domingo, 2 de outubro de 1988

Verdina, um conto de sempre

            Acaba de sair, pela Mercado Aberto, de Porto Alegre, a segunda edição de Contos de sempre de Aldyr Garcia Schlee

            Nascido em Jaguarão, às margens do rio que separa as terras brasileiras das uruguaias, ele é autor de contos que fazem reviver esse gaúcho da fronteira que mais se integra nos campos imensos  que no espaço dos limites oficiais.

            Contos de sempre se compõem de dois grupos de narrativa: “Os de ontem”, episódios das lutas travadas no território disputado pelos portugueses e espanhóis e “Os de hoje”, situados no mesmo espaço geográfico, hoje parte do território rio-grandense. Os personagens, como se fossem sempre os mesmos. Na segunda parte, degradados pelo passar do tempo e pela perda de seus valores.

            Entre as doze narrativas, sobressai, como peça valiosa e única, a primeira da coletânea: “Verdina”. Embora inusual, um nome que anuncia o personagem feminino que, também inusualmente, aparece na narrativa e na vida do gaúcho Pedro: Uma negra de olhos azuis chamada Verdina. E um cumpridor de nome Pedro. Ela, de certo, filha de patrão ou patrãozito do outro lado do rio, filha de mucama manceba do dono, de olhos azuis; ele, sozinho com o rancho, o cavalo, com a divisa que levava no chapéu – sozinho como órfão, como guaxo e como agregado. E o campo verdiando em volta, iluminado de sol e de vida.

            Presença feminina que se agranda pelos olhos e pelo sentir do gaúcho. E, a partir dessa presença, também a ausência e uma solidão que aumenta. Enorme, enexpugnável nesses dois seres sós em que todas as palavras são sepultadas por prudência, por orgulho, consciência de classe e racismo que irão congelar os anseios do homem.

            A narrativa acompanha umas poucas horas – as mais densas, talvez as mais luminosas e cruéis da vida de Pedro e, habilmente, entrelaça o passado e o presente. Passado que se faz presente pela força das emoções. Presente que nas sensações irá se prolongar para sempre. O passar do tempo e a distância percorrida, indicados por uma ação sem  verbos:  os corpos unidos no galope, no trote, na marcha, no galope e no trote, na marcha, no passo....

            Depois, simultâneo com a ação, o dar-se conta do que acontecia, do que lhe acontecia. Pedro, na medida que desensilhava o cavalo, que o libertava dos arreios, ia, ele próprio, se desnudando diante de si mesmo, compreendendo-se entregue. Entrega, porém, que ele não se permite, mesmo vendo a dança amorosa do casal de bem-te-vis no ar e mesmo vendo de perto a cova de  um casal de corujinhas do campo. Embora com o peito apertado, ele recusa o destino sem a solidão.

            Da mulher, de Verdina, pouco se diz: de seu jeito de ser fêmea, de seus olhos: mais  que vermelhos de choro, uns olhos que sorriem, se escondem, se levantam brilhantes na linguagem da conquista.

            “Verdina”, sete páginas emarcadas no primeiros anos da História do Rio Grande do Sul -  e as mortes pela degola, e as lutas, e o destino das mulheres – criando um momento de raro valor na Literatura do Continente. E dois seres que mais do que símbolos de uma época significam o eterno desencontro que pode acontecer entre um homem e uma mulher.

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