sábado, 16 de julho de 1988

Os cocacolizados

           O General Omar Torrijos, dirigente do Panamá que ousou lutar para que o Canal do Panamá passasse a ser dos panamenhos, morreu no dia 31 de julho de 1981 num acidente aéreo cujas causas não foram esclarecidas.

          Mi general Torrijos, um livro testemunho sobre ele, recebeu, em 1987, o Prêmio Casa de las Américas.  Seu autor, José de Jesús Martinez, lecionava Filosofia na Universidade panamenha quando o então tenente-coronel Torrijos assumiu o poder em 1968. Resistente ao golpe militar  José de Jesús Martinez  perdeu o seu lugar na Universidade e foi procurar trabalho em Honduras. Ao regressar, algum tempo depois a seu país, foi reintegrado à Universidade como professor de Matemática, disciplina que fora estudar em Paris. Na Universidade, buscou refúgio ( é a palavra que emprega) num grupo de cinema experimental  e, um certo dia, foi com o grupo até a Base Militar do Rio Hato  filmar a chegada de estudantes para uma jornada de trabalho. Insone, de madrugada, se levanta e atento a um ruído desconhecido que se aproxima, acaba por perceber que era o canto de mil recrutas recém-chegados à Base. Um canto que expressava a indignação pela presença dos norte-americanos na zona do canal e um entusiasmo ímpar na luta para tornar possível o sonho de ver a bandeira panamenha em cada canto do país. O sentido do canto, os valores e o entusiasmo nele contidos mostraram ao então professor universitário um caminho: tábua de salvação para o naufrágio existencial em que se encontrava.

                        E, aos quarenta e cinco anos se alista como recruta. No entanto, não dará baixa como havia previsto e continuará no exército. Como cabo e depois  como  sargento irá acompanhar o General Torrijos numa trajetória que busca, mais do que tudo, a construção do Panamá. Sua opção, sem dúvida, longe de ser comum, sem sempre será entendida pelos seus pares. Ao fazer uma crítica a um dos assessores do governo panamenho  é chamado por ele de carregador de malas do General. Ao dirigir o trânsito para dar passagem ao carro do dirigente panamenho, é visto por um professor universitário, casualmente no local, que ficou indignado ao constatar, com os próprios olhos, a função exercida pelo colega. Aceitar “  tal função”e outras que lhe são atribuídas fazem de José de Jesús Martinez um homem curioso nesta América preconceituosa, duramente estratificada em classes onde é tão  freqüente ser  o trabalho considerado vergonhoso.

                        O autor de Mi General Torrijos é, verdadeiramente, um fac-totum  do General. Ele atua onde a sua atuação é necessária sem se preocupar pelo status que possa ter o trabalho que realiza ou do status que o trabalho possa lhe dar.  Preocupa-se pelos frutos que cedo ou tarde possa desse trabalho advir e nisso está em uníssono com aquele a quem serve. Para ambos, existem, prioritariamente, metas muito claras a serem atingidas para fazer do Panamá um país.

                        Mi General Torrijos trata  de muitas coisas além do assunto primeiro, a figura do General. Construída a partir de gestos, frases, atitudes particularmente representativas do que se imagina ser ou do que foi estipulado ser a imagem do latino-americano, sua figura  é a de um homem que tem olhos para o ser humano, que por ele é capaz de se comover e por quem nutre um profundo respeito. Em qualquer circunstância. Mesmo naquelas em que tal respeito poderia parecer menos importante. Um exemplo disso é ter pedido, certa vez, a José de Jesús Martinez  que não o fizesse passar vergonha como o fizera na visita  a uma Universidade do Havaí, dirigida por Mórmons. Alguém dissera que o dirigente religioso da seita falava com Deus em inglês, asserção que provocou o riso de José de Jesús Martinez,  desagradando  Omar Torrijos, para quem mesmo esse tipo de convicção merecia respeito.

                        Entre um fato e outro, o autor de Mi General Torrijos vai expondo o pensamento do General e suas convicções quanto ao Tratado do Canal. Que lhe provoca,

 como todas as questões que envolvem não só  o seu país como  todos da  América Latina, um sentimento definitivo: o ódio contra o imperialismo e contra os que a ele se submetem passivamente, prazeirosamente. Aqueles, no dizer de José de Jesús Martinez cujos olhos brilham ao voltarem dos Estados Unidos. Os cocacolizados, como os chamava o General. Que, inclusive, se expressam num idioma híbrido que no livro está registrado nesse exemplar diálogo: “darling, donde están los children? – Están en el swimmming pool”.

                     Um diálogo que, igual ou semelhante, pode ser ouvido em muitos espaços da América Latina onde, certamente, menos freqüente é ouvir-se  vozes que estejam em acorde com  realidades nem sempre ideais mas que deveriam ser percebidas e dar origem à mudanças. Até porque, quando essas vozes se levantam, muitos são os interesses em fazê-las calar. E os métodos para tal são sobejamente conhecidos: bolsas de estudo, privilégios

financeiros, auxílios  tecnológicos, modelos culturais, apoio militar, eliminação física.      Raros são os que, no Continente, mensuram suas implicações. E a esses há que neutralizar.

                    Omar Torrijos teve morte violenta.

                    Alguns anos antes ouvira de um cacique indígena uma parábola: os homens devem partir, não aos empurrões, mas como esses velhos troncos que o mar cobre e levanta e que a maré leva embora lentamente. Assim, diz José de Jesús Martinez é que o General gostaria de ter partido.  Não desfeito e carbonizado como o deixou o inimigo.

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