No
início, são as primeiras vozes, os mitos do nascimento da América. Vozes dos
homens, dos animais, dos deuses, dos presságios, da profecia: Muita miséria haverá nos anos do império
da cobiça. Os homens serão escravos.
Triste estará o rosto do sol. Logo, o velho novo mundo, no qual chegam os
conquistadores ibéricos. Corre o sangue, cumpre-se a profecia. Delineia-se o
mapa da América e nele se incrustam não as ações heróicas mas aquelas
realizadas quando os heróis são simplesmente homens.
Ignorados,
impensados momentos de História da América que vão se justapondo – pequenas
peças de mosaico, diz Eduardo Galeano - até
oferecer uma verdade cujo sentido difere daquele que tradicionalmente (oficialmente) é dado a
conhecer. Narrativa de situações extremas em que se perderam os conquistadores
da América ( em que foram destruídos os conquistados). Narrativas de estados de
alma. Agir e sentir – apenas o essencial –
a entrelaçar-se para tecer um
contorno da América que se afasta daquele já conhecido.
Nada
foi inventado nesse livro de História cujas fontes documentais são indicadas
sob cada um dos textos. E’ na maneira de escrever Memória do fogo que Eduardo Galeano leva ao leitor não apenas o que aconteceu no Continente mas,
também, os sons, os perfumes, as cores, as formas, as cenas, as paisagens, os
personagens e os fatos. E’ o som das florestas ou o assobio do Bopé-jokú que
faz o milho crescer e dar espigas gigantes, o som das chuvas e dos ventos, o
som das canções indígenas. E’ o gosto e o aroma das frutas americanas, a
goiaba, a nêspera. O abacaxi que alegra os
olhos o nariz, os dedos, a língua de Gonzalo Fernández de Oviedo quando prova
as frutas do Novo Mundo. Ou, o
espetáculo da natureza que se mostra ao homem como um deus: Torrentes estrepitosas, espumosas, caem do
céu para lavar o sangue de todos os caídos e redimir todos os desertos, caudais
desatam vapores e arco íris e arrancam selvas do fundo da terra seca,águas que
bramam, ejaculação de Deus fecundando a terra, eterno primeiro dia daCriaçã..
A figura sem par
de Malinche, batizada Marina, que de Cortés teve um filho e para ele, o
conquistador do México abriu as portas do Império de Montezuma. Ou de Beatriz
que, viúva, quis governar e foi impedida pelas lavas de um vulcão. Ou de Miguel Mármol, o de vários nascimento e
uma só morte.
São
fatos transcendentais como o do Papa Paulo IIL ao assinar Sublimis Deus, a ata que determina serem os índios seres humanos, dotados de alma e de razão. Ou,
de outros menos definitivos como a queima, em 1562, dos livros maias. Livros
que falavam de signos e imagens, dos trabalhos e dos dias e dos sonhos e das
guerras de um povo nascido antes que o
deus dos cristãos. Haviam sido escritos para que as crianças pudessem ver-se na história dos seus, para que
conhecessem o movimento das estrelas, a freqüência das elipses, as profecias
dos deuses e para que pudessem chamar a chuva e as boas colheitas de milho.
Uma história feita
a partir das façanhas daqueles que não se vêem diante de um continente para
construir mas, diante da presa fácil,
do lucro vil. Ou a partir das lutas, do
caminhar e do sofrer dos que sabem e são
presos, dos que desejam e são impedidos de chegar à sociedade justa. Uma
história de encantamentos provocados por palavras que, sem dúvida, se dirige
aos sentidos, mas que, sobretudo, se mostram cheias de interrogações ( e de
respostas) sobre aqueles que construíram (destruindo) os destinos do
Continente.
Palavras
cuja sedução está muito longe de ser inocente.

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