sábado, 5 de dezembro de 1987

Do humor de Humberto Costantini

            Segundo Humberto Costantini, seu exílio durou sete anos, sete meses e sete dias. Então, retornou a Buenos Aires onde a Editora Brughera festejou sua volta com a publicação de De dioses, hombrecitos y policias, Prêmio Casa de las Américas, um romance que, durante anos, foi proibido na Argentina enquanto circulava em edições do México, Bulgária, Alemanha, Israel, Cuba, União Soviética e Estados Unidos.

            Para o português, não foi traduzido. Portanto, nunca é demais insistir no prejuízo desse isolamento em que vive o Brasil em relação aos demais países do Continente pois ele é responsável pelo desconhecimento de obras cuja leitura, por várias e diferentes razões ou é imprescindível ou proporciona momentos de incalculável prazer. Como o caso desse romance, publicado em 1984 em Buenos Aires.

            De dioses, hombrecitos y policias é uma narrativa construída em três linhas paralelas e trata, exatamente, segundo informa o título, de homenzinhos, deuses e policias. Os homenzinhos formam um grupo de amantes de poesia , a Agrupação Polimnia, já no seu décimo ano de atividades  que se reúne a cada mês com o inocente desígnio de ler, para um auditório atento, os seus poemas. No Olimpo, os deuses Afrodite, Atenéia e Hermes que entre esses cultores de poesia tem  os seus preferidos.  Atentos a seus destinos, sabendo-os ameaçados, esquecem   os próprios desacordos para antepor-se a Edes e  a seus malefícios. Os policiais se preparam para obedecer a ordens superiores que determinam executar doze elementos do grupo  tidos por subversivos. Ordens  que, na verdade, não advém do tirocínio ou da justiça mas somente da vontade de  Edes, deus vaidoso, impotente para o amor e que precisa de mortos para povoar os seus domínios.

            A ação se passa em poucas horas: o tempo que dura  a  reunião da Agrupação Polimnia do dia 3 de dezembro de 1975. Nela,  como sempre,  os sócios, ou seja, os homenzinhos, lêem os seus poemas. Tempo suficiente para que dois círculos se fechem ao redor deles:  a Sombra anunciadora da Morte, fiel serva de Edes, primeiramente traçando círculos lentos em torno da casa para depois se aproximar e, sob a inócua aparência de mancha de umidade, se instalar sob o teto;  e os quatro Ford Falcon que se aproximam com muitos homens fortemente armados para cumprir a tarefa de extermínio.

            Dos homenzinhos, sabemos pela narrativa de um deles a partir do que vê e do que percebe;  a ação policial  é dada a conhecer através de relatório de subordinados  aou chefe; e os feitos dos deuses, transmitidos pelo narrador todo-poderoso a quem é permitido, inclusive, saber o que se passa no Olimpo.

            Essas três vozes se entremeiam  e, ora no presente, ora no futuro vão contando o que se passa e o que se passará nessa casa situada numa das ruas de Buenos Aires para onde convergem cuidados e interesses tão díspares. A do narrador omnisciente, revelando como o destino dos humanos está submisso ao capricho dos deuses; a  de José Maria Pulicichio, muito cândida, expressão de uma visão de mundo alienada -  e comum  a dos demais  sócios – que lhe permite encontrar refúgio na Polimnia : em meio ao caos de violência e escuros apetites que se cerne sobre Buenos Aires neste verão de 1975 nossa Agrupação é para nós uma ilha, um oásis de paz, um lugar onde, ainda, o culto do espírito prima sobre a burda matéria e sob cujo teto, e em especial junto a seu  pátio florescido de glicínias, encontramos por fim o quê, com obstinação a vida nos tem negado durante anos. Compreensivo e sentimental até o exagero o seu discurso ridículo e risível é tão  ridículo e risível  quanto aquele dos relatórios policiais . Remetem a uma comicidade  que não é vã  porque alimentada com esse humor ácido que é o humor de que fala Luigi Pirandello, “o sentido do contrário: aquele que a partir de uma cena, de um fato cômico faz surgir a reflexão que transforma a comicidade em sofrimento. Isto é, a cristalização do riso.

            A leitura de Dioses, hombrecitos e policias faz rir. Um riso que muitas vezes se cristaliza. E’quando o livro de Humberto Costantini se torna um libelo contra essas sombras ameaçadoras e essas presenças terríveis – os conhecidos Ford Falcons levando presos quaisquer cidadãos, os seqüestros, as torturas, as conhecidas mortes sem julgamento pelos para-policias -   que impedem o vida no Continente.

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