domingo, 13 de setembro de 1987

A canção de nossa gente

            Eduardo Galeano, que se iniciou aos quatorze anos no jornalismo e dirigiu a revista Crisis (enquanto ela durou) era, nos primeiros anos da década de setenta, autor confessado de duas obras: Las venas abiertas de América Latina (1971) e Vagamundo (1973).

            Em 1975, premiado pela Casa de las Américas, o seu romance La canción de nosotros, traduzido para  o português por Eric Nepomuceno e publicado pela Paz e Terra três anos depois. Romance, panfleto, testemunho ou documento histórico,  não cabe aqui discutir a questão de gênero de A canção de nossa gente até porque não faltarão teóricos para fazê-lo ainda que o próprio autor não saiba  como defini-la:  romance ou o que seja, ele diz.  Porém, no momento, sem dúvida cruciante para os países da América Latina, talvez mais importante  seja a aproximação a seus temas ou  ao seu tema central, em uníssono com uma grande parte da ficção latino-americana contemporânea que ora descreve caricaturalmente o opressor  (García Márquez, Alejo Carpentier, Augusto Roa Bastos) ora, tragicamente, o oprimido (Árguedas, Montaner, Scorza, Fuentes).

            O livro, dedicado a Montevidéu, se inicia com um poema e se constrói, fundamentalmente, sobre dois destinos: Mariano e Ganapán. Entre eles, o de Fierro. Não mais o da legenda, porque este levantou sua voz, mas um Fierro nosso contemporâneo cuja opção de vida só o pode aniquilar  por irreversível e porque os tempos mudaram e a repressão se faz, hoje, noutras condições das quais Fierro, o de Hernández, escapou. Ao redor dos três, os desempregados, os famintos, os marginais. E, dominando a cidade nos seus habitantes, a Máquina. Retrato fiel  ou, simplesmente herança aperfeiçoada daquela que dominou a América Latina no século XVI e seguintes, e de cujos feitos A Máquina, se não se constitui o cerne da obra, é expressão convincente daquilo que, em muitas reuniões internacionais, se define como atentado aos direitos do homem.

            Mariano, jovem jornalista de parcos recursos, sente-se realizado em poder escrever a verdade. Esta posição – desde tempo imemoriais rejeitada pelo Poder – ou sua amizade com Fierro o levam para a prisão.           Ganapán, criado num orfanato, ex-operário que segundo ele próprio veio ao mundo para sofrer ( nasci torto e me puseram mau olhado) encontra Mariano ferido, entre as macegas, fugitivo da prisão, o esconde no seu barraco e, mesmo dando-se conta que ele pertence a outra classe social, o alimenta e trata.

            As últimas páginas do livro contam do reencontro dos dois marginalizados: um, procurado pela polícia, o outro, ganhando a vida a juntar lixo. Ganapán se admira de que Mariano tenha voltado pois, na sua opinião, ele tinha modos de rico. Mariano, além de expressar gratidão quer, também, conscientizar, talvez.  Talvez cooptar. Estão de acordo em que a situação está muito ruim. Igualmente, de acordo,  que ela precisa mudar. Sobretudo, de e que é necessário fazer algo. No barraco, a luz do lampião é bem pouca. Suas duas sombras, gigantes, se aproximam nas paredes de lata...

             Uma narrativa feita com riqueza de palavra , expressar a angústia, as interrogações. A cidade sugerida, presente no  mar, no porto, nas folhas de plátano, no detalhe da vida cotidiana. O temor do hoje que só por felicidade pode transformar-se no amanhã. As perguntas que são reflexões ou deveriam  levar à reflexão. Sobre a palavra ou sobre o poder da palavra. Se basta escrever para se redimir ou redimir.  Ou se, unicamente, a ação é redentora. Porque a canção se esvai, se dilui num testemunho numa repetição contínua ( mais uma vez a imagem de Sisifo). O otimismo contido nas últimas palavras do livro nessa sugestão de uma luta que recomeça na América, se chama esperança.

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