Eduardo
Galeano, que se iniciou aos quatorze anos no jornalismo e dirigiu a revista Crisis (enquanto ela durou) era, nos
primeiros anos da década de setenta, autor confessado de duas obras: Las venas abiertas de América Latina
(1971) e Vagamundo (1973).
Em
1975, premiado pela Casa de las Américas, o seu romance La canción de nosotros, traduzido para o português por Eric Nepomuceno e publicado
pela Paz e Terra três anos depois. Romance, panfleto, testemunho ou documento
histórico, não cabe aqui discutir a
questão de gênero de A canção de nossa
gente até porque não faltarão teóricos para fazê-lo ainda que o próprio
autor não saiba como defini-la: romance
ou o que seja, ele diz. Porém, no
momento, sem dúvida cruciante para os países da América Latina, talvez mais
importante seja a aproximação a seus
temas ou ao seu tema central, em
uníssono com uma grande parte da ficção latino-americana contemporânea que ora
descreve caricaturalmente o opressor (García
Márquez, Alejo Carpentier, Augusto Roa Bastos) ora, tragicamente, o oprimido
(Árguedas, Montaner, Scorza, Fuentes).
O
livro, dedicado a Montevidéu, se inicia com um poema e se constrói,
fundamentalmente, sobre dois destinos: Mariano e Ganapán. Entre eles, o de
Fierro. Não mais o da legenda, porque este levantou sua voz, mas um Fierro
nosso contemporâneo cuja opção de vida só o pode aniquilar por irreversível e porque os tempos mudaram e
a repressão se faz, hoje, noutras condições das quais Fierro, o de Hernández,
escapou. Ao redor dos três, os desempregados, os famintos, os marginais. E,
dominando a cidade nos seus habitantes, a Máquina. Retrato fiel ou, simplesmente herança aperfeiçoada daquela
que dominou a América Latina no século XVI e seguintes, e de cujos feitos A
Máquina, se não se constitui o cerne da obra, é expressão convincente daquilo
que, em muitas reuniões internacionais, se define como atentado aos direitos do
homem.
Mariano,
jovem jornalista de parcos recursos, sente-se realizado em poder escrever a
verdade. Esta posição – desde tempo imemoriais rejeitada pelo Poder – ou sua
amizade com Fierro o levam para a prisão. Ganapán,
criado num orfanato, ex-operário que segundo ele próprio veio ao mundo para
sofrer ( nasci torto e me puseram mau
olhado) encontra Mariano ferido, entre as macegas, fugitivo da prisão, o
esconde no seu barraco e, mesmo dando-se conta que ele pertence a outra classe
social, o alimenta e trata.
As
últimas páginas do livro contam do reencontro dos dois marginalizados: um,
procurado pela polícia, o outro, ganhando a vida a juntar lixo. Ganapán se
admira de que Mariano tenha voltado pois, na sua opinião, ele tinha modos de rico. Mariano, além de
expressar gratidão quer, também, conscientizar, talvez. Talvez cooptar. Estão de acordo em que a
situação está muito ruim. Igualmente, de acordo, que ela precisa mudar. Sobretudo, de e que é
necessário fazer algo. No barraco, a luz do lampião é bem pouca. Suas duas sombras, gigantes, se aproximam nas paredes
de lata...
Uma narrativa feita com riqueza de palavra , expressar
a angústia, as interrogações. A cidade sugerida, presente no mar, no porto, nas folhas de plátano, no
detalhe da vida cotidiana. O temor do hoje que só por felicidade pode
transformar-se no amanhã. As perguntas que são reflexões ou deveriam levar à reflexão. Sobre a palavra ou sobre o
poder da palavra. Se basta escrever para se redimir ou redimir. Ou se, unicamente, a ação é redentora. Porque
a canção se esvai, se dilui num testemunho numa repetição contínua ( mais uma
vez a imagem de Sisifo). O otimismo contido nas últimas palavras do livro nessa
sugestão de uma luta que recomeça na América, se chama esperança.
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