domingo, 1 de novembro de 1987

Trilogia da Miséria. I Miguel Cara de Angel

            No ano de 1967, o guatemalteco Miguel Angel Astúrias recebia o Prêmio Nobel de Literatura com o romance El señor presidente, um livro perfeito e terrível como poucos. Em se tratando da Literatura do Continente, tão pródiga em textos que expressam a violência, trata-se de uma obra que contém, talvez, os textos mais sombrios e cruéis sobre os meandros de uma ditadura e sobre a desintegração física e moral de um cidadão dessa ditadura.

            Entre os muitos personagens do romance, destruídos pela vontade onipresente e absoluta do Presidente, um deles, Miguel Cara de Angel é aquele que sofre todas as degradações a que podem estar sujeitos os habitantes desses espaços pertencentes a uns poucos, os territórios de ninguém.  Miguel Cara de Angel é belo, rico e tem nas mãos as vantagens fáceis e irresponsáveis daqueles que aceitam se submeter  às vontades do Poder, que aceitam ser cognominados favoritos. Pouco se conhece de sua vida a não ser que tem caminho livre junto ao senhor Presidente. Também se ignora se é feliz. Porém, repentinamente, tem consciência da angústia que o assola: quando  se dá conta do amor que sente por Camila, filha do homem marcado para ser destruído, quando presencia o seu sofrimento e a   doença que a faz se  aproximar da morte. Sobretudo, ao perceber que  ela era o único ser que amava e estava preso no terrível círculo que a todos envolvia. Aceita, por fim, a lucidez da qual, por interesse, até então fugira . E com isso, se torna um inimigo para o Presidente que nada perdoa e do qual  não consegue escapar.

            Ao constatar  que lhe resultara impossível a fuga e que outro títere  já tomara o seu lugar junto ao Presidente, pensa apenas em  correr, voar, desaparecer. Mas, é traído por aquele a quem um dia salvara a vida que o prende, o tortura e o  atira sobre o esterco, num trem   para uma viagem que não terá retorno.

            Passa os anos num calabouço, incomunicável.  Imóvel,  doente, quase cego, reumático, padecendo nevralgias errantes  vai definhando. A crueldade do espaço limitado, a falta de liberdade, e a solidão não conseguem lhe tirar  todo alento porque vive na esperança de rever Camila. Porém, não apenas essa esperança lhe é arrancada, como a imagem que restava dela  lhe chega, através da maldade de seus carcereiros, ultrajada, enlameada, conspurcada.

            Na imundície, na desolação, no desamparo total de homem que, em meio a uma incomensurável miséria, ainda recebe  motivos para ser mais miserável –  saber  da traição da mulher amada – Miguel Cara de Angel morre.

            O ciclo degradante de usufruto do Poder  para a condição de vítima desse mesmo Poder se completara.             

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