sábado, 14 de novembro de 1987

Trilogia da miséria. III. Urpiano

            Jorge Asís é autor de onze livros, dois dos quais traduzidos para o português, em 1978, pela Civilização Brasileira: Os arrebentados e Os FAC.  Argentino, nascido em Buenos Aires em 1946, publicou o seu primeiro livro de contos aos vinte e cinco anos. Hoje, na sua já vasta obra, entre um livro de poemas, entre contos e romances e textos jornalísticos, destacam-se os três livros La calle de los caballos muertos, Carne picada e Cangurus que formam a trilogia Cangurus. Um longo romance cujo tema político se insere  nas entrelinhas de transgressões, crimes, misérias, trabalho, exílio interiores dos marginalizados, dos derrotados que povoam o subúrbio de Buenos Aires e que pela grande cidade são devorados.


            Histórias múltiplas de amores, tristezas, mortes, desesperos, violência e sangue. De passividade diante de uma vida sem sentido ou cujo sentido é determinado pelo único espaço concedido: o de uma irreversível miséria. E é esse é o  espaço de Urpiano, marido de Mercedes, genro de Joana. O esforço que faz para chegar ao trabalho e para voltar para casa – mais de duas horas de viagem, de manhã e de noite, saía e voltava no escuro, tinha que pegar o 71 até Sarandí, daí o 33 até Retiro e depois o trem -  e para trabalhar como um animal de carga está muito aquém do que deseja da vida. Na verdade, quer apenas que os filhos cresçam para se desfazer deles e da mulher. Por vezes, a paciência ou a lucidez lhe faltam. Sem estar bêbado não tem condições de administrar a sua patética humilhação cotidiana.

            Trabalhar inexoravelmente, ganhar nesse trabalho o mínimo para, no fim do dia, mal ver os filhos e ter, somente, forças insuficientes para se gastar no vinho. Operário explorado, cidadão desrespeitado e marido traído. Que mais lhe resta se não suporta nem a companhia de sua sombra?

            Num domingo, resolve assassinar todos os que estão a seu redor.

            Foi quando a Mercedes fugiu. Deixou-lhe as três crianças e, mais do que um problema, proporcionou-lhe uma solução com a vinda de Joana, a sogra. Alta e forte, avó jovem e carinhosa não se limitou  a tomar conta da casa mas ocupou também o leito deixado vazio.Mercedes porém voltou, querendo ficar para sempre. Na disputa estabelecida, a opinião dos parentes foi que somente o dono da casa deveria decidir.

            Naquele dia, Urpiano chegou tarde. Moído demais, acompanhado por algum delírio de vinho mais ou menos chispante para decidir alto tão transcendental  e muito menos para ficar prestando atenção em detalhes tão irrisórios como esses de quem  ficava, quem ia embora e outras miudezas. Recebeu a Mercedes como se nunca tivesse ido embora e cumprimentou a Joana como se sempre tivesse estado ali. E  continuou suas longas viagens para o trabalho. E suas longas viagens de regresso para encontrar tudo igual que antes.

            Até que, num outro domingo, resolveu matar todo mundo.

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