sábado, 19 de dezembro de 1987

Crônica de uma morte anunciada

            Já em exibição na Europa, o filme de Francisco Rossi, baseado no livro de Gabriel García Márquez, publicado em 1961 e lançado como um produto de consumo, tal o aparato publicitário que o cercou antes e no momento de sua aparição. Na verdade, com este seu último romance, Crônica de uma morte anunciada,  o autor colombiano quebra o silêncio que se seguiu à publicação de El otoño del patriarcaou seja, um silêncio de seis anos e que, até agora, tem sido explicado por acontecimentos extra-literários. Crônica de uma morte anunciada mal chega às duzentas páginas e admite, somente, uma leitura ininterrupta. Dizer isto, até pode causar estranheza pois foi dito, tantas vezes que já é lugar comum repetir, tratar-se de um livro que se inicia desvendando o seu final: No dia em que o iriam matar, Santiago Nasar  se levantou às 05:30 da manhã... Nada mais preciso, então, do que o título desta narrativa de fatos presenciados por  outros que não o narrador. Ele apenas recompõe, vinte e sete anos depois, o que lhe é transmitido.

            A morte anunciada no título e nas primeiras linhas da narrativa é a de Santiago Nasar. Duas horas antes de se levantar para assistir à chegada do Bispo na cidade, já era voz corrente a ameaça que pesava sobre ele. Concretizada, morreu na condição de terceiro elemento de um triângulo amoroso que ele próprio ignorava existir, em nome de uma honra que não fora ofendida, pelas mãos dos quais não desejavam matar e diante de uma cidade passivamente atônita. Na narrativa cronológica de seus passos, na explicação de cada uma das omissões e verdades se entremeiam informações sobre o assassinato do jovem ( rico, religioso, caçador, mulherengo, habituado ao sangue dos bezerros que castrava e ao dos animais inermes que matava)   e sobre os tipos que o rodeiam (figuras imutáveis que a Literatura recria e torna a recriar   e que, de repente ou repentinamente, a vida faz existir e a sociedade leva a  atuar: o delegado, o padre, o militar, a prostituta, a criada, a mãe, a noiva. E sobre as duas outras figuras, partes do triângulo que, digamos, existiu. São tipos que sobressaem  em meio a outros  quarenta. Todos eles apresentados nominalmente . alguns por suas funções na narrativa, outros pela sua função na micro sociedade do povoado. Com exceção de Santiago Nasar ( 21 anos, esbelto e pálido, pálpebras árabes e cabelos cacheados, mão de gavião carnívoro)  e de Bernardo San Román (tinha uma cintura estreita de vaqueiro, os olhos dourados e a pela crestada pelo salitre) , esses personagens todos se definem por uns poucos traços, umas poucas palavras pronunciadas e, sobretudo, por suas ações: o General Petrônio San Román usando o barco de cerimônias do Congresso para estar presente no casamento do filho; as famílias, colocando os enfermos na passagem do Bispo para que recebessem a bênção e se curassem; a exibição do lençol na manhã seguinte à noite de núpcias. Cristalizações de um meio conservador onde a autoridade, as crenças, os costumes não apenas se prestam, mas até exigem um traço mais forte, caricatural. E’o aparecimento, na autópsia do jovem assassinado, entre o lodo do conteúdo gástrico, de uma medalha da Virgem  do Carmo  que ele havia engolido aos quatro anos,. Ou a doença de Pedro Vicário que resistiu aos métodos mais brutais do tratamento militar e às injeções de arsênico e às purgações de permanganato do doutor Dionísio Iguarán e somente foi curada na cadeia.

            O cronista não questiona. Limita-se a desejar entender a fatalidade, oferecendo evocações, lembranças, numa linguagem sem sinuosidades, sem meandros, despojada,  se uma comparação for feita com a sinfonia barroca do livro anterior. Porém, não suficientemente despojada a ponto de privar o texto das centelhas de um emprego inusitado do adjetivo hiperbólico , do fantástico, do eufemístico. Perfeita, ao diluir o trágico que seria a inocência de Santiago Nasar, ao fazer emergir o cômico, o absurdo das coincidências, das explicações, das verdades de cada um.

            Construída em idas e vindas que enovelam o leitor, é uma narrativa destinada ao sucesso de repetidas edições embora tenha que enfrentar o paralelo inevitável com a definitiva obre-prima  que é Cien Años de soledad, Paralelo inevitável e desnecessário  porque  Crônica de uma morte anunciada  é, também, certamente, uma obra única ainda que, assim como nas outras ficções  do auto, o lírico se entremeie à burla e à  troça. Ao leitor  cabe entender  que tais recursos  possuem significados bem mais amplos do que os simples sorrisos que provocam.

sábado, 12 de dezembro de 1987

Memória do fogo: a sedução da palavra

            No início, são as primeiras vozes, os mitos do nascimento da América. Vozes dos homens, dos animais, dos deuses, dos presságios, da profecia: Muita miséria haverá nos anos do império da   cobiça. Os homens serão escravos. Triste estará o rosto do sol. Logo, o velho novo mundo, no qual chegam os conquistadores ibéricos. Corre o sangue, cumpre-se a profecia. Delineia-se o mapa da América e nele se incrustam não as ações heróicas mas aquelas realizadas quando os heróis são simplesmente homens.

            Ignorados, impensados momentos de História da América que vão se justapondo – pequenas peças de mosaico,  diz Eduardo Galeano -   até oferecer uma verdade cujo sentido difere daquele  que tradicionalmente (oficialmente) é dado a conhecer. Narrativa de situações extremas em que se perderam os conquistadores da América ( em que foram destruídos os conquistados). Narrativas de estados de alma. Agir e sentir – apenas o essencial –  a entrelaçar-se  para tecer um contorno da América que se afasta daquele já conhecido.

            Nada foi inventado nesse livro de História cujas fontes documentais são indicadas sob cada um dos textos. E’ na maneira de escrever Memória do fogo que Eduardo Galeano leva ao leitor  não apenas o que aconteceu no Continente mas, também, os sons, os perfumes, as cores, as formas, as cenas, as paisagens, os personagens e os fatos. E’ o som das florestas ou o assobio do Bopé-jokú que faz o milho crescer e dar espigas gigantes, o som das chuvas e dos ventos, o som das canções indígenas. E’ o gosto e o aroma das frutas americanas, a goiaba, a nêspera. O abacaxi que alegra os olhos o nariz, os dedos, a língua  de Gonzalo Fernández de Oviedo quando prova as frutas do Novo Mundo.   Ou, o espetáculo da natureza que se mostra ao homem como um deus: Torrentes estrepitosas, espumosas, caem do céu para lavar o sangue de todos os caídos e redimir todos os desertos, caudais desatam vapores e arco íris e arrancam selvas do fundo da terra seca,águas que bramam, ejaculação de Deus fecundando a terra, eterno primeiro dia daCriaçã..

            A figura sem par de Malinche, batizada Marina, que de Cortés teve um filho e para ele, o conquistador do México abriu as portas do Império de Montezuma. Ou de Beatriz que, viúva, quis governar e foi impedida pelas lavas de um vulcão.  Ou de Miguel Mármol, o de vários nascimento e uma só morte.

            São fatos transcendentais como o do Papa Paulo IIL ao assinar Sublimis Deus, a ata que determina  serem os índios  seres humanos, dotados de alma e de razão. Ou, de outros menos definitivos como a queima, em 1562, dos livros maias. Livros que falavam de signos e imagens, dos trabalhos e dos dias e dos sonhos e das guerras de um povo nascido antes que o  deus dos cristãos. Haviam sido escritos para que as crianças pudessem ver-se na história dos seus, para que conhecessem o movimento das estrelas, a freqüência das elipses, as profecias dos deuses e para que pudessem chamar a chuva e as boas colheitas de milho.

            Uma história feita a partir das façanhas daqueles que não se vêem diante de um continente para construir mas, diante da presa   fácil, do lucro vil. Ou a partir  das lutas, do caminhar e do sofrer  dos que sabem e são presos, dos que desejam e são impedidos de chegar à sociedade justa. Uma história de encantamentos provocados por palavras que, sem dúvida, se dirige aos sentidos, mas que, sobretudo, se mostram cheias de interrogações ( e de respostas) sobre aqueles que construíram (destruindo) os destinos do Continente.

            Palavras cuja sedução está muito longe de ser inocente.





                                                                                

sábado, 5 de dezembro de 1987

Do humor de Humberto Costantini

            Segundo Humberto Costantini, seu exílio durou sete anos, sete meses e sete dias. Então, retornou a Buenos Aires onde a Editora Brughera festejou sua volta com a publicação de De dioses, hombrecitos y policias, Prêmio Casa de las Américas, um romance que, durante anos, foi proibido na Argentina enquanto circulava em edições do México, Bulgária, Alemanha, Israel, Cuba, União Soviética e Estados Unidos.

            Para o português, não foi traduzido. Portanto, nunca é demais insistir no prejuízo desse isolamento em que vive o Brasil em relação aos demais países do Continente pois ele é responsável pelo desconhecimento de obras cuja leitura, por várias e diferentes razões ou é imprescindível ou proporciona momentos de incalculável prazer. Como o caso desse romance, publicado em 1984 em Buenos Aires.

            De dioses, hombrecitos y policias é uma narrativa construída em três linhas paralelas e trata, exatamente, segundo informa o título, de homenzinhos, deuses e policias. Os homenzinhos formam um grupo de amantes de poesia , a Agrupação Polimnia, já no seu décimo ano de atividades  que se reúne a cada mês com o inocente desígnio de ler, para um auditório atento, os seus poemas. No Olimpo, os deuses Afrodite, Atenéia e Hermes que entre esses cultores de poesia tem  os seus preferidos.  Atentos a seus destinos, sabendo-os ameaçados, esquecem   os próprios desacordos para antepor-se a Edes e  a seus malefícios. Os policiais se preparam para obedecer a ordens superiores que determinam executar doze elementos do grupo  tidos por subversivos. Ordens  que, na verdade, não advém do tirocínio ou da justiça mas somente da vontade de  Edes, deus vaidoso, impotente para o amor e que precisa de mortos para povoar os seus domínios.

            A ação se passa em poucas horas: o tempo que dura  a  reunião da Agrupação Polimnia do dia 3 de dezembro de 1975. Nela,  como sempre,  os sócios, ou seja, os homenzinhos, lêem os seus poemas. Tempo suficiente para que dois círculos se fechem ao redor deles:  a Sombra anunciadora da Morte, fiel serva de Edes, primeiramente traçando círculos lentos em torno da casa para depois se aproximar e, sob a inócua aparência de mancha de umidade, se instalar sob o teto;  e os quatro Ford Falcon que se aproximam com muitos homens fortemente armados para cumprir a tarefa de extermínio.

            Dos homenzinhos, sabemos pela narrativa de um deles a partir do que vê e do que percebe;  a ação policial  é dada a conhecer através de relatório de subordinados  aou chefe; e os feitos dos deuses, transmitidos pelo narrador todo-poderoso a quem é permitido, inclusive, saber o que se passa no Olimpo.

            Essas três vozes se entremeiam  e, ora no presente, ora no futuro vão contando o que se passa e o que se passará nessa casa situada numa das ruas de Buenos Aires para onde convergem cuidados e interesses tão díspares. A do narrador omnisciente, revelando como o destino dos humanos está submisso ao capricho dos deuses; a  de José Maria Pulicichio, muito cândida, expressão de uma visão de mundo alienada -  e comum  a dos demais  sócios – que lhe permite encontrar refúgio na Polimnia : em meio ao caos de violência e escuros apetites que se cerne sobre Buenos Aires neste verão de 1975 nossa Agrupação é para nós uma ilha, um oásis de paz, um lugar onde, ainda, o culto do espírito prima sobre a burda matéria e sob cujo teto, e em especial junto a seu  pátio florescido de glicínias, encontramos por fim o quê, com obstinação a vida nos tem negado durante anos. Compreensivo e sentimental até o exagero o seu discurso ridículo e risível é tão  ridículo e risível  quanto aquele dos relatórios policiais . Remetem a uma comicidade  que não é vã  porque alimentada com esse humor ácido que é o humor de que fala Luigi Pirandello, “o sentido do contrário: aquele que a partir de uma cena, de um fato cômico faz surgir a reflexão que transforma a comicidade em sofrimento. Isto é, a cristalização do riso.

            A leitura de Dioses, hombrecitos e policias faz rir. Um riso que muitas vezes se cristaliza. E’quando o livro de Humberto Costantini se torna um libelo contra essas sombras ameaçadoras e essas presenças terríveis – os conhecidos Ford Falcons levando presos quaisquer cidadãos, os seqüestros, as torturas, as conhecidas mortes sem julgamento pelos para-policias -   que impedem o vida no Continente.

sábado, 28 de novembro de 1987

El inglés de los güesos: uma história de amor

           El inglés de los güesos  é uma história de amor. E, naturalmente, de infortúnios. Antes de escrevê-la, seu autor, o argentino Benito Lynch, nascido no dia 26 de julho de 1880, em Buenos Aires, já havia publicado Plata Dorada, Los caranchos de “la Florida”, Raquela e La evasión. Mas, será o aparecimento de El inglés de los güesos, em 1924, que irá consagrá-lo como um dos melhores narradores contemporâneos.

            Passados sessenta e três anos, o romance é traduzido para o português porque Paulo Hecker Filho o considerou, em muitos sentidos, o melhor romance da América Latina e porque a editora Tchê, abandonando as trilhas dos autores conhecidos, aceitou o desafio de oferecer aos leitores um   texto que, embora, de raras qualidades, não era precedido da fama (merecida ou não) que decide muitas vezes o destino de uma obra.

            Trata-se de  uma narrativa muito ágil onde o diálogo possui um lugar privilegiado e a descrição o suficiente para esboçar o cenário campeiro e a casa no meio do campo onde vão se tecendo ou onde vão explodir os sentimentos que se mostram muito mais pelos gestos e pelas ações dos personagens do que pelas palavras do autor que, no entanto, tudo vê e tudo sabe.

            Assim, Mr.James, moço loiro, seco e comprido como uma taquara [...] e um leve sorriso como que estereotipado nos seus lábios finos [...] firmes e apertado e de grandes dedos curvos como pinças de  caranguejo dará a conhecer os seus sentimentos somente quando os de Balbina se expressam violentamente e ele se vê encurralado, induzido a explicações que o forçam, também, a explicar-se ante si mesmo. Pesquisador, Mr. James  viera procurar  na praia da lagoa de “Los Toros”, ossamenta de índios para levar para a Inglaterra. No posto “La Estaca”, parte do latifúndio de “La Estancia” , como , também nos outros postos, onde os personagens campeiros são  peças de uma estrutura social acostumada à obediência, é que, por ordem do patrão, recebe hospitalidade. Com o passar dos dias, recebe, igualmente, o amor de Balbina. Uma verdadeira dádiva pois, jamais, ele havia recebido outro tão grande e sincero. Uma primícia que ela nunca havia antes ofertado a quem quer que fosse. Amor espontâneo, puro, sem limites. Incapaz por isso de entender a importância dos osso, a colheita das escavações científicas, dos compromissos assumidos ante terceiros ou ante si mesmo e que iriam levar o inglês de retorno a seu país. Incapaz de entender a opção de Mr. James que não viera a  estas terras da América em busca de mocinha de rancho com quem se casar, mas em busca de velhos cemitérios indígenas onde cavoucar apressadamente.

            O amor florescera com forças desiguais. Na mocinha do rancho, adolescente de riso cristalino, de olhos negros e pestanudos e de cabelos pretos, reluzentes, crespos e sedosos, turgente de juventude, de alegria, de beleza, o amor é puro, primitivo, luminosos, sem disfarces e que acredita nele mesmo. Mr. James não podia partir, não poderá viver sem esse amor ela se exclama. Quando duvida, se apega na força de um ritual:  o sapo preso e enterrado dentro de uma caixa, duas mechas de cabelo atadas juntas e juntas queimadas em segredo.  No europeu, um amor que se infiltrou à revelia, que é relegado em prol de uma ascensão social projetada desde sempre e que não quer se deter diante do sofrimento seja ele seu ou de outrem. Um duelo injusto se estabelece entre a força e  a fraqueza: você é um homem de ferro...mas eu James... em mim as coisas doem muito. Um duelo no qual já estão assinalados pela derrota os que são puros e frágeis e  sempre estão desarmados diante da perversidade do mundo. Mr. James vence os seus sentimentos impondo-se razões. Vence a si mesmo e parte para o êxito, para a vida futura. Balbina é vencida pela impotência diante do vazio e escolhe a morte.

            O último capítulo do livro diz dessa escolha num texto de excepcional beleza e de excepcional maestria.  Primeiro, o acordar assustado da cachorra Diamela. Talvez, tenha escutado algum barulho, talvez pensasse ter escutado. Não tornou a dormir e, sentada, começou a observar a névoa que invadia tudo a seu redor. Como nenhum ruído, além dos habituais, lhe tenha chamado a atenção,  gastou  seu tempo em coçar e, então, começou a andar lentamente, cheirando tudo com  entendido e seguiu para os lados da casa onde estavam o galinheiro, o tanque de lavar roupa, o jardim de Balbina. Quando chegou ao salgueiro, distraída, e com  a luz  na cara, experimentou um sobressalto que a fez se arrepiar inteira, levantando, nervosamente, uma pata. Pareceu-lhe, sem dúvida, uma cobra aquela extremidade de laço mal trançado que, descendo da árvore, se estendia sinuosamente diante da porta... Reagiu, dando-se conta de seu engano. Cheirou o laço, examinou a cadeira caída, um pequeno sapato de Balbina e levantou os olhos  para os galhos da árvore e reconhecendo, fez festas. Como não foi correspondida, se afastou para fazer um buraco na terra. Pouco depois, se escutou a voz da mãe de Balbina primeiro como um alarido selvagem, depois como o ulular de uma fera. O sapo que Diamela desenterrara deu alguns saltos preguiçosos e ao abrigo de uma planta se pôs a contemplar a extraordinária pompa do nascer do dia na qual a natureza exibia naquela manhã como se desejasse distrair, a força de luz e de cores, a atenção de todos, para que não pensassem, para que não duvidassem, para que continuassem confiando sempre na eqüidade de suas leis e de seu poder soberano.

sábado, 21 de novembro de 1987

A promessa de Ramón Neiva

            Em 1941, morria Pedro Aguirre Cerda, Presidente chileno cuja eleição havia trazido muitas esperanças para os grupos menos favorecidos. Sua morte, ocorrida antes de que pudesse efetuar algo de significativo, representou para os seus seguidores uma grande perda. Ramón Neiva, pedreiro, bêbado nas horas vagas, órfão de pai assassinado pelo polícia, sente com essa morte uma nova orfandade. Nas lembranças encharcadas de vinho, o velhinho negro como afetivamente se refere a ele, apresenta-se como figura paterna, visão de sonhos e alucinações. Viu pela primeira vez,  a mulher a quem amou, no enterro do Presidente, e  em sua honra deu o nome de Pedro ao filho que nasceu. E é na lembrança do Presidente que se refugia nos momentos de tristeza.

            Figura principal do romance de El Compadre de Carlos Droguett, publicado pela primeira vez pela Joaquín Mortiz do México, em 1967, Ramón Neiva expressa num fluir da consciência (permita-se a expressão) os sentimentos da maioria dos habitantes do Continente: o desamparo diante de uma vida que as estruturas socias marginalizam e a busca de um protetor que minimize essa marginalização.

            No desamparo e no vazio, Ramón Neiva procura, pelo menos, um amigo. Embriagado, vai achá-lo na figura de uma imagem na Igreja onde entra em busca de paz e da felicidade que lhe escapara das mãos. Diante da imagem de São Judas Tadeu, procura forças para largar a bebida. Mas, o cotidiano nos andaimes, ao sol e ao vento, a realidade que encontra ao descer, a mulher que dele se afasta cada vez mais só o induzem à beber.  E o Santo, tranqüilo na penumbra da Igreja, permanece em silêncio, ignorando as dúvidas do homem. Ramón Neiva ao vê-lo com o rosto tranqüilo [...], os olhos perdendo-se docemente, sem pressa, no céu, ignorando a terra, pensava  que não tem graça ser santo quando não se foi capaz de odiar alguém, de amar furiosamente alguém. Para comover o Santo, para forçá-lo a condescender em baixar os olhos para ele, pobre  bêbado, Ramón Neiva, pedreiro qualificado, promete deixar de beber. Em troca, quer que o Santo seja o padrinho de seu filho. Os dias, porém, passam iguais: dominado pelo trabalho em cima do andaime, pelas lembranças, pelos delírios da bebida. Ele não cumpre o prometido ao Santo, sempre com o seu sorriso  feliz e seus olhos alçados para o céu. . Precisa, porém,  de  sua anuência para se justificar. Então, acredita ter escutado as palavras do santo quando dormia, embriagado, a sus pés: Vai, compadre, bebe! O vinho é bom.

sábado, 14 de novembro de 1987

Trilogia da miséria. III. Urpiano

            Jorge Asís é autor de onze livros, dois dos quais traduzidos para o português, em 1978, pela Civilização Brasileira: Os arrebentados e Os FAC.  Argentino, nascido em Buenos Aires em 1946, publicou o seu primeiro livro de contos aos vinte e cinco anos. Hoje, na sua já vasta obra, entre um livro de poemas, entre contos e romances e textos jornalísticos, destacam-se os três livros La calle de los caballos muertos, Carne picada e Cangurus que formam a trilogia Cangurus. Um longo romance cujo tema político se insere  nas entrelinhas de transgressões, crimes, misérias, trabalho, exílio interiores dos marginalizados, dos derrotados que povoam o subúrbio de Buenos Aires e que pela grande cidade são devorados.


            Histórias múltiplas de amores, tristezas, mortes, desesperos, violência e sangue. De passividade diante de uma vida sem sentido ou cujo sentido é determinado pelo único espaço concedido: o de uma irreversível miséria. E é esse é o  espaço de Urpiano, marido de Mercedes, genro de Joana. O esforço que faz para chegar ao trabalho e para voltar para casa – mais de duas horas de viagem, de manhã e de noite, saía e voltava no escuro, tinha que pegar o 71 até Sarandí, daí o 33 até Retiro e depois o trem -  e para trabalhar como um animal de carga está muito aquém do que deseja da vida. Na verdade, quer apenas que os filhos cresçam para se desfazer deles e da mulher. Por vezes, a paciência ou a lucidez lhe faltam. Sem estar bêbado não tem condições de administrar a sua patética humilhação cotidiana.

            Trabalhar inexoravelmente, ganhar nesse trabalho o mínimo para, no fim do dia, mal ver os filhos e ter, somente, forças insuficientes para se gastar no vinho. Operário explorado, cidadão desrespeitado e marido traído. Que mais lhe resta se não suporta nem a companhia de sua sombra?

            Num domingo, resolve assassinar todos os que estão a seu redor.

            Foi quando a Mercedes fugiu. Deixou-lhe as três crianças e, mais do que um problema, proporcionou-lhe uma solução com a vinda de Joana, a sogra. Alta e forte, avó jovem e carinhosa não se limitou  a tomar conta da casa mas ocupou também o leito deixado vazio.Mercedes porém voltou, querendo ficar para sempre. Na disputa estabelecida, a opinião dos parentes foi que somente o dono da casa deveria decidir.

            Naquele dia, Urpiano chegou tarde. Moído demais, acompanhado por algum delírio de vinho mais ou menos chispante para decidir alto tão transcendental  e muito menos para ficar prestando atenção em detalhes tão irrisórios como esses de quem  ficava, quem ia embora e outras miudezas. Recebeu a Mercedes como se nunca tivesse ido embora e cumprimentou a Joana como se sempre tivesse estado ali. E  continuou suas longas viagens para o trabalho. E suas longas viagens de regresso para encontrar tudo igual que antes.

            Até que, num outro domingo, resolveu matar todo mundo.

sábado, 7 de novembro de 1987

Trilogia da miséria.II. Casiano Jara

            Percorrendo a pé, as cinqüenta léguas que  constituem a Industrial Paraguaya de Kaaguasú, para chegar à sede, os contratados que desfaleceram no meio do caminho, foram acabados a tiro. Para Casiano Jará (Augusto Roa Bastos, Hijo de Hombre, Buenos Aires, Losada, 1960), incapaz de recuar diante da tragédia que vivia naquela caminhada e que presumia maior quando chegassem aos ervais é o reinício do medo que será, uma vez mais, cotidiano e permanente.Já vivera na fome e na opressão. Já fora rebelde e fugitivo, desesperado e faminto. Mas, logo no início da tentativa de trabalho compreendera que não era para a vida que  fora contratado pela  Industrial Paraguaya, pois entrar naqueles domínios era se condenar a sair unicamente para debaixo da terra. Fugir, impossível ou só pelo ar como as canções. Além das águas do rio, das Vinchesters dos capatazes, dos cães, a própria lei promulgada pelo Presidente Rivarola o impedia: O trabalhador que abandone o seu trabalho sem o consentimento de seu patrão ou capataz do estabelecimento será levado preso de volta se assim o patrão o solicitar, ficando por conta do trabalhador os gastos que por ventura existirem.

            A angústia da vida no erval é o isolamento do ser humano que a miséria e a dor afastam dos demais. Casiano Jará não a sentia, ainda, completamente, pois sempre havia         o momento de encontrar os olhos  - ainda que sofridos – de sua companheira. Quando, porém, o comissário propõe comprar-lhe a mulher, Casiano como que perde sua condição de homem . A tragédia se torna, além de moral uma  enfermidade física. A boca de Casiano espuma de ódio impotente. Seu corpo transpira e treme como se estivesse febril, sua mente perde a possibilidade de raciocínio lógico e não tem, não pode ter outro pensamento senão o de sair do erval com a mulher e o filho que está para nascer. Fala da fuga em todos os escassos momentos em que se encontra com a mulher. Planeja-a cuidadosamente. Porém, quando consegue sair do erval e está a poucas léguas do povoado o nascimento da criança o impede de continuar. Levado de volta ao erval, agora três vítimas. Casiano vai para o tronco mas os quinze dias que nele permanece não o dobram. Novamente reinicia a fuga. Cheia de medo, desespero, ruídos, miasmas, lodo, desfalecimento, fome, sede, cansaço. Por fim chega ao rio e ao cruzá-lo, à liberdade.

            A imagem de uma carreta surgida de repente, no meio do sono, junto a de um ancião cujos  traços    são de seus antepassados, o reconduz e a mulher e o filho ao povoado de origem. Ao avistá-lo, caminha com segurança. Não para a sua casa ou para o seu pedaço de terra mas para o vagão semi-destruído que jazia entre as árvores queimadas. Casiano Jará perdera a razão.

domingo, 1 de novembro de 1987

Trilogia da Miséria. I Miguel Cara de Angel

            No ano de 1967, o guatemalteco Miguel Angel Astúrias recebia o Prêmio Nobel de Literatura com o romance El señor presidente, um livro perfeito e terrível como poucos. Em se tratando da Literatura do Continente, tão pródiga em textos que expressam a violência, trata-se de uma obra que contém, talvez, os textos mais sombrios e cruéis sobre os meandros de uma ditadura e sobre a desintegração física e moral de um cidadão dessa ditadura.

            Entre os muitos personagens do romance, destruídos pela vontade onipresente e absoluta do Presidente, um deles, Miguel Cara de Angel é aquele que sofre todas as degradações a que podem estar sujeitos os habitantes desses espaços pertencentes a uns poucos, os territórios de ninguém.  Miguel Cara de Angel é belo, rico e tem nas mãos as vantagens fáceis e irresponsáveis daqueles que aceitam se submeter  às vontades do Poder, que aceitam ser cognominados favoritos. Pouco se conhece de sua vida a não ser que tem caminho livre junto ao senhor Presidente. Também se ignora se é feliz. Porém, repentinamente, tem consciência da angústia que o assola: quando  se dá conta do amor que sente por Camila, filha do homem marcado para ser destruído, quando presencia o seu sofrimento e a   doença que a faz se  aproximar da morte. Sobretudo, ao perceber que  ela era o único ser que amava e estava preso no terrível círculo que a todos envolvia. Aceita, por fim, a lucidez da qual, por interesse, até então fugira . E com isso, se torna um inimigo para o Presidente que nada perdoa e do qual  não consegue escapar.

            Ao constatar  que lhe resultara impossível a fuga e que outro títere  já tomara o seu lugar junto ao Presidente, pensa apenas em  correr, voar, desaparecer. Mas, é traído por aquele a quem um dia salvara a vida que o prende, o tortura e o  atira sobre o esterco, num trem   para uma viagem que não terá retorno.

            Passa os anos num calabouço, incomunicável.  Imóvel,  doente, quase cego, reumático, padecendo nevralgias errantes  vai definhando. A crueldade do espaço limitado, a falta de liberdade, e a solidão não conseguem lhe tirar  todo alento porque vive na esperança de rever Camila. Porém, não apenas essa esperança lhe é arrancada, como a imagem que restava dela  lhe chega, através da maldade de seus carcereiros, ultrajada, enlameada, conspurcada.

            Na imundície, na desolação, no desamparo total de homem que, em meio a uma incomensurável miséria, ainda recebe  motivos para ser mais miserável –  saber  da traição da mulher amada – Miguel Cara de Angel morre.

            O ciclo degradante de usufruto do Poder  para a condição de vítima desse mesmo Poder se completara.             

sábado, 24 de outubro de 1987

Mario Benedetti: o escritor e a crítica no contexto do sub-desenvolvimento

            O uruguaio Mario Benedetti, além de contista (Cuentos Completos), romancista (La trégua), poeta (Inventário), crítico literário (Literatura Uruguaya del siglo XX ), ensaísta (El país de la cola de paja, El recurso del supremo patriarca) é um dos autores latino-americanos de leitura imprescindível.

            Em El recurso del supremo patriarca, publicado no México, em 1979, o primeiro artigo trata, obviamente dos três romances: El recurso del método de Alejo Carpentier, Yo el Supremo de Augusto Roa Bastos e El otoño del Patriarca de Gabriel García Márquez. Três romances cujo eixo narrativo gira em torno da figura do ditador. E o título do livro de Mario Benedetti não se constitui, apenas, uma combinação irônica, uma síntese metafórica porque nos trabalhos que compõem a obra se trata, também das relações entre os povos  sub-desenvolvidos e aqueles que se apropriam do poder.

            Nos outros onze trabalhos que compõem o livro são discutidas  questões muitíssimos oportunas: a ausência, nos países sub-desenvolvidos, na maior parte das vezes, de uma elite cultural cuja visão seja, simplesmente, latino-americana; as relações escritor/crítico, escritor/aparato publicitário; as  condições de produção, a neutralização do intelectual latino-americano, atraído pelas fundações norte-americanas. O trabalho mais importante é, sem dúvida, “O escritor e a crítica no contexto do sub-desenvolvimento”.

            Como precisa o título, as considerações nele desenvolvidas não versam sobre a Crítica Literária em geral, mas sobre a Crítica Literária  da América Latina onde não existe – seja para propulsar, seja para conter – um só campo alheio ao político, ao social, ao econômico e às lutas pela liberdade. O quê significa, para Mario Benedetti, não ser possível abordar a Crítica Literária separadamente da situação de dependência dos países latino-americanos que desenvolvem a cultura da dominação na qual se inserem, por um lado, o escritor colonial ( produtor da Literatura de evasão) e o crítico colonizado ( por exemplo, pela lingüística, pelo estruturalismo) e da qual são marginalizados ( pelo exílio ou pela morte) aqueles para quem o “real aparatoso”  de que fala Jorge Enrique Adoum, não  somente pode, mas deve ser testemunhado.

            E Mario Benedetti constata que talvez possa parecer curioso o fato de que, em meio às condições que são, principalmente, adversas para o trabalho intelectual – a opressão na maior parte dos países latino-americanos ou a dramática experiência do exílio – venha a surgir uma crítica onde se planteia  a dimensão de um ponto de vista basicamente latino-americano e cuja tarefa prioritária vai ser a procura de expressão latino-americana e a interpretação de sua realidade. E, ainda, que essa crítica somente possa se expressar em poucos países que permitem a discussão uma vez que na maior parte do Continente reina uma zona de silêncio e obscurantismo  no qual  a crítica vai para a cadeia ou para o exílio junto com o poeta e com o romancista.

            Inegavelmente, é  o testemunho de uma experiência vivida e compartilhada nas andanças do exílio. Mario Benedetti foi professor de Literatura na Universidade da República do Uruguai e crítico literário em Montevidéu até se ver obrigado, como tantos, a abandonar o país. Razão, entre outras, que lhe permite constatar a mudança sofrida pela maior parte  dos intelectuais: aferrados até há alguns anos atrás a um frágil conceito de liberdade burguesa, atualmente, se não assumiram, pelo menos, passaram a entender a liberdade revolucionária.

sexta-feira, 9 de outubro de 1987

Por uma crítica latino-americana

            Sendo a crítica, num sentido amplo, a mediação entre o texto e a leitura e sendo a Literatura Latino-americana a expressão literária de povos diferentes, ligados estreitamente, por numerosos paralelismos, a crítica latino-americana poderia ser considerada como uma aproximação às obras latino-americanas que fosse, antes de mais nada, coerente com o texto estudado e vinculada ao contexto no qual a obra teve a sua gênese. O quê pode ser perfeitamente factível desde que sejam levados em conta os obstáculos que impedem, também nessa área,   as atividades dos povos latino-americanos de se desenvolverem de forma autêntica e absoluta.

            Na verdade, os obstáculos para o estudo da Literatura Latino-americana tem a sua origem num estado de coisas que é comum a toda América Latina: a existência de um certo espírito que aportou aqui nos tempos da Colônia e permaneceu sem nuanças, comandando, muitas vezes, as atividades culturais. Assim, os países latino-americanos voltam-se para a metrópole – qualquer que seja ela -  e não pensam em se comunicar com os países que, no mesmo Continente, possuem realidades semelhantes. Nem sempre ( para não dizer raramente) aquém e além da barreira lingüística ou de  fronteira existe um conhecimento do que se passa do outro lado. Embora existam as chamadas ilhas de desenvolvimento que se querem iguais aos países desenvolvidos, como a própria expressão sugere, estas ilhas representam fenômenos isolados dentro de um vasto contexto sub-desenvolvido.  Assim, esse espírito de Colônia  faz com que as dificuldades para o estudo da Literatura Latino-americana  comecem já no que poderíamos chamar de infra-estrutura: as condições de trabalho. As bibliotecas, mesmo as universitárias, não possuem o acervo mais comezinho: o texto (sequer os clássicos), os textos críticos antigos ou contemporâneos, os periódicos. Quanto ao empréstimo inter-bibliotecas  sejam elas  dentro do próprio país  ou com as bibliotecas  de outros países, no momento, significa, apenas, uma utopia. As livrarias, por sua vez, não dispõem de acervo relacionado aos países da América; tampouco possibilitam uma aquisição imediata de material importado pois embora  possível, essa aquisição   é sempre regida por entraves ( que diríamos burocráticos) e assim, de uma lentidão exasperante. Como as informações editoriais são insuficientes (quando existem), só resta continuar a ler  e a estudar os autores que, por uma razão ou outra, são “lançados” pelos países cuja estrutura editorial seja independente. Os outros, aqueles autores que por determinadas causas não são ou não devem ser comerciáveis ou, ainda, cujas obras aparecem em edições limitadas ou em periódicos de vida transitória, esses, dificilmente ou ocasionalmente serão conhecidos já não diríamos do grande público mas dos próprios estudiosos.

            O desconhecimento do que se realiza nos demais países latino-americanos no que se refere aos textos de criação e/ou de crítica, a dificuldade, pelo isolamento em que esses países se mantém para estabelecer intercâmbio duradouro entre si, a facilidade em receber material bibliográfico dos países industrializados, assim  como auxílios que possibilitam  uma especialização nesses países e um contato direto com sua cultura faz com que a  metodologia, também na área de Letras, seja importada dos países industrializados que já tem resolvidos os seus problemas fundamentais. O que significa, ainda e mais uma vez, prestar-se à dependência de esquemas culturais alienígenas e alienantes, uma vez mais, prestar-se à auto-colonização. Uma opção que diante dos textos latino-americanos, passa a se constituir não só, apenas uma atividade lúdica ( seria a mediação certa para o texto de combate, para o texto de denúncia?) mas, sobretudo passividade diante de um sistema de submissão cultural que a realidade do Continente americano não mais justifica.

            Para fugir à passividade e à submissão, seria necessário  uma reflexão sobre a posição humanitária do escritor latino-americano e sobre  o contextual que muitas vezes condiciona a gênese do texto; uma reflexão sobre a maneira de formular uma aproximação da Literatura Latino-americana que seja coerente com o nosso meio, nossas necessidades, nossa forma especial de desenvolvimento,

            Reflexões que nos levariam a poder falar de nossos textos com as nossas próprias palavras.

segunda-feira, 28 de setembro de 1987

Brasileiros em Memórias do fogo.

          Em Nascimentos, primeiro volume de sua trilogia Memória el fuego sobre a História da América, Eduardo Galeano conta uma lenda dos índios Kadieus que se inicia dizendo de um mundo incolor : eram brancas as plumas dos pássaros e branca a pele dos animais. Depois, dentre esses  pássaros e animais, houve aqueles que mergulharam nas águas do lago, que se espojaram na terra e na cinza que  se roçaram  na folhagem. Azuis, marrons, cinzas, verdes, eles ficaram.  Continuaram brancos os que permaneceram imóveis. Essa lenda dos índios Kadieus,  juntamente com um texto que trata da primeira expedição, em 1602, contra Palmares,  de outro que se refere à rendição de Ganga Zumba em 1678 e, ainda, de um terceiro sobre o achado de ouro em 1700 é a única presença do Brasil nesse primeiro volume. Construído em duas partes,    “Primeiras vozes”  é constituída de lendas indígenas. A segunda, “ Um velho Mundo Novo”,  por episódios  sucedidos  num tempo preciso cuja primeira data é a da chegada dos europeus na América e a última, a de 1700.

          O segundo volume, Las caras y las máscaras, conta o que ocorreu nos séculos XVIII e XIX, precisamente de 1701 a 1900. Nele, a presença dos brasileiros tampouco é grande: Padre Vieira, Tiradentes, o Aleijadinho, Manuel da Costa Ataíde, Antonio Conselheiro, Machado de Assis, o medico Joaquim Murtinho, Ministro da Fazenda que no seu laboratório decapitava rãs para estudar as convulsões do corpo depois da morte. Também, é marcado pela ambição, pelo preço dos homens (uma criança negra vale o que vale um punhado de sal), pelo desfile dos costumes, pelas buscas dos caminhos do ouro e das liberdades.

          O terceiro volume, O século do vento, retoma 1900  detendo-se em cada ano, para fazer a sua história. Finaliza em 1984, talvez porque, diz Eduardo Galeano é o ano em que termina o seu exílio.

          Muito mais que nos volumes anteriores,  estão os brasileiros: entre eles,   os que   sonham construir cidades para todos os homens.  Também, quem impeça que os sonhos se realizem, entregando Olga Prestes ao navio marcado com a cruz suástica ou submetendo a interrogatórios um dia sim e outro também um criador de música e de versos. Ou aqueles que esparramam  desvarios, pedindo ao governo que evite o desprestígio do país, se representado, na Europa, pelo conjunto “Os Batutas” no qual também tocava Pixinguinha; ou que  vociferam contra a vacina, afirmando que a epiderme do individuo é tão inviolável como a sua consciência.  

         Médicos, escritores, artistas, jogadores de futebol. Entre eles, alternam-se: o Presidente que deseja governar de pé e quando o obrigam a se inclinar escolhe a dignidade da morte; o jogador de futebol que joga como jogaria Deus, se Deus decidisse dedicar-se seriamente ao assunto;           o velho pobretão e ossudo que desembarcou no meio da selva entre Belém e Manaus com uma caixa de papelão que protegia uma palmeira de plástico.

          Figuras e cenas e fatos que repetem ou completam outros. Porque partes de um Continente onde, entre sombras e violências, explodem figuras luminosas. Grande mural da História do Continente, um mosaico como o define  Eduardo Galeano  que desejou construir e  o fez, como diz ele, com alegria. Assim, com alegria,  deveriam ser lidos esses textos. Porque entre tragédia e comédia eles dizem, sobretudo, de um espaço de esperanças invencíveis.

domingo, 27 de setembro de 1987

Dias e noites de amor e de guerra

            A primeira obra de Eduardo Galeano não é conhecida  do leitor brasileiro. Tampouco a segunda. Publicadas em 1963 e 1967, Los dias siguientes e Los fantasmas del dia del leon, respectivamente um romance e um livro de contos não atravessaram fronteiras o quê, em se tratando de  fronteiras latino-americanas – no que se refere à material bibliográfico – é bastante comum. O raro e, felizmente, isto pode acontecer, é a presença de um Eduardo Galeano no mundo editorial brasileiro onde o número de autores latino-americanos traduzidos, em relação à importância e à quantidade  de outros tipos de textos de qualidade duvidosa que tem a sua divulgação no Brasil garantida por uma política subserviente e nefasta, é muito reduzido.

            As quatro obras de Eduardo Galeano traduzidas e publicadas no Brasil apontam para  um interesse do leitor que outros escritores, embora conhecidos internacionalmente há mais tempo, não conseguiram despertar. Nem mesmo vencer um anonimato que só o tradicional desconhecimento que os latino-americanos nutrem através de gerações, uns em relação aos outros, pode explicar.  Como é o caso, aliás, de um Francisco Espínola ( o Paco Espínola citado por Eduardo Galeano ) de quem , um único texto, o conto  “Rodriguez” seria suficiente para colocá-lo entre os melhores  contistas latino-americanos.

            Em 1975, ano em que foi publicado, pela Sudamericana, La canción de nosotros, foi traduzido Vagamundo. Três anos depois, As veias abertas da América Latina, A canção de nossa gente e Dias e noites de amor e de guerra. Os contos, o ensaio, o romance e os relatos de Eduardo Galeano. Nestes, a necessidade de contar o amor, o prazer dos sentidos, o sofrimento de ver cair mais um companheiro, o esboroar-se de um trabalho. O eu não é detestável mas, na América Latina, espaço mais do que tudo de prioridades, ele é menos importante  e cede lugar, obliterando os plátanos e as gaivotas de Montevidéu, seu cheiro de mar e de carne na brasa, para falar nos outros. E os pequenos textos se tornam belos momentos líricos nesse enlace homem/mulher, amigo/amigo, pai/filho, avó/neto. Na maioria, porém, os momentos são decisivos para os marginais do Sistema. Aqueles que fazem com que a América Latina seja mais do que um simples território ocupado: o pintor, escritor, poeta, estadista, cantor, ensaísta, antropólogo, jornalista. Lembrados  como cidadãos numa atividade do cotidiano e depois como vítimas condenadas ao silêncio ou à morte. As figuras, então, desaparecem   mas  fica o heroísmo teimoso, entre a dúvida e o medo que levam à   outro espaço onde vai se repetir a mesma luta desigual: Argentina, Brasil, Chile, Equador, Guatemala, Venezuela. Presos. Torturados. Desaparecidos. Exilados. Mortos.

            Os pontos de interrogação se alargam para o leitor. Perguntas de respostas desconhecidas. Perguntas que ele, Eduardo Galeano, não responde e que poucos responderão.Porque talvez seja muito mais penoso do que indagar – poço publicar? – o questionar a utilidade do ato de escrever.

            Para quem leu as obras anteriores de Eduardo Galeano é vidente a insistência em narrar certos fatos que são comuns e cotidianos na  América: o Sistema, a Máquina.  E’quando a ficção e o depoimento – que são esses  relatos, se entrelaçam. Certos verbos se repetem: bater, atirar, prender, matar, ferir, delatar, torturar, repetindo os que aparecem ou apareciam  na Imprensa.

            Sem dúvida,  a busca de liberdade é valida e inadiável; possuí-la é poder, também, denunciar o que corrói os países e massacra o povo.  Esta foi a opção de Eduardo Galeano. Mudados que sejam  um nome por outro, um fato por outro, um lugar por outro o que é narrado em Dias e noites de amor e de guerra é matéria sobejamente conhecida. Mas, como aquele personagem que punha numa caixa recortes de jornal para reler de vem em quando e, assim, não deixar esmorecer sua indignação, o livro de Eduardo Galeano  é de leitura imprescindível e urgente.

domingo, 13 de setembro de 1987

A canção de nossa gente

            Eduardo Galeano, que se iniciou aos quatorze anos no jornalismo e dirigiu a revista Crisis (enquanto ela durou) era, nos primeiros anos da década de setenta, autor confessado de duas obras: Las venas abiertas de América Latina (1971) e Vagamundo (1973).

            Em 1975, premiado pela Casa de las Américas, o seu romance La canción de nosotros, traduzido para  o português por Eric Nepomuceno e publicado pela Paz e Terra três anos depois. Romance, panfleto, testemunho ou documento histórico,  não cabe aqui discutir a questão de gênero de A canção de nossa gente até porque não faltarão teóricos para fazê-lo ainda que o próprio autor não saiba  como defini-la:  romance ou o que seja, ele diz.  Porém, no momento, sem dúvida cruciante para os países da América Latina, talvez mais importante  seja a aproximação a seus temas ou  ao seu tema central, em uníssono com uma grande parte da ficção latino-americana contemporânea que ora descreve caricaturalmente o opressor  (García Márquez, Alejo Carpentier, Augusto Roa Bastos) ora, tragicamente, o oprimido (Árguedas, Montaner, Scorza, Fuentes).

            O livro, dedicado a Montevidéu, se inicia com um poema e se constrói, fundamentalmente, sobre dois destinos: Mariano e Ganapán. Entre eles, o de Fierro. Não mais o da legenda, porque este levantou sua voz, mas um Fierro nosso contemporâneo cuja opção de vida só o pode aniquilar  por irreversível e porque os tempos mudaram e a repressão se faz, hoje, noutras condições das quais Fierro, o de Hernández, escapou. Ao redor dos três, os desempregados, os famintos, os marginais. E, dominando a cidade nos seus habitantes, a Máquina. Retrato fiel  ou, simplesmente herança aperfeiçoada daquela que dominou a América Latina no século XVI e seguintes, e de cujos feitos A Máquina, se não se constitui o cerne da obra, é expressão convincente daquilo que, em muitas reuniões internacionais, se define como atentado aos direitos do homem.

            Mariano, jovem jornalista de parcos recursos, sente-se realizado em poder escrever a verdade. Esta posição – desde tempo imemoriais rejeitada pelo Poder – ou sua amizade com Fierro o levam para a prisão.           Ganapán, criado num orfanato, ex-operário que segundo ele próprio veio ao mundo para sofrer ( nasci torto e me puseram mau olhado) encontra Mariano ferido, entre as macegas, fugitivo da prisão, o esconde no seu barraco e, mesmo dando-se conta que ele pertence a outra classe social, o alimenta e trata.

            As últimas páginas do livro contam do reencontro dos dois marginalizados: um, procurado pela polícia, o outro, ganhando a vida a juntar lixo. Ganapán se admira de que Mariano tenha voltado pois, na sua opinião, ele tinha modos de rico. Mariano, além de expressar gratidão quer, também, conscientizar, talvez.  Talvez cooptar. Estão de acordo em que a situação está muito ruim. Igualmente, de acordo,  que ela precisa mudar. Sobretudo, de e que é necessário fazer algo. No barraco, a luz do lampião é bem pouca. Suas duas sombras, gigantes, se aproximam nas paredes de lata...

             Uma narrativa feita com riqueza de palavra , expressar a angústia, as interrogações. A cidade sugerida, presente no  mar, no porto, nas folhas de plátano, no detalhe da vida cotidiana. O temor do hoje que só por felicidade pode transformar-se no amanhã. As perguntas que são reflexões ou deveriam  levar à reflexão. Sobre a palavra ou sobre o poder da palavra. Se basta escrever para se redimir ou redimir.  Ou se, unicamente, a ação é redentora. Porque a canção se esvai, se dilui num testemunho numa repetição contínua ( mais uma vez a imagem de Sisifo). O otimismo contido nas últimas palavras do livro nessa sugestão de uma luta que recomeça na América, se chama esperança.

domingo, 30 de agosto de 1987

De algumas inquietações femininas


             Em La Paloma, uma pequena praia do Atlântico, chega a mulher no dia do seu quadragésimo nono aniversário. Na casa alugada com vistas para o mar denso e azul, chega para uma pausa que lhe permita refletir no momento em que se dá conta ser indispensável estudar porque a vida nos conduz,  efetivamente, com mão suave mas firme, para uma época em que estamos demais sobre a terra. Chega para, entre os quadros que pretende pintar e a monografia sobre Manet que pretende escrever, realizar o aprendizado da solidão.

            Diante dela, cento  vinte dias nos quais pretende enfrentar  essa solidão que teme, tanto quanto as reuniões de família. Opção e aceitação, dois pólos de um novelo de ambigüidades que tentará desfazer.

            Nas inquietações e questões expressas por uma voz feminina, a solidão adquire matizes: envolve a mulher que, ao se tornar viúva, perde, também o amante, agora temeroso de envolvimento e compromissos outros; torna-se vulnerável aos assédios masculinos que não levam em consideração a vontade feminina; ou, simplesmente, se dissolve ou se aguça diante das necessidades filiais que também ignoram quaisquer desejos de isolamento e dispõem, a seu bel prazer, do tempo materno. 

            Vivendo entre as filhas que a surpreendem em meio a esse veraneio que deseja reflexão e trabalho, entre as eventuais e despretenciosas conversas com as pessoas do lugar, vai registrando, dia a dia, as suas considerações. Sobre o significado do envelhecimento para a mulher, o que pode ou não se permitir: expor o corpo? Conceder-se um relacionamento amoroso com um homem mais jovem? Pensar naquilo a que se dedicou  (amor, amores eventuais, sucessos profissionais, apenas  rede ou para quedas para as filhas) no longo espaço de tempo transcorrido ?

            Nesse registro cabem, também, as questões sobre a difícil arte de conviver com a família. O egoísmo  das gerações, cada qual a lutar por seus próprios valores que, finalmente, parassem ser, sempre, apenas materiais. Discussões, silêncios, reprovações que se sucedem nas reuniões consideradas obrigatórias e em que à euforia inicial se alongam as recriminações e, sempre, o desejo de partir.

            Entremeadas, e, por extensão, as constatações sobre a classe social a que pertence (pertenço a essa classe social da qual saem os cônsules, os embaixadores, os adidos culturais) e da qual tem uma idéia muito clara. Seja para perceber suas incongruências, impertinências, hipocrisias e ridículos, seja para , nela inserida, situar-se entre os demais – para ela, certamente inferiores – e julgá-los quando reagem de forma diferente daquela a que está acostumada.

            Escritora dos dramas (pequenos) da assim chamada burguesia Argentina, Silvina Bulrichneste seu romance, Mañana digo basta, como nos inúmeros outros que escreveu representa no panorama da uma Literatura alimentada, sobretudo, por textos assinados por nomes masculinos, um momento, uma voz impecavelmente feminina para a expressão dos temores e inseguranças.

            Publicado em 1968,  pela Sudamericana de Buenos Aires ( a edição brasileira Amanhã digo basta, da Record apareceu sem data), Mañana digo basta em 1975 já havia alcançado a décima quinta edição. Exito que não foi uma exceção entre as demais obras da autora. Ao falar sobre  esse  seu romance, Silvina Bulrich diz que nele  tudo está contado com dissimulação num tom ligeiro; embora aborde problemas graves. Na verdade, mundano e macio é o tom, salpicado, apenas, de leves ironias. Perfeito para a expressão dos temores e inseguranças daquela minoria que nos longos verões  à beira mar pode se dedicar a buscar-lhes as razões. Então,  Mañana digo basta, poderia propiciar uma leitura lúdica, não isenta de momentos que espelham certezas e dúvidas de uma geração, de uma classe.  Sobre  os que não possuem e nunca possuíram privilégios, os temores e inseguranças sempre advém de circunstâncias – ou desemprego, ou doenças, ou falta de aceitáveis condições de vida – das quais não podem escapar e com o agravante de que, tampouco, lhes    são dadas esperanças de soluções apropriadas nada foi dito. Os problemas graves que o romance  aborda, cabe, então,  ao leitor percebê-los.

             Quem sabe,  nas entrelinhas.

             

 

 

 

 

 

 

 

 

 

           

domingo, 23 de agosto de 1987

Das origens


            Há muitos anos, já Ricardo Latchamn falava do nosso grande continente mestiço, expressão que inspirou o título de um livro de Mario Benedetti: Letras del Continente mestizo (Arca Montevidéu, 1967, 1970). Ao endossar-lhe a expressão, Mario Benedetti o faz perfeitamente convicto de que a mestiçagem da América Latina, certamente, contribuiu para a riqueza de seus temas, de seus enfoques, de seus estilos.

            LITERATURA DO CONTINENTE, cuja proposta é tratar dos textos desse nosso Continente mestiço que as políticas editoriais impedem de atravessar fronteiras, não repete, apenas,  na sua rubrica  uma expressão contida no  título da obra de Mario Benedetti . Sobretudo,   estará impregnada  das lições que esse professor uruguaio, afastado de sua cátedra pelo exílio, foi espalhando numa obra que abarca vários gêneros ( poesia, conto, romance, teatro, critica, ensaio) e cuja leitura – desculpe-se o chavão – resulta imprescindível, seja pela qualidade dos textos ficcionais, seja pela agudeza das idéias expressas nos seus textos de critica.

            Letras del continente mestizo é composto de vários trabalhos sobre autores contemporâneos – importante leitura para quem se interessa pela Literatura latino-americana – e de quatro breves ensaios  (“Ideas y actitudes en circulación”, “ Situación del escritor en América Latina”, “ Sobre las relaciones entre el hombre de acción y el intelectual”, “El boom entre dos libertades”) cujos assuntos embora escritos há quase duas décadas, se revestem de grande validade e de grande pertinência  para  a compreensão dos fenômenos literários do Continente e dos espaços que os abrigam.  Um Continente que, na ótica de Benedetti, ao abrigar analfabetos e famintos  irá exigir do escritor uma dupla responsabilidade: aquela relacionada com a sua arte e a outra, com o meio no qual se insere a sua vida . Para enfrentar tais responsabilidades, caberá ao escritor uma vigilância sem trégua que lhe garanta a liberdade artística e de opinião. Porque não é raro que a hipotética linha divisória que separa a expressão criativa da  responsabilidade humano do escritor se mostre um tanto quanto diluída. Assim,  o escritor latino-americano, – habitante de territórios cujos governos são avaros  na concessão de direitos do cidadão – deve estar apto para mensurar conceitos de liberdades e suas práticas. Assim, para mencionar dois caminhos,  ou ele usufrui da liberdade vigiada, concedida pelo Estado, aquela que permite, apenas, a veiculação de determinadas idéias e de determinadas atitudes; ou, insubmisso a tais diretivas, por qualquer mínima infração, recebe as sansões de praxe. Então, há os que recebem subsídios para a realização de tarefas intelectuais de entidades que reconhecidamente representam modelos de penetração cultural  ou se comprometem com programas oficiais que reafirmam a marginalização das classes. E, há os que, pelo delito de não se curvarem às orientações cerceadoras, são passíveis de serem condenados ao desemprego, à prisão, ao exílio, à morte como todo  habitante contumaz de um espaço  onde imperam a ditadura e o subdesenvolvimento.

            São matizes que adquirem, sem dúvida, inegável presença na discussão sempre vigente sobre as funções do intelectual, do artista, do escritor na sociedade na qual ele deve se constituir um elemento de vanguarda.