de outubro de 1988

Verdina, um conto de sempre

            Acaba de sair, pela Mercado Aberto, de Porto Alegre, a segunda edição de Contos de sempre de Aldyr Garcia Schlee

            Nascido em Jaguarão, às margens do rio que separa as terras brasileiras das uruguaias, ele é autor de contos que fazem reviver esse gaúcho da fronteira que mais se integra nos campos imensos  que no espaço dos limites oficiais.

            Contos de sempre se compõem de dois grupos de narrativa: “Os de ontem”, episódios das lutas travadas no território disputado pelos portugueses e espanhóis e “Os de hoje”, situados no mesmo espaço geográfico, hoje parte do território rio-grandense. Os personagens, como se fossem sempre os mesmos. Na segunda parte, degradados pelo passar do tempo e pela perda de seus valores.

            Entre as doze narrativas, sobressai, como peça valiosa e única, a primeira da coletânea: “Verdina”. Embora inusual, um nome que anuncia o personagem feminino que, também inusualmente, aparece na narrativa e na vida do gaúcho Pedro: Uma negra de olhos azuis chamada Verdina. E um cumpridor de nome Pedro. Ela, de certo, filha de patrão ou patrãozito do outro lado do rio, filha de mucama manceba do dono, de olhos azuis; ele, sozinho com o rancho, o cavalo, com a divisa que levava no chapéu – sozinho como órfão, como guaxo e como agregado. E o campo verdiando em volta, iluminado de sol e de vida.

            Presença feminina que se agranda pelos olhos e pelo sentir do gaúcho. E, a partir dessa presença, também a ausência e uma solidão que aumenta. Enorme, enexpugnável nesses dois seres sós em que todas as palavras são sepultadas por prudência, por orgulho, consciência de classe e racismo que irão congelar os anseios do homem.

            A narrativa acompanha umas poucas horas – as mais densas, talvez as mais luminosas e cruéis da vida de Pedro e, habilmente, entrelaça o passado e o presente. Passado que se faz presente pela força das emoções. Presente que nas sensações irá se prolongar para sempre. O passar do tempo e a distância percorrida, indicados por uma ação sem  verbos:  os corpos unidos no galope, no trote, na marcha, no galope e no trote, na marcha, no passo....

            Depois, simultâneo com a ação, o dar-se conta do que acontecia, do que lhe acontecia. Pedro, na medida que desensilhava o cavalo, que o libertava dos arreios, ia, ele próprio, se desnudando diante de si mesmo, compreendendo-se entregue. Entrega, porém, que ele não se permite, mesmo vendo a dança amorosa do casal de bem-te-vis no ar e mesmo vendo de perto a cova de  um casal de corujinhas do campo. Embora com o peito apertado, ele recusa o destino sem a solidão.

            Da mulher, de Verdina, pouco se diz: de seu jeito de ser fêmea, de seus olhos: mais  que vermelhos de choro, uns olhos que sorriem, se escondem, se levantam brilhantes na linguagem da conquista.

            “Verdina”, sete páginas emarcadas no primeiros anos da História do Rio Grande do Sul -  e as mortes pela degola, e as lutas, e o destino das mulheres – criando um momento de raro valor na Literatura do Continente. E dois seres que mais do que símbolos de uma época significam o eterno desencontro que pode acontecer entre um homem e uma mulher.

sábado, 23 de julho de 1988

Carlos Droguett: do imaginário ao real

             Eloy foi traduzido em vários idiomas e se constituiu o livro de Carlos Droguett que mais trabalhos críticos e comentários suscitou. No entanto, o autor chileno não se deixou abater pelo seu exílio e continuou a escrever desesperadamente, assinando algumas obras que, sem dúvida, irão se inscrever entre o melhor que se produziu na ficção deste século.

            Patas de perro é uma delas. Em espanhol, foi publicada em 1965. Traduzida para o francês, apareceu em 1981 pela Denoël de Paris. Tanto pela crueza de seu argumento quanto à forma como se estrutura a narrativa, se constituiu um momento muito especial não apenas na Literatura Chilena contemporânea como na Literatura do Continente latino-americano.

            Patas de perro é a história   de um ser extraordinariamente anormal onde se unem o corpo de um belo menino e umas belas patas de cão. É claro que ele não era um menino disforme, não, seu corpo era firme e esbelto, delgado e duro, quase atlético, apesar de se alimentar tão mal, e suas pernas eram um par de soberbas patas de cão, robustas e orgulhosas, eretas e quase feras, e na criatura se juntavam de um jeito tão natural que parecia que ele nascera de uma geração muito antiga e refinada, de uma maravilhosa família  de seres humanos com patas de cão.

            Um  “monstro horrível, “um belo menino, “um cão horrível”. A existência de Bobi pode ser questionada, inclusive a partir das palavras do narrador: alguns dizem que estou ficando louco e que o menino nunca existiu. Inquestionável, no entanto,  é a violência sofrida pelo menino-cão. A figura de Bobi é fruto d e uma fantasia agressiva e bastaria para empalidecer toda a realidade ficcional que o encarcera. Porque, não sendo como os outros, a sua história  é uma história de múltiplas vexações: ora ele é exibido como um monstro numa vitrina, ora jogado no chão com as mãos amarradas, ora preso num leito de hospital ou entre as grades de um canil.

            Situações que, na verdade – abstraindo-se a comovente figura do menino cão – com maiores ou menores semelhanças, fazem parte do cotidiano do Continente.

            Desde o início de sua carreira, Carlos Droguett se atribuiu a missão de delatar as humilhações de que o homem é vítima. Aqueles que lhe conhecem a obra   não ignoram, porém, a profundidade com que ela se enraíza no real. E, ancorada na realidade, o mundo de Patas de perro, queiramos ou não, é o mundo dos latino-americanos.

sábado, 16 de julho de 1988

Os cocacolizados

           O General Omar Torrijos, dirigente do Panamá que ousou lutar para que o Canal do Panamá passasse a ser dos panamenhos, morreu no dia 31 de julho de 1981 num acidente aéreo cujas causas não foram esclarecidas.

          Mi general Torrijos, um livro testemunho sobre ele, recebeu, em 1987, o Prêmio Casa de las Américas.  Seu autor, José de Jesús Martinez, lecionava Filosofia na Universidade panamenha quando o então tenente-coronel Torrijos assumiu o poder em 1968. Resistente ao golpe militar  José de Jesús Martinez  perdeu o seu lugar na Universidade e foi procurar trabalho em Honduras. Ao regressar, algum tempo depois a seu país, foi reintegrado à Universidade como professor de Matemática, disciplina que fora estudar em Paris. Na Universidade, buscou refúgio ( é a palavra que emprega) num grupo de cinema experimental  e, um certo dia, foi com o grupo até a Base Militar do Rio Hato  filmar a chegada de estudantes para uma jornada de trabalho. Insone, de madrugada, se levanta e atento a um ruído desconhecido que se aproxima, acaba por perceber que era o canto de mil recrutas recém-chegados à Base. Um canto que expressava a indignação pela presença dos norte-americanos na zona do canal e um entusiasmo ímpar na luta para tornar possível o sonho de ver a bandeira panamenha em cada canto do país. O sentido do canto, os valores e o entusiasmo nele contidos mostraram ao então professor universitário um caminho: tábua de salvação para o naufrágio existencial em que se encontrava.

                        E, aos quarenta e cinco anos se alista como recruta. No entanto, não dará baixa como havia previsto e continuará no exército. Como cabo e depois  como  sargento irá acompanhar o General Torrijos numa trajetória que busca, mais do que tudo, a construção do Panamá. Sua opção, sem dúvida, longe de ser comum, sem sempre será entendida pelos seus pares. Ao fazer uma crítica a um dos assessores do governo panamenho  é chamado por ele de carregador de malas do General. Ao dirigir o trânsito para dar passagem ao carro do dirigente panamenho, é visto por um professor universitário, casualmente no local, que ficou indignado ao constatar, com os próprios olhos, a função exercida pelo colega. Aceitar “  tal função”e outras que lhe são atribuídas fazem de José de Jesús Martinez um homem curioso nesta América preconceituosa, duramente estratificada em classes onde é tão  freqüente ser  o trabalho considerado vergonhoso.

                        O autor de Mi General Torrijos é, verdadeiramente, um fac-totum  do General. Ele atua onde a sua atuação é necessária sem se preocupar pelo status que possa ter o trabalho que realiza ou do status que o trabalho possa lhe dar.  Preocupa-se pelos frutos que cedo ou tarde possa desse trabalho advir e nisso está em uníssono com aquele a quem serve. Para ambos, existem, prioritariamente, metas muito claras a serem atingidas para fazer do Panamá um país.

                        Mi General Torrijos trata  de muitas coisas além do assunto primeiro, a figura do General. Construída a partir de gestos, frases, atitudes particularmente representativas do que se imagina ser ou do que foi estipulado ser a imagem do latino-americano, sua figura  é a de um homem que tem olhos para o ser humano, que por ele é capaz de se comover e por quem nutre um profundo respeito. Em qualquer circunstância. Mesmo naquelas em que tal respeito poderia parecer menos importante. Um exemplo disso é ter pedido, certa vez, a José de Jesús Martinez  que não o fizesse passar vergonha como o fizera na visita  a uma Universidade do Havaí, dirigida por Mórmons. Alguém dissera que o dirigente religioso da seita falava com Deus em inglês, asserção que provocou o riso de José de Jesús Martinez,  desagradando  Omar Torrijos, para quem mesmo esse tipo de convicção merecia respeito.

                        Entre um fato e outro, o autor de Mi General Torrijos vai expondo o pensamento do General e suas convicções quanto ao Tratado do Canal. Que lhe provoca,

 como todas as questões que envolvem não só  o seu país como  todos da  América Latina, um sentimento definitivo: o ódio contra o imperialismo e contra os que a ele se submetem passivamente, prazeirosamente. Aqueles, no dizer de José de Jesús Martinez cujos olhos brilham ao voltarem dos Estados Unidos. Os cocacolizados, como os chamava o General. Que, inclusive, se expressam num idioma híbrido que no livro está registrado nesse exemplar diálogo: “darling, donde están los children? – Están en el swimmming pool”.

                     Um diálogo que, igual ou semelhante, pode ser ouvido em muitos espaços da América Latina onde, certamente, menos freqüente é ouvir-se  vozes que estejam em acorde com  realidades nem sempre ideais mas que deveriam ser percebidas e dar origem à mudanças. Até porque, quando essas vozes se levantam, muitos são os interesses em fazê-las calar. E os métodos para tal são sobejamente conhecidos: bolsas de estudo, privilégios

financeiros, auxílios  tecnológicos, modelos culturais, apoio militar, eliminação física.      Raros são os que, no Continente, mensuram suas implicações. E a esses há que neutralizar.

                    Omar Torrijos teve morte violenta.

                    Alguns anos antes ouvira de um cacique indígena uma parábola: os homens devem partir, não aos empurrões, mas como esses velhos troncos que o mar cobre e levanta e que a maré leva embora lentamente. Assim, diz José de Jesús Martinez é que o General gostaria de ter partido.  Não desfeito e carbonizado como o deixou o inimigo.

sábado, 9 de julho de 1988

América Latina: 500 anos de conquista

          A propósito da publicação de O século do vento, terceiro volume da trilogia Memórias do Fogo de Eduardo Galeano, Emir Sader na revista Senhor , número 375  de 30 de maio de  1988, fala dessa situação incongruente que é a ignorância cultivada pelos  brasileiros em relação ao restante da América Latina. Constatação que pode ser entendida por alguns: aqueles, poucos, cujas condições financeiras e culturais permitem um interesse não restrito apenas às questões de sobrevivência que afligem a maioria dos brasileiros.

          No entanto, esse desconhecimento que os latino-americanos mantém a respeito de seus vizinhos, que tanto pode ser fruto de ignorância como de um desinteresse originada de interpretações ainda presas a uma visão de mundo colonizada – irá levar a determinadas opções e ao endosso de outras, por vezes, alienígenas. Se informações sobre o que se passa na América Latina fossem divulgadas, se houvesse o hábito de refletir sobre o significado dos acontecimentos, sem dúvida, tais posicionamentos poderiam deixar de ser indiferentemente passivos e, inclusive, passar a ser reformuladores.

          Com o desconhecimento do que se passa na América Latina devido, sobretudo, a um sem número de obstáculos, continua o Novo Mundo a receber, quase sempre, informações através de agências noticiosas de outros continentes que, obviamente, decidem o quê e o quanto deve ser divulgado..

          Tal situação torna explicável a criação do “Movimento América : 500 anos de conquista” ter sido dado a conhecer no Brasil um ano depois de ter sido criado, em 1986, na Itália. Nesse Movimento se insere o projeto de trabalho “12 de outubro  de 1992: 500 anos de conquista da América” que se constitui uma proposta de reflexão sobre o real significado da descoberta do Novo Mundo.  Novo Mundo que já possuía, em 1550, quarenta mil anos de História e com  uma imensa população que os chamados civilizados, no intuito de efetivar o assim chamado ato civilizatório, reduziram à terça parte. Nesse Projeto estão envolvidos quarenta e dois países d as Américas e da Europa, inclusive o Brasil cujo Comitê, estabelecido em Campinas, divulgou suas linhas gerais numa revista trimensal, publicada pela Editora  Ícone que dará guarida aos trabalhos inseridos no Projeto, guardando no título a idéia primeira: América latina: 500 anos de conquista.

          No seu primeiro número, foram publicados oito trabalhos assinados por Paulo San Martin, Eduardo Galeano, José Luiz Del Rio, Rodrigo Andréas Rivas, Florestan Fernandez, Rodrigo e Doroti Schwade e Martinho Lutero . Seu denominador comum poderia ser resumido no título de Eduardo Galeano: “Direito dos povos e direito à vida”, pois em cada um deles se assinalam as mortes e as destruições inscritas na história do Continente para alimentar a sanha e a cobiça dos conquistadores.

          Palavras mais do que nunca necessárias nesse Continente – excetuando Cuba e, esporadicamente um outro espaço – conduzido por interesses sempre estanhos e escusos ao  desconhecimento de si  mesmo, das próprias forças e mesmo das próprias fraquezas.

          Quando vozes se alçam para louvar a descoberta é, também, sobremodo importante  que se alçam as que irão quebrar um silêncio que, ao contrário, continuará a pairar sobre os heróis e os mártires que não se inscrevam na História oficial.

          O projeto Äméica Latina: 500 anos de conquista abre um caminho. Aqueles que rejeitam as trilhas conhecidas poderão optar por ele. O momento é, sem dúvida, mais do que nunca propício para que a História da América seja escrita a partir de um outro foco narrativo.    

quinta-feira, 7 de julho de 1988

A crítica e o Continente

          Isolados uns dos outros por razões que, muitas vezes, eles próprios desconhecem, os países latino-americanos só, excepcionalmente, chegam a conhecer a produção literária de, pelo menos, seus vizinhos. Uma produção literária que seria de valiosa leitura não apenas por espelhar destinos comuns, mas, principalmente, porque possui peças literárias de raro valor.


          No entanto, elaborada num mundo conturbado, quase sempre profundamente enraizada num cotidiano de lutas, trata-se de uma produção literária que somente poderá ser perfeitamente mensurada se inserida no contexto no qual foi criada ou  do qual se originou. Um pressuposto que, em princípio, deve ser válido para qualquer texto literário que se examine, pois, do contrário, o estudioso do século XX estará muito próximo do estudioso medieval que discute, entre quatro paredes, conceitos abstratos enquanto lá fora a população é dizimada pela peste e pela fome.  E, mais, ignorar o contexto no qual a obra é gerada, ainda que seja em territórios onde seja possível viver sem presenciar a miséria e a opressão do indivíduo, conduz a reduzir, consideravelmente, as possibilidades de apreendê-la no seu todo. Na América Latina é, inclusive, eludir responsabilidades pois a miséria e a opressão se constituem uma presença constante.

          Fugir às posições lúdicas ou estereotipadas que tem sido o apanágio – abstraindo-se as sempre honrosas exceções – de muitas instituições universitárias representa, na área dos estudos literários, enfrentar a mais difícil das opções: assumir a realidade vigente. Parece que os muitos anos de existência e contar entre seus quadros com elementos que se constituem – queira-se ou não – a elite do saber apenas reafirmou a trilha a seguir: estar a serviço das classes dominantes, impedindo-se de ver o que acontece a seu redor  e constatar as incongruências que ali reinam.  E que, finalmente tudo se resuma em, tradicionalmente, confirmar que além da na análise dos textos, nada mais compete fazer.

          Na verdade, a América Latina segue seu caminho de violências e tiranias regidas por boas consciências que se auto-justificam ou se inter-justificam em palavreado  repetido através de gerações a confirmarem privilégios e desfavores. E os textos elaborados no compromisso com o ser humano – que são tantos e de tão grandes qualidades – exigem, certamente, uma leitura que não ignore os destinos do homem latino-americano e, sobretudo, que permita ou que leve a uma reflexão sobre ele.

          Porque as injustiças em nome de antigas verdades, a violência no relacionamento entre as classes, a fome, a doença, o analfabetismo não devem ser    de responsabilidade exclusiva dos dirigentes de um país, mas de  todos os seus cidadãos. E sempre.

sábado, 16 de abril de 1988

O “gaúcho novo” de Serafin J. García

            Em 1936, Serafin J.García, nascido em Treinta  y Três, cidade uruguaia próxima do Brasil, publicava Tacuruses. Depois, livros de contos, de poemas, antologias da Literatura Nativista do Uruguai se seguiram. Porém, foi Tacuruses que mereceu mais de dez edições no seu país e extrapolou  fronteiras para fazer admiradores no Rio Grande do Sul como bem o registra, no dia 26 de março de 1974, quando ainda existia o velho Correio do Povo, o cronista Sérgio da Costa Franco.

            Os poemas de Tacuruses tratam da querência, do botequim, do amor, das brigas, das taperas. Tem como cenário, o campo. E como expressão, a linguagem gauchesca. Um, entre tantos livros de poemas sobre o gaúcho. Mas, um livro que se afasta da trilha conhecida, ao enunciar os novos momentos vividos por aquele que foi o dono dos pampas e, progressivamente, vai se transformando em agricultor ou vai sendo marginalizado de seu trabalho campeiro para dar lugar aos que semeiam. E’o “gaúcho novo”, dizem os críticos.  O seu protótipo está retratado no poema “Orejano” (orelhano), termo que no tempo da dominação ibérica designava os animais que não haviam recebido a marca da Coroa, dona das terras e de  suas riquezas e que por extensão passou a significar, também “livre”, “sem dono”.

            O gaúcho que se expressa no poema de Serafin J.García é aquele que sobreviveu à limitação dos horizontes pelas cercas de arame farpado, submetendo-se à leis da civilização, da Igreja, dos costumes. Deixou de ser aquele gaúcho nômade que roubava a mulher, levando-a na garupa do cavalo para abandoná-la quando o interesse fora perdido, ignorando  o filho que, por ventura, dessa união viesse a nascer; ou, aquele que seguia,  sem muito entender os porquês, o caudilho eventual.

            O gaúcho de “ Orejano” constituiu família e se fixou na terra. Porém, o fez a sua maneira, negando-se a passar por um juiz que lhe oficializasse a união ou pela igreja que lhe batizasse  os filhos; negando-se à submissão e ao silêncio; já não o convencem com quatro mentiras / os graudões que chegam da cidade / para elogiar divisas já desmerecidas / e fazer promessas que nunca cumpriram. Essa recusa  dos assim chamados valores tradicionais, presente em cada poema de Tacuruses, verdadeiro enunciado de protesto contra as leis que regem o viver social, irá  se fortalecer em Burbujas, livro de contos, publicado quatro anos depois. O campo continua sendo o espaço. E o assunto, o contrabando, o drama da prostituição ou da criança abandonada, a situação passiva da mulher e a transformação do homem das lides do campo para o homem que planta.

            Nos poemas e nos contos se retrata um mundo dividido: o poder econômico dos estancieiros servidos pelo poder público; a força de trabalho exercida pelos peões e pela criadagem quase igualados na pobreza aos marginais ( a prostituta, o ladrão de ovelhas, o contrabandista). Não mais  um espaço aberto e sem dono, campos verdes a se perderem no infinito e o gaúcho altivo e brigão, dominando a paisagem. A terra dividira-se em propriedades e nela só havia lugar par aquele que aceitasse as novas regras.

            O chamado “gaúcho novo” testemunha a pobreza, a exploração de que são vítimas, sobretudo, as mulheres e as crianças, os homens cujo trabalho não mais interessa aos meios de produção. E a seus olhos abertos não mais se escondem  as “bicheiras” do Sistema;  sua voz se ergue para cantar verdades. Que se perdem no vazio.

sábado, 9 de abril de 1988

Um poema para os negros

            E’comumente aceito entre os teóricos da Literatura que, ao se iniciar o século XX, havia um cansaço europeu em relação ao já visto e ao já conhecido, cansaço este que levou à busca de novos e estimulantes motivos de inspiração.

            Os trabalhos  de Leo Frobenius sobre os fetiches africanos e a visita de Louis Mitchell à Europa, levando o gosto pelo jazz que se havia apoderado dos norte-americanos,  oferecerão um tema até então ignorado e que irá se concretizar, quando, em 1921, Blaise Cendrars publica a sua famosa Antologia Negra.

            O interesse pelo negro, instalado na Europa e nos Estados Unidos chega, então, à América Hispânica.  Artistas e escritores passam a ter olhos para o que, na verdade, há muito existia ao seu redor e recriaram uma poesia que vinha sendo cultivada, esporadicamente, desde o período da escravidão com um tratamento americano e original,

            Espalhado pelo Continente americano essas novas expressões poéticas, ora  se aproximam do negro atraído pelo seu exotismo, ora  se detém no seu mundo interior misterioso e dramático. E, a grosso modo,farão surgir três vertentes bem definidas: a manifestação poética de tipo erudito cuja linguagem culta descreve o negro como elemento pitoresco; outra, de caráter popular  e folclórico que usa a expressão dos negros na busca de efeitos musicais e rítmicos ; e uma terceira, de nítida intenção política, preocupada com o perfil social do negro.

            Em Cuba e em Puerto Rico principalmente, apareceram, criados por grandes poetas, poemas que ultrapassaram o modismo e permaneceram como excelentes textos literários.O que aconteceu em quase todos os países da América -  inseridos numa ou noutra tendência - mesmo naqueles  onde a presença do negro não é estatisticamente representativa, houve quem poetasse por ele ou nele se inspirasse.

            Assim, no Chile, onde se pode considerar nula a presença de indivíduos de raça negra, a Literatura pode se orgulhar de possuir um dos mais belos poemas de temática negra: “Bailando com los negros”, que faz parte de Canción de Gesta (La Habana, Imprenta Nacional de Cuba, 1960) e, também, da antologia Poesia negra de América (México, Ediciones Era, 1976).     Sem o convívio com os negros, e em  conseqüência, sem fonte próxima de inspiração, foi obedecendo a sua visão de mundo, voltada para o social, que esse poema de Pablo Neruda denuncia os preconceitos e maus tratos de que sempre foram vítimas os negros do Continente americano . O Poeta esteve em Cuba em 1942 e, talvez, “Bailando com los negros” seja um poema circunstancial:  conhecer de perto também as injustiças com o homem negro o incitaram a com  ele se irmanar . Curiosamente, no poema, irmanar-se na dança e não na preconização da luta que iria advir anos depois com a Revolução cubana. Um irmanar-se que sempre foi  expressão do poeta chileno em relação às injustiças e misérias das quais foi ao longo de toda a sua vida um portentoso adversário.

            Na década de 50,  Pablo Neruda escreveria: Porque onde não tenha voz um homem / ali, minha voz / Onde os negros receberam pauladas / eu não posso estar morto.



Dançando com os negros

                                          Negros do Continente, ao Novo Mundo

                                          destes o sal que lhe faltava:

                                          sem negros não respiram os tambores

                                          sem negros  os vilões não tocam.

                                          Imóvel era   nossa verde América

                                          até que se moveu como palmeira

                                          quando nasceu de um casal de negros

                                          o baile de seu sangue e sua graça/

                                          E depois de sofrer tantas misérias

                                          e de cortar até morrer, a cana

                                          e de cuidar de porcos lá no mato

                                          e de carregar as pedras mais pesadas

                                          e de lavar pirâmides de roupa

                                         e de subir carregados as escadas

                                          e de parir sozinha no caminho

                                          e de não ter prato e nem colher

                                          e de receber mais pauladas, que salário

                                          e de sofrer a venda da irmã

                                          e de moer farinha todo um século

                                          e de correr um dia por semana

                                          e de correr como um cavalo, sempre

                                          repartindo grandes caixões de alpargatas

                                          manejando a vassoura e o serrote,

                                          e cavando caminhos e montanhas,

                                          deitar-se cansados, com a morte,

                                          e viver outra vez cada manhã

                                          cantando como ninguém cantaria

                                          cantando com o corpo e com a alma.

                                          Coração meu, para dizer isto

                                          parte-me a vida e a palavra

                                          e  não posso continuar porque prefiro

                                          ir embora com as palmeiras africanas

                                          madrinhas de música terrestre

                                          que agora me chama da janela:

                                          e me vou dançar pelos caminhos

                                          com meus irmãos negros de La Habana.

                                                                 (Tradução de Cecília Zokner)