sábado, 12 de dezembro de 1987

Memória do fogo: a sedução da palavra

            No início, são as primeiras vozes, os mitos do nascimento da América. Vozes dos homens, dos animais, dos deuses, dos presságios, da profecia: Muita miséria haverá nos anos do império da   cobiça. Os homens serão escravos. Triste estará o rosto do sol. Logo, o velho novo mundo, no qual chegam os conquistadores ibéricos. Corre o sangue, cumpre-se a profecia. Delineia-se o mapa da América e nele se incrustam não as ações heróicas mas aquelas realizadas quando os heróis são simplesmente homens.

            Ignorados, impensados momentos de História da América que vão se justapondo – pequenas peças de mosaico,  diz Eduardo Galeano -   até oferecer uma verdade cujo sentido difere daquele  que tradicionalmente (oficialmente) é dado a conhecer. Narrativa de situações extremas em que se perderam os conquistadores da América ( em que foram destruídos os conquistados). Narrativas de estados de alma. Agir e sentir – apenas o essencial –  a entrelaçar-se  para tecer um contorno da América que se afasta daquele já conhecido.

            Nada foi inventado nesse livro de História cujas fontes documentais são indicadas sob cada um dos textos. E’ na maneira de escrever Memória do fogo que Eduardo Galeano leva ao leitor  não apenas o que aconteceu no Continente mas, também, os sons, os perfumes, as cores, as formas, as cenas, as paisagens, os personagens e os fatos. E’ o som das florestas ou o assobio do Bopé-jokú que faz o milho crescer e dar espigas gigantes, o som das chuvas e dos ventos, o som das canções indígenas. E’ o gosto e o aroma das frutas americanas, a goiaba, a nêspera. O abacaxi que alegra os olhos o nariz, os dedos, a língua  de Gonzalo Fernández de Oviedo quando prova as frutas do Novo Mundo.   Ou, o espetáculo da natureza que se mostra ao homem como um deus: Torrentes estrepitosas, espumosas, caem do céu para lavar o sangue de todos os caídos e redimir todos os desertos, caudais desatam vapores e arco íris e arrancam selvas do fundo da terra seca,águas que bramam, ejaculação de Deus fecundando a terra, eterno primeiro dia daCriaçã..

            A figura sem par de Malinche, batizada Marina, que de Cortés teve um filho e para ele, o conquistador do México abriu as portas do Império de Montezuma. Ou de Beatriz que, viúva, quis governar e foi impedida pelas lavas de um vulcão.  Ou de Miguel Mármol, o de vários nascimento e uma só morte.

            São fatos transcendentais como o do Papa Paulo IIL ao assinar Sublimis Deus, a ata que determina  serem os índios  seres humanos, dotados de alma e de razão. Ou, de outros menos definitivos como a queima, em 1562, dos livros maias. Livros que falavam de signos e imagens, dos trabalhos e dos dias e dos sonhos e das guerras de um povo nascido antes que o  deus dos cristãos. Haviam sido escritos para que as crianças pudessem ver-se na história dos seus, para que conhecessem o movimento das estrelas, a freqüência das elipses, as profecias dos deuses e para que pudessem chamar a chuva e as boas colheitas de milho.

            Uma história feita a partir das façanhas daqueles que não se vêem diante de um continente para construir mas, diante da presa   fácil, do lucro vil. Ou a partir  das lutas, do caminhar e do sofrer  dos que sabem e são presos, dos que desejam e são impedidos de chegar à sociedade justa. Uma história de encantamentos provocados por palavras que, sem dúvida, se dirige aos sentidos, mas que, sobretudo, se mostram cheias de interrogações ( e de respostas) sobre aqueles que construíram (destruindo) os destinos do Continente.

            Palavras cuja sedução está muito longe de ser inocente.





                                                                                

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