domingo, 31 de dezembro de 2006

Fixar o efêmero


            A capa e a contra-capa são de um azul que esmaece e nele apenas o nome da autora e o título da obra. Publicado neste 2006, Azuis:poemas é o segundo livro de Sigrid Renaux e aparece vinte e  sete anos depois de sua estréia com Do mar e de outras coisas. Ao todo, são cento e cinqüenta e oito poemas que expressam a emoção diante dos lampejos de luz e das nuanças onde reina o azul a marcar a terra com suas ilhas e suas dunas, as águas do mar e da lagoa, um pinheiro, um barco; a definir a noite, o céu, a brisa, o sol da manhã, o orvalho. O azul onde se insinua o verde das folhas e do mar, o verde-ouro das árvores, o amarelo dos marfins, o rosa das flores da paineira, o branco das ondas. É o olhar, atento, que, também, surpreende o sol entre as agulhas do pinheiro, as folhas do plátano, os ciprestes a cinzelar seus verdes, o perpassar do outono nas folhas do caquizeiro. Que vislumbra o olhar do sabiá preso à uma chuva de ouro / soprada pelo vento, o ciscar de gravetos do joão-de-barro, os pardais pousados sobre os fios de luz, a imobilidade de uma garça. Pássaros que, muitas vezes, são presença num canto que paira luminoso / lá do lado do sol, que num jardim adormecido / irrompe / incontido, nas suas melodias que impregnam a noite / com gotas de madrugada.


            Um mundo revelado na singeleza de mistérios: hortênsias que se entreolham, tuias a guardarem o sol das dálias e o sabor dos araçás. E a esse mundo, entrelaçando-se, a voz poética a se desvelar nas reminiscências que irão se constituir o itinerário de uma biografia. Neste itinerário, a silhueta dos pinheiros – esmaecidos na luz do dia, deixando luzir, entre suas “gulhas, o amanhecer, a pairar na distância de uma tarde de verão – fazem vislumbrar Curitiba tanto quanto o canto do sabiá, atravessando a sonoridade da chuva, gorjeando melodias infindas; o Saci e a reinação das crianças do Sítio do Picapau Amarelo e a chácara distante: do longo convívio com os livros, as lembranças de leitura oferecem temas;  persistem vivas a emoção diante de um quadro,  a sonoridade de uma peça musical. Muito contida, a emoção que se enraíza nas origens a lembrar  a figura materna. Apenas imagem distante, a mãe que não mais existe e pode ser, nessa outra dimensão que desconhecemos, nuvem / estrela / flor, a repousar na  sombra de dois cedros / entre lilases e a relva escura / de um jardim distante. Na emoção de recordá-la e desejar presente, o verso diz que azuis / seus olhos repousam / nas rosas da trepadeira / sobre o portão. Nas estrofes seguintes, cores e luz e sombra no jardim onde, no verso os cedros ainda vicejam, o advérbio indica o tempo que passou.

Azuis:poemas é feito de pequenas estrofes, quase sempre sem título, libertas de sinais de pontuação e em que significados já despontam na expressiva disposição gráfica. No tempo verbal presente, a determinar o agora e nos gerúndios, o breve ou o longo prolongar desse presente. E no nomear das coisas que adjetivos e epítetos enriquecem com significados inesperados – pinheiro / pincéis de agulhas verdes, outono / vôo vermelho e mortal das folhas, do outono das árvores / soltam-se as folhas de um sol / esquecido – se instala um mundo de encantamento no qual se inscreve, sobretudo o efêmero que existe no desencontro branco das ondas, nos pássaros suspensos / ousando por um instante nas árvores. Porque do que é passageiro, Sigrid Renaux se apossa: Eu tenho a tarde toda para olhar as nuvens / eu tenho a tarde para olhar /  a tarde. Assim, do lento ou apressado deslizar das nuvens no céu, como do som do mar na madrugada e da luz que bate nos seus olhos fechados, com o poder que é dado aos poetas, ela os aprisiona em pequenos versos que palpitam de vida e de beleza.

domingo, 24 de dezembro de 2006

A guerra da Espanha nas memórias de Pablo Neruda: a fogueira


            A quinta parte das memórias de Pablo Neruda tem por título “España en el corazón” e se inicia com o testemunho sobre Federico García Lorca e Miguel Hernández. Logo, sobre a revista El Caballo Verde da qual foi diretor e cujo sexto número não foi terminado porque, no dia em que deveria aparecer, o 19 de julho de 1936, Francisco Franco se rebelara contra a República espanhola. E, novamente, a presença do poeta de Bodas de sangre, no relato do pré-conhecimento que ele havia tido de sua morte. Então, Pablo Neruda fala de España en el corazón, seu primeiro livro de poemas combatentes: creio que poucos livros, na história estranha de tantos livros, tenham tido tão curiosa gestação e destino. Publicado em novembro de 1937, em Santiago, foi traduzido em várias línguas. Um ano depois, aparecia numa edição surpreendente, impresso perto de Gerona, num velho mosteiro. Seu amigo, Manuel Altolaguirre, o mesmo que o fizera diretor de El Caballo Verde, instalou uma impressora em plena frente de batalha. Os soldados aprenderam a fazer uso dela e quando faltou papel, o fabricaram num velho moinho, utilizando não apenas algodão e trapos, mas vendas, roupas, uma bandeira inimiga e a camisa ensangüentada de um soldado mouro. Porém, apenas ficou pronto o livro, deu-se a derrota dos republicanos e milhares de espanhóis iniciaram a sua fuga para França. Entre eles, Manuel Altolaguirre e os soldados que haviam composto e imprimido, em meio à ameaça de morte nas trincheiras, España en el corazón. O livro era para eles um orgulho e o carregavam para o desterro, na sofrida marcha em direção ao norte, numa longa fila, que, muitas vezes, sofria a ação de bombardeios.
            Doze anos antes do aparecimento de Confieso que he vivido, Pablo Neruda publicava na revista O CRUZEIRO Internacional, dez capítulos de suas memórias. O sétimo deles, com o título de “Tempestad en España”, se inicia com o relato da comemoração, na Espanha, dos vinte e cinco anos da insurreição contra a República: Justamente quando escrevo estas linhas, a Espanha oficial celebra vinte e cinco anos da insurreição. Um dado temporal que precisou ser alterado quando retomou os textos escritos em 1962 para o seu livro de memórias. Assim, vinte e cinco anos foi substituído pelo termo tantos que, impreciso, remete ao momento em que ocorreu a ação para um passado indeterminado, permitindo a leitura em qualquer tempo. No entanto, se tal substituição foi necessária, outras houve como, também, eliminações e acréscimos de palavras ou de expressões que se originaram dos mais diversos motivos. Na menção que faz, no texto da revista, à tropa que Franco (designado por Caudillo) passa em revista, ele diz: Estas tropas, que suponho composta por rapazes que não conheceram esta guerra.  No livro, a seqüência sofreu o acréscimo da expressão na sua maioria e a substituição dos adjetivos demonstrativos que, então, passam a indicar uma ação ocorrida mais distante no tempo: umas tropas compostas, na sua maioria, de rapazes que não conheceram aquela guerra. Mais adiante, no texto de O CRUZEIRO, se refere aos moços que desfilam diante da Guarda Moura como aqueles que ignoram talvez a história ou conhecem somente seu lado branco ou negro. No livro, a seqüência em questão, se transforma: ignoram talvez a verdade dessa história tremenda. No episódio que narra a retirada dos republicanos para a França, as modificações possuem um significado que vai além de simples preocupação estilística. Ao se referir aos inúmeros bombardeios lançados sobre os fugitivos inicia a frase com o advérbio alli e usa o verbo desgranar (debulhar): Ali caíram muitos soldados e se debulharam os livros na estrada. Outros, extenuados, enfiaram embaixo de uma pedra ou atrás de um arbusto os perigosos ramos de minha poesia. No livro, apenas: Caíram muitos soldados e se esparramavam os livros na estrada. Outros continuavam a infindável fuga. E o que na versão do livro apareceu diluído numa frase de sujeito indeterminado, como a minimizar a atuação dos franceses, Além da fronteira trataram brutalmente os espanhóis que chegaram no exílio, na revista, se mostra claro não apenas quanto ao lugar, mas quanto ao sujeito da ação: Na fronteira da França as tropas francesas trataram brutalmente os homens que chegavam ao longo exílio.

            E destino igualmente perverso teve, nas injustas mãos francesas, España en el corazón: Numa fogueira foram imolados os últimos exemplares daquele livro ardente que nasceu e morreu em plena batalha.

domingo, 17 de dezembro de 2006

A guerra da Espanha em Saga: a chegada


            No Prefácio para a edição de Saga da Editora Globo, escrito vinte e seis anos depois do aparecimento do romance, em 1940, Érico Veríssimo menciona a razão que o levou a escrevê-lo e as escolhas que fez como ficcionista: em princípios de 1940, um brasileiro, ex-combatente da Brigada Internacional anti franquista, lhe ofereceu o seu diário de guerra para que o aproveitasse num romance. Dessas páginas, ele tirou anotações de ordem geográfica e referentes ao movimento das tropas e, ainda, um punhado de outras descritivas da vida nas aldeias espanholas e nas frentes de batalha. De sua imaginação, o personagem Vasco Bruno que de Porto Alegre parte para a Espanha com o intuito de lutar na Brigada Internacional contra Franco, irá narrar a sua experiência como soldado até o momento de sua volta ao Brasil e de sua nova escolha de vida.

            Saga se constrói em quatro partes: na primeira, “O círculo de giz”, o relato da chegada de Vasco Bruno na Espanha e de sua atuação na Guerra como soldado da República Espanhola; a terceira, “O destino bate à porta”, dá conta de seu retorno ao Brasil onde se casa com Clarissa e passa a viver, como agricultor no vale de Águas Claras o que é contado na última parte, “Pastoral”. A segunda parte, “Sórdido interlúdio” é a mais densa do livro. Mais do que ligar a primeira parte à terceira, se constitui um documento sobre o que ocorria em Argelès-sur-Mer. Nesse povoado francês, às margens do mar Mediterrâneo, os espanhóis republicanos foram encurralados como animais num campo de concentração, vigiado por tropas senegalesas, constituídas de soldados brutos e insensíveis.

            Tratando-se de um texto em primeira pessoa, há evidentemente, o registro dos sofrimentos suportados pelo narrador: o frio do vento gélido que levanta areia e neve, a fome que só pode ser saciada irregularmente e com alimentos frios, esquentados no tanque de gasolina de um caminhão, a escassez da água, suja e salobra que para obter era preciso esperar longo tempo na fila. Ao seu redor, estão os outros, cento e oitenta mil espanhóis que esperavam encontrar refúgio do outro lado da fronteira e, que, no entanto, se depararam com uma prisão ao ar livre, o testemunho impera: não temos casas nem barracas, dormimos ao relento e contra o frio, somente o recurso de se amontoar uns por cima dos outros, numa espécie de fétida cooperativo de calor. No espaço reduzido em que se movem homens sujos, peludos, esfarrapados e lívidos, a provação e o sofrimento não os impedem de continuarem a ser iguais a si mesmos no cultivo do egoísmo e do instinto de posse, na ânsia do lucro. Como eles não se dispõem à compreensão, basta que alguém, sem o querer, esbarre no outro, para que uma  violenta troca de palavras se inicie e, por vezes, se degenere em agressões físicas: os contendores, engalfinhados como fera, saem a rolar pela neve. Tampouco se dispõem a esquecer o significado dos possessivos e, assim, o que se apossa de algo, logo se depara com o que aquele que se acredita dono desse algo e se insurja, ferozmente, para defender o quê, talvez, não passe de uma ninharia; e assim, o que busca tirar proveito como o velhote francês de sobrecasaca sebosa que chega, duas vezes por semana, no seu “caminhão cheio de bugigangas para tirar, dos habitantes do campo, suas últimas pesetas em troca de carteiras de cigarro, sabonetes, latas de conserva.

Entre os agressores (o que delata, os que matam, os que legislam contra o semelhante) e as vítimas (rostos macerados, doentes que gemem e se torcem de dor ou têm acesso de loucura ou deliram febris), Vasco Bruno constata a presença dos que revelam ânimo forte, espírito organizador: fazem reuniões, reivindicam, prestam serviços. Em meio do caos em que os prisioneiros se acham demasiadamente enfraquecidos e desmoralizados para reagir e se o fizessem não poderiam se opor à força armada de fuzis e metralhadoras daqueles que os vigiam, eles são as vozes lúcidas e cheias de esperança. Uma esperança que tampouco abandona Vasco Bruno ao ter, ainda, olhos e alma para apreciar os crepúsculos de inverno por trás dos Pireneus embora doente e vivendo, como a população inteira do campo de concentração, o prolongamento da guerra: abjeção e sofrimento impostos aos derrotados além da cruel desilusão de encontrar, do outro lado da fronteira, não a esperada acolhida humanitária e, sim, passagem para uma estação no inferno.

domingo, 10 de dezembro de 2006

A guerra da Espanha em Saga: os tipos


Uma paisagem bela tem a força de me comover até as lágrimas. Mas a paisagem humana é a que mais me interessa, diz o narrador de Saga, Vasco Bruno, logo no segundo capítulo do romance. E o que chama de paisagem humana estará presente ao longo da narrativa que faz dos dias que viveu como soldado voluntário da Brigada Internacional que, na Espanha, lutava contra as tropas de Franco. Menciona alguns traços dos companheiros que o rodeiam: cabelos lisos, uma larga cara trigueira, cara ascética, muito branca, de testa alta e lábios apertados, louro e emaciado, duma palidez doentia, quarenta anos presumíveis, magro, tostado de sol e senhor de maneiras mundanas, rosto descarnado e oblongo, dum moreno lívido, cara eqüina e grossas sobrancelhas eriçadas0. E como o hábito de desenhar cabeças humanas lhe dera o gosto de analisar os traços fisionômicos, lhes amplia os perfis: o do velho catalão que perdeu, na guerra, os filhos e netos, a casa, a vinha e os trigais e nos seus oitenta anos tem uma expressão de pétrea energia no rosto pregueada de rugas terrosas e mãos que se assemelhando a raízes tentaculares são enormes e nodosas e parecem trazer ainda a marca da terra; o do polaco que só fala a sua língua e não se dispõe a se entender com os demais por gestos e por expressões; seus olhos são esverdeados e pequenos, seu rosto vermelho e de testa curta. Diante de uma cena de destruição e de morte, olha com olhar vago, mas ao ver o piano, seu rosto ganha uma expressão indescritível. Deixa cair as mãos pesadas sobre as teclas e a música de Beethoven, Chopin, Bach conta delícias do céu. Depois, fecha o piano com cuidado carinhoso e atravessa a sala sombria, apanha o fuzil e sai sem dizer palavra; ou, ainda, o do espanhol de Cadiz cujos pés foram esmagados num bombardeio: Magro, ossudo, encurvado [...] tem um rosto miúdo, a boca muito rasgada e um queixo prognata que lha dá um grande caráter à fisionomia. A barba de três dias branqueia híspida contra o moreno da pele rugosa.

Por vezes, Vasco Bruno se detém nas razões que norteiam seus companheiros: aquele que, apesar de tudo, ainda acredita nos homens e na possibilidade de um mundo melhor ou o que pensa que todos os males do mundo, de um modo geral, se originam da idiotice irremediável do gênero humano e da malévola esperteza dos padres. Identifica idealistas puros que desejam oferecer a vida em sacrifício de qualquer idéia; os que chegam, simplesmente, por espírito esportivo. Não estão desiludidos do mundo nem falam em ideal. Acham que a vida é uma só e o homem tem todo o direito de usá-la ou perdê-la como entender. Os que se mostram sem ilusões quando constatam que tanto o comunismo quanto o fascismo já foram minados pelos seus próprios construtores, que não há nada mais parecido com o comunismo do que o fascismo.

            Sem mencionar nomes ou nacionalidades, fala de tipos turbulentos e palavrosos, sujeitos sociáveis que só podem viver em grandes grupos; dos solitários que procuram os cantos sombrios e dos que anseiam pela hora decisiva e dos que parecem ter prazer no medo terrível que sentem da morte; dos serenamente bravos e dos que se esforçam para não fraquejar. Também, dos insubordinados e dos derrotistas, dos que se entregam à pilhagem e que formam o batalhão disciplinar, cuja missão é cavar trincheiras na linha de fogo, abrir estradas e enterrar cadáveres. Andam sem sapatos e recebem menos alimentos – sem pão e sem vinho – do que os outros. Sujos e queimados de sol já nem parecem homens.

             Num cenário apenas sugerido e quase sempre degradado pelas ações da guerra, esses inúmeros tipos, embora submissos à lei da Brigada Internacional, compõem um universo em que se inscrevem múltiplas idéias e diferentes motivações e no qual nem sempre grassaram os heroísmos ou foram ocultadas as fraquezas ou as dúvidas. Assim, se constituiu, segundo seu autor, o mais controvertido de seus romances, desagradando tanto os esquerdistas como os direitistas. Num momento em que, ferozmente, se digladiavam as ideologias, Saga não é expressão das escolhas políticas de Érico Veríssimo, apenas revelam, no intrincado romanesco das ações bélicas e dos sofrimentos dos homens, as inquietações de um ser pensante diante de um mundo que parece não ter conserto.
 

domingo, 3 de dezembro de 2006

A guerra da Espanha em Saga: o mapa


Vasco Bruno tinha doze anos e estava olhando um mapa pendurado na parede. Clarissa se aproxima e quer olhar também. Sonhadores, perguntam um ao outro qual lugar desejariam conhecer. A China, diz Clarissa. Vasco, com o dedo apontando ao acaso, indica Tortosa, na Espanha. Quatorze anos depois, está em Tortosa. E como soldado voluntário da Brigada Internacional, a defende das tropas de Franco. Chegara na Europa, na terceira classe de um navio, obedecendo ao impulso que lhe viera num momento, de cansaço, de dificuldades financeiras, do desejo de aventuras. No primeiro capítulo de Saga, está em Cerbière, pequena cidade francesa às margens do Golfo de Leão e espera o trem que o levará, junto com outros voluntários, para Porthou, na Espanha, início de um itinerário marcado pelas cruéis tragédias da guerra. Da janela do trem vislumbra os Pireneus cujos cumes de neve recebem a luz do anoitecer. Logo o túnel e a chegada na povoação espanhola, quase toda destruída pelos aviões inimigos vindos da base aérea de Maiorca. No dia seguinte, outra vez no trem em direção a Figueras onde são alojados num velho convento beneditino de seiscentos anos. Logo, partem para Besalu, povoação muito antiga, cujos arredores são tomados pelos gritos dos soldados nos seus exercícios de guerra. De caminhão, sob o céu sombrio numa ameaça de chuva, seguem para Ollot e, daí, num trem que passa por Barcelona para a serra de Cambrills, à beira do mar onde se repetem os exercícios militares e a passagem dos aviões que sobrevoam o acampamento. Pela primeira vez, a explosão das bombas, o espetáculo dos corpos mutilados e da natureza em destroços o que acirra ainda mais a ansiedade dos homens que desejam lutar, mas que ainda se encontram desarmados. Finalmente, chegam as carabinas e os fuzis que são distribuídos antes da partida para a frente de batalha. Saem de madrugada, em caminhões que descem a colina para chegar, à noite, em Rasquera, povoado tipicamente catalão com suas casas brancas em sua maioria de dois andares, ruas tortuosas, calçadas de pedras redondas. À noite, os soldados têm permissão para caminhar pelo povoado e, curiosos, entram numa casa que, à semelhança de muitas outras, estava com as portas e janelas abertas. À luz do isqueiro de um dos soldados, se mostra um pedaço de vida que a guerra interrompeu: na mesa posta, a toalha de xadrez vermelho, quatro pratos, a moringa d’ água, o pão cortado em fatias. Antes do sol nascer, tornam a embarcar e os caminhões seguem para as margens do Ebro onde, num barranco, eles ficam dois dias antes de seguir rio acima para se posicionar na frente do povoado de Miravert, em poder das tropas de Franco. Olham para o seu castelo e escutam os murmúrios de que irão tentar a travessia do rio que, na verdade será feita. Antes, porém, as trincheiras onde estavam foram terrivelmente bombardeadas, assim como Ginestar que avistam de longe, desmoronando em meio à poeira e à fumaça sob o ataque aéreo, prodígio de precisão e método: bombas caem no rio destruindo os peixes e nos abrigos, ferindo e matando. Porém, é do outro lado do rio que Vasco terá o seu batismo de fogo numa luta que durou horas sob o sol causticante e tendo como objetivo um castelo em ruínas. Seguem-se os dias e os combates e eis que Vasco e sua companhia estão em Tortosa, nome que lhe ficará na lembrança, vagamente ligado à idéia de destino. Andando ao longo das trincheiras, é baleado e se inicia, então, um percurso que já começa a ser o de regresso: estação de Tarragona, hospital de Barcelona, trincheiras da serra de Caballs, hospital de Mataró, interregno em Barcelona. E, retirada em direção à França, junto com a grande multidão de espanhóis onde, além da derrota, novos horrores lhes advêm nesse espaço entre o mar e a cerca de arame farpado em que foram encurralados.

            Se os topônimos marcam o caminho percorrido pelos soldados da Brigada Internacional, o que os distingue, no entanto, é a crueldade de cada um dos atos de guerra da qual são o cenário. Érico Veríssimo, documenta em Saga (1940), não apenas a destruição material que da guerra decorre, mas o sofrimento dos que estão a seu serviço e de suas vítimas: mortes e perdas, fome, sede, cansaço, solidão. Também esse alinhavar de razões para justificar tantas dores, numa narrativa em primeira pessoa, voz do gaúcho Vasco Bruno, que, além de relatar o que presencia, expressa as emoções e as inquietudes de um homem que as circunstâncias fizeram soldado.

domingo, 26 de novembro de 2006

A guerra da Espanha em Subterrâneos da Liberdade: o êxodo


            Iniciado em março de 1952, em Dobris, na Tchecoslováquia e concluído no Rio de Janeiro em novembro de 1953, Subterrâneos da Liberdade é o longo romance de Jorge Amado que não somente retrata figuras das classes dirigentes do país e aqueles que trabalham para tornar o Partido Comunista uma forte expressão do povo brasileiro, como, ao narrar as ações de uns e de outros, com o desigual confronto de forças, revela o que está subjacente nos empreendimentos de exploração das riquezas do país.

            A Luz no Túnel, o terceiro volume da trilogia, se inicia com a prisão de Carlos e de Josefa, sua mulher, militantes comunistas e ao que foram submetidos pelos agentes da repressão da ditadura de Getúlio Vargas. Não recuaram diante da ordem de bater no filho, ainda bebê, que fora levado junto com a mãe. E o relato dessa ação se constitui um dos mais cruéis entre os que documentam em textos ficcionais – como anos depois o fariam Eduardo Galeano em La canción de nosotros, Miguel Angel Asturias em El señor Presidente, Mario Vargas Llosa em La fiesta del chivo, Augusto Roa Bastos em El Fiscal – as torturas infligidas a presos políticos. Mais adiante, o jantar na casa de um ministro de Estado, com a presença de um importante homem de negócios de Wall Street, homenageado por aqueles que lhe eram submissos, como explica uma personagem para outra: estávamos todos na mesa e cada gesto quem comanda, Marieta, é mesmo Mister Carlton. E, depois, os episódios congregando as ações dos militantes comunistas, feitas, tanto de miúdas tarefas partidárias, como do trabalho de reestruturação do secretariado regional, desmantelado pela violência policial e de discussões sobre estratégias para ampliar a máquina do Partido. Alternam-se, ao longo do romance, os relatos concernentes a esses dois mundos antagônicos: o dos que negociam, tanto quanto lhes resulta possível, as riquezas do próprio país, preocupando-se, apenas, em adivinhar quais seriam os melhores compradores, se os alemães ou os norte-americanos; e os que percebem que nem os alemães, nem os norte-americanos têm interesse na democracia do Brasil, mas, somente, na exploração de suas riquezas, ainda que em detrimento dos brasileiros.

            A partir de um liame temporal – Por essa época, em fevereiro, dois homens encontraram-se e reconheceram-se em meio à multidão de soldados e civis, na fronteira da França com a Espanha – continuando-lhe a trajetória, outra vez, a presença de Apolinário. Nos volumes anteriores, havia saído da prisão e de São Paulo, obedecendo às instruções do Partido, seguira para a Espanha como voluntário das Brigadas Internacionais. Com a derrota dos Republicanos findara a Guerra da Espanha. Ele devia comandar sua companhia para cobrir a retaguarda dos últimos soldados republicanos e da massa de fugitivos a dar tempo para que todos pudessem cruzá-la. Mantinha a ordem entre seus soldados: - Não estamos fugindo. Estamos nos retirando como soldados da República, com disciplina e ordem. Ao seu redor, a fúnebre procissão se movia em meio ao trágico inverno da derrota. Eram carros puxados por jumentos e bois, levando velhos e crianças e pobres pertences: colchões, panelas, trapos, arcas e baús antigos, quadros de santos católicos. Dos que se retardavam e caíam nas mãos dos mouros de Franco ou dos soldados das legiões fascistas que procuravam alcançar a massa em retirada, ficavam as manchas de sangue na neve. Dos céus, aviões alemães, metralhavam ao azar, deixando cadáveres no rastro de seu ruído assassino. Ao atravessar a fronteira, na noite, no frio, no vento, na fome, os fugitivos partiam para terras que não eram as suas, iam recomeçar a vida em país estrangeiro, de língua diferente, de diversos costumes. Não sabiam que seriam confinados num campo cercado de arame farpado como se fossem criminosos. Desse drama que, então, se instaura, Jorge Amado pouco revela.

domingo, 19 de novembro de 2006

A guerra da Espanha em Subterrâneos da liberdade: emoção


A critica literária brasileira aponta, em geral, duas fases na obra de Jorge Amado: a primeira, a partir de Cacau até Subterrâneos da Liberdade (trilogia da qual fazem parte Os ásperos tempos, Agonia da noite e A luz no túnel) e a segunda, na qual se incluem as suas demais obras.

            Subterrâneos da Liberdade tem por fito traçar um panorama da vida política brasileira nos anos do Estado Novo. Jorge Amado, na verdade, quer fixá-lo a partir das forças antagônicas que, na época, se digladiavam – o integralismo e o comunismo – e que, então, conduzem as ações de seus personagens. Uma extensa galeria da qual fazem parte os que dominam a cena (os políticos, os donos de grandes fortunas e alguns intelectuais ou pseudo-intelectuais que estão a seu serviço) e aqueles que lutam para instaurar uma nova orientação política (representados pelos integrantes do Partido Comunista). Entre eles, Apolinário. Aparece em os Ásperos tempos, primeiramente, a partir do que sobre ele era do conhecimento dos seus companheiros: lutara no levante do quartel do Terceiro Regimento, fora preso e dera magníficas respostas nos interrogatórios, discursara diante do juiz na fase de instrução do processo. Depois, no encontro com Marina, que fora lhe entregar os novos documentos de identidade no hotel onde se hospedava ao ser posto em liberdade, após quase dois anos de prisão e prestes a abandonar o país com destino a Espanha, enviado pelo Partido para lutar nas brigadas internacionais. Seu retrato vai-se fazendo: ao abrir a porta, mostra uma face jovem e sorridente de homem com ar infantil que faz com que Marina se admire de não ter diante de si o que esperava: um cara barbudo e feio, como os comunistas que os cartazes da polícia pintam. Fala sem parar, rindo sempre e pelas suas palavras se mostra um irmão atento e afetuoso, um filho que sabe do sofrimento da mãe que pertencia a uma família de militares, por ele ter sido expulso do Exército. E de seu contentamento em ir participar na grande batalha entre o proletariado e o capitalismo num país cujo nome não foi pronunciado, mas que tanto Marina quanto ele, guardavam no coração. Ao ficar sozinho, examina o documento de identidade que lhe serviria até atravessar a fronteira uruguaia. Logo, seria o navio até a Espanha e, talvez, outros caminhos. As instruções, na minúscula tira de papel que ele queimou o fizeram lembrar de um episódio na cadeia, da fragilidade da irmã, de Marina, a saudá-lo de longe, vista pela janela do hotel e, principalmente, da beleza da missão que o Partido lhe confiara: eram os operários brasileiros que o enviavam para ajudar a luta dos operários espanhóis. Não estaria longe do Brasil quando se encontrasse nas trincheiras de Teruel. Ao contrário, todo esse mundo brasileiro, esse misterioso mundo loiro de trigo ao negro de carvão, todo o Brasil estaria com ele, estaria dentro dele e seriam as Marianas de todo o Brasil, os Joões de todo o Brasil a sustentar o seu braço de fuzil levantando contra os falangistas de Franco, os fascistas de Mussolini, os nazistas de Hitler.

            Em Agonia da noite, ele já está na Espanha e com a ferida na perna apenas cicatrizada, marcha, entre laranjais, com seus soldados, cansados, porém contentes da vitória que haviam tido. E’quando ele sente, de verdade, a presença da morte ao encontrar a moça tombada entre laranjeiras, os grandes olhos abertos, a mão crispada sobre as folhas amarelas. Seu ventre fora rasgado pela rajada de metralhadora, as frutas que estivera colhendo ficaram esparramadas e o sangue dera tons vermelhos à casca cor de ouro. Algumas haviam sido partidas pelas balas e o seu mel saboroso se misturava ao sangue da camponesa morta.

            A metralhadora abandonada logo adiante, sugere o autor dos disparos, soldados inimigos que matavam soldados ou civis, homens ou mulheres, jovens ou velhos, como o fizeram com os donos da casa e do laranjal, tombados ali perto.

            A indignação de Apolinário e de seus soldados, diante dos inocentes mortos sem defesa se acompanha do sofrimento que é presença constante num campo de batalha. E, igualmente, daquela que advém face aos atos do inimigo, combatido pelas Brigadas Internacionais, deixando clara a posição ideológica de Jorge Amado, na época, 1952-1953, em que escreveu a trilogia.

 

domingo, 12 de novembro de 2006

A guerra da Espanha em Subterrâneos da liberdade: documento



            Subterrâneos da Liberdade se inicia com a instauração do Estado Novo no Brasil num relato que, brevemente, se atém às circunstâncias que o antecederam para se estender naquelas que, então, se originaram. Relato constituído de diversos núcleos narrativos, congregados ao redor do deputado Artur Carneiro Macedo da Rocha, (descendente da velha elite paulista) de Mariana (ativo membro do Partido Comunista), de Manuela (moça pobre e ingênua que se deixa seduzir pelo jovem rico sem caráter), do banqueiro Costa Vale e que, a par das ações que os dinamizam, expressam as suas verdades e seus parâmetros críticos. Nos diálogos, as assertivas da elite dominante e as dos que militam no Partido Comunista a esboçar o momento político do país que a data 30 de outubro de 1937, mencionada em meio à narrativa, enuncia com precisão. Uns e outros não ignoram a ascensão, na Europa, das ideologias totalitárias como tampouco ignoram a Guerra da Espanha, campo de luta onde tais ideologias se digladiam. Em algumas seqüências de Ásperos tempos, primeiro volume de Subterrâneos da Liberdade, aparecem referências ao que acontecia na Espanha: Orestes, o velho comunista, como se define, lamenta não ser mais moço para estar em Madrid ou na Catalunha e lutar pelos republicanos e, indignado, se queixa dos jornais brasileiros que somente noticiam as vitórias de Franco. Enquanto espera a partida do ônibus para Santo André, Jofre, militante comunista compra um jornal que abre para esconder o rosto e lê o editorial em louvor a Franco. Em reunião na casa de Mariana para festejar o seu aniversário, a conversa girava sobre os mais diversos assuntos, da vida difícil cada vez mais cara até uma discussão sobre a Guerra da Espanha, provocada pelo cunhado da aniversariante, admirador de Franco. Suas palavras fizeram levantar uma onda de protestos e até a mãe, sempre pronta a evitar qualquer conflito com o genro, protestara, levantando-se. –Esse Franco é um assassino de operários. Tenho fé que ele ainda acaba numa forca. Deus me ajude!. E num texto do primeiro capítulo de Agonia da Noite (segundo volume da trilogia), o que foi contado por um espanhol que vivia no Brasil para um jornal da Espanha sobre o ocorrido em Santos quando os estivadores se recusaram a carregar o café que seria enviado para Franco, no navio alemão: as primeiras prisões, o início da greve para liberar os presos, o assassinato de Bartolomeu e o ataque da polícia no seu enterro, os soldados carregando o navio, as ameaças aos estivadores presos. E a afirmação de que a greve, embora vencida, era uma prova de que os trabalhadores brasileiros estavam ao lado do povo espanhol e o demonstravam[...]. Páginas antes, o relato desse episódio, na voz do narrador, se faz impregnado de emoção a falar da cidade de Santos, ocupada como uma cidade de país em guerra, conquistada pelas forças inimigas; na incongruência das metralhadoras assentadas nos armazéns do porto, nas entradas dos bairros operários; a pergunta: contra quais soldados se lançavam eles? Pergunta que irá originar outras, fortemente marcadas pelo sarcasmo também presente na enumeração que faz o comandante da cidade, daqueles que não são os inimigos do país. E, novamente, a indagação: contra quem conduz o coronel as suas armas, contra quem comanda os seus soldados. A reposta agora, reafirma a crença nos princípios socialistas, expressa a indignação diante da violência do exército contra seu próprio povo. Uma crônica que não é diferente daquela que foi relatada no jornal espanhol mas à qual se acrescentam fortes traços conferidos pelo julgamento de valor frente à ação bélica que pretende castigar aqueles que se recusam a carregar o café roubado ao povo para ser oferecido a um assassino de poetas e operários.

            Jorge Amado, na sua realidade ficcional que documenta e acusa não se exime de expressar os sentimentos que o norteiam, mas, por apaixonado e maniqueísta que seja o seu relato sobre a greve dos portuários de Santos e da repressão por eles sofrida, ele não disse inverdades, não se afastou da realidade dos fatos.

domingo, 5 de novembro de 2006

A mulher asiática


            Ele foi entregue no porto a um sujeito (amigo de Alberto Ponsard), sujeito fino (capitalista ou coisa que o valha) que também seguia. A seu lado, no cais, estava uma mulher. Mas de certo não era a mulher dele. Embarcava também. Alberto Ponsard recomendava que fosse tratado com carinho. O que, de fato, acontece. A mulher (morena e um tanto baixa, meio mongolóide – tinha um ar oriental, asiático) dizia ter prática em viajar e, ao se aproximar a hora da primeira refeição a bordo, faz questão de ir vê-lo na segunda classe. Ao voltar, já havia decidido que ele deveria comer na primeira classe e insiste com o capitalista, que se mostrava indeciso, para que isso acontecesse.

–Você está na obrigação de pedir ao comissário que ele venha comer aqui em cima. Tal foi feito, mediante negociações, das quais constava, não somente um aporte em dinheiro como traje adequado a sua nova classe, solução dada pelo capitalista que viajava com muita roupa. Mais tarde, já informada que ele estivera preso, a mulher conclui –Ora, o pobre... e continua a se ocupar dele. Leva-o para almoçar em Santos quando ela e o capitalista desembarcaram e, também, para São Paulo onde, foram tomar chá e ao cinema. E onde o hospedaram junto com eles na casa dessa parenta, Dona Josefina, que tinha uma bela casa e os receberia com prazer. Ainda que a surdez a impedisse de ouvir o que se passava a seu redor, passou a manhã a contar ao Cati a história da filha, loira e inteligente que havia morrido criança. Depois, pela mulher asiática, sabe-se que Dona Josefina se encantara com ele, certamente porque a ouvira calado. No retorno a Santos, para embarcar com destino a Florianópolis, a asiática, outra vez, se interessa por ele quanto à passagem de navio, preocupando-se quanto ao fato de que ele seja louco ou não. Mas, ele já encontrara outro protetor, o médico de bordo, que por sua vez o irá cuidar. Na escala em Paranaguá, desembarcam para comer os camarões de que todos falavam a bordo. Quando o navio torna a zarpar, ficaram em terra a mulher de cara mongólica e seu companheiro. Nem dela, nem dele, foram dados a conhecer os nomes. São referidos como o sujeito, o homem, o amigo, o companheiro, o indivíduo; como a mulher, a companheira, sua companheira de viagem, mulher mongólica, a asiática, a mulher de cara mongólica, a sujeita. Tampouco, a não ser esse traço fisionômico asiático da mulher e a referência a seus quadris muito proporcionados e ser, aos olhos do companheiro de viagem, ágil e bem feita, não constam muitas outras informações sobre ela.

            Sobre o capitalista, menos ainda: que na breve travessia até Santos, procurava fazer uma viagem de comodidade o que era, também, o intuito da mulher. Seguiam naquele navio, considerado grande, porque não haviam conseguido lugar num dos verdadeiros paquetes que demandavam Buenos Aires. Ele opina sobre a qualidade do navio em que viajariam, essas gaiolas já estão mais confortáveis. E ela garante que irão se conformar com isso. Viajando juntos e juntos tomando decisões – usam, inclusive o pronome nós – também estão de acordo quando aceitam se encarregar do Cati: –Mas não há dúvida, afirma, o capitalista, lembrando – o que é contado pelo narrador – que já cuidara alguma coisa, numa viagem de trem: era um casal de galgos que seguiam para uma exposição. É, porém, principalmente, a mulher que, sentindo pena do Cati, além de cuidá-lo no navio e se ocupar dele durante a escala em São Paulo, providenciando, inclusive, um agasalho para que enfrente o chuvisqueiro frio da cidade, igualmente, se interessa pela continuação de sua viagem.

            Essa viagem que ele iniciara em Porto Alegre, conduzido por Norberto, em direção ao litoral e depois, ao norte, quando já ambos presos foram levados sem que tivesse sido precisado o motivo da prisão. Liberados, Norberto providencia a sua volta para o Rio Grande do Sul. Responsável que fora por essa ida ao Rio de Janeiro e pelas, nem sempre, agradáveis peripécias ocorridas durante a viagem, posto em liberdade, conseguira, também livrar o Cati da prisão e disso resultando ter que se haver com suas despesas. Continua se estabelecendo, então, essa corrente de solidariedade em torno do Cati. Como as demais mulheres que dele se apiedaram , a asiática é um de seus elos: um personagem sem nome e cujo perfil é apenas esboçado que, ao se erigir em mulher liberada –à margem das situações femininas usuais da sociedade da época em que foi concebido o romance –, possui uma função que vai além de, simplesmente, fazer fluir a narrativa. Sensível e bondosa, é um dos personagens, da ampla galeria de tipos de O Louco do Cati (Editora Globo, 1942), não somente luminoso, mas, principalmente, revelador de um Dyonélio Machado capaz de entender um universo feminino e valorizá-lo ainda que o seu viver se faça à revelia dos preceitos estabelecidos.

           

domingo, 29 de outubro de 2006

Os mortos


 

Designado pelo vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez de Prado, com duzentos homens, percorreu um extenso itinerário durante o qual enfrentou discórdias e lutas e toda sorte de desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da história oficial, relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances latino-americanos. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade.

 

            Nos caminhos percorridos, nos trabalhos pra traçar ruas, construir casas e igrejas, cavar os fossos de defesa e as muralhas da cidade, aconteceram enfermidades e teimosias que não constavam dos planos de Juan Núñez de Prado e de seus capitães, levando-os, então, a outras decisões: não levar, ao partir em busca de um novo assento para a cidade, nem os doentes (Deus há de preferir os sadios), nem os que a eles se opunham (se eles se rebelarem eu os matarei, diz o capitão). Diante das portas fechadas, ele indaga por que seus donos não as abrem. Porque estão doentes e febris lhe responde um de seus capitães e, então ele pergunta se irão levar com eles mais gente podre. E os que estavam afundados nas camas, agarrados nos lençóis, cheios de transpiração e medo, queixando-se suavemente se constituem uma tentação, um convite para serem vítimas da crueldade. Como fazer, pergunta, ainda, Guevara, para rebentar suas portas e janelas, para desmontar as paredes se elas abrigam os pobres infelizes que tremem e suam nas suas roupas. Porque aos soldados que as guardavam  bastaria um gesto, o menor sinal para as demolirem, tanto quanto seus donos. São muitos, muito mais do que deveriam ser e entre os capitães se joga o seu destino. Porque os que ordenam se oferecem razões: eles foram fracos e a fraqueza é um pecado que se castiga com a morte, a forca e o garrote são mortes divinas [...] Também se apóiam em leis: primeiro há um julgamento, se enumeram as acusações, as testemunhas depõem e correm os prazos para apelação e a forca está pronta. Leis que, na verdade, são seguidas apenas pelos que as enunciam: enforcaremos os prisioneiros diz Guevara; vamos matar todos, opina Vásquez. Mortes que a narrativa irá eludir, estabelecendo zonas de sombra. Quando o padre Cedrón encontra os prisioneiros amarrados e querendo defendê-los se lança contra o capitão Vásquez numa luta corporal que o faz esquecer a batina, o capitão Guevara, sentado no chão queria dizer algo mas soaram atrás dele as escadas da forca e escutou o barulho dos corpos que rolavam para a terra. E o padre Cedrón, suado e com as vestes rasgadas na luta, olhou para o céu onde nuvens se amontoavam e escutou o vai e vem e na penumbra as enxergou se movendo, um tanto pesadas no seu movimento. Os soldados retiravam as escadas da forca.

             Esse pudor narrativo anunciando uma ação que não será descrita, mas mencionada depois de ter acontecido ou sugere o ato criminoso pela descrição dos gestos sem que o verbo matar apareça explícito, estará presente, também, nos episódios em que Juan Núñez de Prado mata dois soldados por temer outras certezas que não as suas: [...] tens medo e te agarras a uma adaga, te agarras a teu medo para não cair no abismo[...] lhe diz um deles de perfil puro e jovem. O capitão cortou as cordas que o mantinham amarrado e colocando a sua mão na faixa que lhe apertava a cintura a afundou aí, sabendo o que fazia e lamentando[...]. E lhe diz outro donairoso e jovem, de traços finos, audazes e ingênuos: tuas palavras são de um homem que sente medo e por isso eu me dirijo à prisão agora para marcar tua derrota. Era um prisioneiro e estava atado pelo pescoço. O capitão responde não estou derrotado, agarra a corda e o faz levantar-se pois estava caído, chorando de fúria e rancor e levanta a mão em que tinha a adaga para cortar as cordas. O soldado soluçou de surpresa, levantou os braços adormecidos e olhou para ele com um desorbitado gesto de tímida alegria e ressurreição [...]. Juan Núñez de Prado desceu o braço para obrigá-lo a se afundar na terra e, dobrando os joelhos, caiu sobre ele. Sua mão se apagou no seu peito, sentiu-a molhada e soltou os dedos.

            Os dois soldados ficaram por terra. O ar continuou parado, persistiu o vôo dos pássaros e os ruídos de conversas e trabalhos indicavam que tudo continuava a ser como antes.

domingo, 22 de outubro de 2006

Os maltratados


Designado pelo vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez de Prado, com duzentos homens, percorreu um extenso itinerário durante o qual enfrentou discórdias e lutas e toda sorte de desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da história oficial, relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais perfeitos romances latino-americanos. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade.

 

            [...] passavam ginetes, os olhavam com naturalidade, se detinham a cumprimentá-los como se nada de estranho ou extravagante estivesse ocorrendo e aqueles homens atados e ensangüentados transcorressem dentro da realidade normal e franca das coisas [...]. E, assim, tudo se passa em meio à indiferença e o alheamento dos que seguem Juan Núñez de Prado e seus capitães. Eles querem mudar a cidade de lugar e encontram razões para isso. Como encontram aquelas para justificar as violências que cometem contra os que desejam ficar. Para Juan Núñez de Prado, eles são melancólicos e se apegam à terra, choram olhando os jardins que os cavalos pisam, se agarram nas laranjeiras e gritam e vociferam que jamais os abandonarão. E, por isso, são maltratados e feridos pelos que, a sua semelhança, pertencem à idêntica massa anônima que não possui quaisquer direitos. Carlos Droguett, no relato que faz dos caminhos percorridos por esses aventureiros espanhóis com seus quinhentos índios submissos, dos sofrimentos e ilusões, que os conduzem, o pontilha de pequenas ações realizadas sob a égide dos verbos maltratar e bater cujos sujeitos são os soldados que recebem ordens e as obedecem e cujos objetos são os soldados que tentam desobedecer aos delírios dos capitães. Pequenas sentenças se imiscuem entre as que indicam as ações de construir e destruir a cidade, entre as que se detém sobre um aspecto do cenário e revelam agressões: um soldado vai caminhando sem olhar para ninguém. Adivinha que se parar será, outra vez, movido a golpes e empurrões. Ao perceber que não batem no soldado que está perto dele, sente esperança mas, logo, é esbofeteado e se desmorona no chão. Muitos passam perto, aflitos e ensangüentados e, dentre eles, a voz do que manchado de sangue, se rebela, grita contra Cristo e contra os maus cristãos. Uns, embora igualmente golpeados e cheios de sangue, se olham com desprezo e ameaça ou têm o rosto cheio de machucaduras; outros, são surpreendidos ao levantar o martelo para bater um último prego na casa que era sua como o que foi esbofeteado sem que nada lhe dissessem, teve o rosto atingido pelo arcabuz, os ossos quebrados e adivinha que está sangrando; ou o que escutando gritos de ódio e desespero na casa ao lado quando encarou os soldados, que o mantinham com os braços presos, para perguntar, sentiu no rosto a bofetada e o sangue nos lábios e outra bofetada que o lançou para o lado. Há, igualmente, o que estava caído por terra, a cabeça sobre uma rocha e o peito ensangüentado, o uniforme despedaçado e o borzeguim roto.

            Também, acontecem embates entre um soldado e Juan Núñez de Prado. Num episodio, ele vê o soldado caminhar, sozinho, entre os móveis e as roupas espalhadas. Lança o cavalo na sua direção e o joga de bruços no chão, como uma trouxa de roupa suja. Quando o soldado levanta as mãos atadas, querendo mostrar o que lhe tinham feito, se dá conta que tinham lhe batido muito. Em outro episódio, um soldado coxo levanta a muleta para mostrá-la ao capitão num gesto de audaz provocação ou como uma carta de salvação ou uma pobre pueril desculpa [...]. Porque o capitão decretava nem coxos, nem feridos, nem velhos, nem moribundos seriam levados para o novo  assento da cidade e se lançara contra ele com a espada desembainhada.

            Na verdade, tratam-se de informações sucintas como que oferecidas “en passant”, cuja reiterada presença, aliada às razões, justificadas como sendo de Deus e do rei, que as provocam, funcionam como elementos devassadores em relação às verdades enunciadas pela História Oficial que, na interpretação magistral do romancista chileno se revela, então, sob incomuns e perturbadoras nuanças.

 

domingo, 15 de outubro de 2006

Os prisioneiros


       Designado pelo vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez de Prado, com duzentos homens percorreu um extenso itinerário durante o qual enfrentou discórdias e lutas e toda sorte de desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da história oficial, relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances latino-americanos. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade.

 

            Temos mais prisioneiros que soldados livres e leais? ele perguntou com desconfiança. Pergunta na qual os adjetivos não têm, certamente, um sentido absoluto. Porque livres não poderiam ser considerados esses soldados que, ao sair de Cuzco para a conquista do Continente, não tinham outra escolha senão seguir o capitão ainda que fosse nos seus desvarios. Porque, tampouco, lhes era possível continuar a serem leais a quem levava em conta, somente, as próprias vontades.

            Juan Núñez de Prado já estava a meio construir a cidade quando Dom Francisco, em nome de Pedro de Valdívia, colonizador do Chile, chega para contestar uma presença que, segundo ele, invadira as terras sob sua jurisdição. Juan Núñez de Prado decide trocá-la de lugar, carregando seus pedaços nas carretas e no dorso dos índios. Muitos de seus homens, porém, não quiseram segui-lo para não abandonar o que já possuíam: agora estão presos todos os que tinham suas casas terminadas e varridas. Ao longo do relato, esses presos irão evidenciar, nos maus tratos que recebem, a vilania do poder absoluto que se arvora no direito, em nome de Deus, do rei, da Justiça,  de privar de liberdade aqueles que lhe são contrários  e decidir lhes  a vida e  a morte .

            Na verdade, são muitos os presos. Enquanto os soldados tidos por leais, os cruéis e desalmados, os que nada fizeram para levantar a cidade, os mais aventureiros, os mais vis, os que satisfeitos e cantando, cospem nas ruínas, fendem as muralhas, arrancam portas, lançam ao chão as janelas, deitam abaixo as vigas, acompanham o capitão, os que semearam milho e plantaram flores e esculpiram uma sacada, são feitos prisioneiros. E, não somente, por ainda, aos olhos de todos, estarem construindo a cidade ao invés de destruí-la, mas, pelo que diziam nos intermináveis fins de tarde, vigiados que foram até nos seus sonhos como diz um dos capitães de Juan Núñez de Prado. Passam presos, empurrados pelos arcabuzes, despenteados e apressados, com a roupa rasgada, a camisa voando no ar cálido [...], impelidos com insolência, atados aos móveis, ligados de dois em dois; passam, manietados na direção das masmorras, um deles a olhar como o amarravam com sossego, com destreza na que não havia ódio nem maldade mas, somente, unção presa ao ofício, somente um rápido e evidente afã de trabalhar bem , de atar dois braços ou uma braçada de lenha de forma que não se desatassem.

Ao longo da ação, o narrador registra o quê vê e, muitas vezes, também, o que, na sua onisciência lhe é dado saber. Ao se fixar num prisioneiro que se move aos tropeções, observa que está amarrado de um modo torpe e caricaturesco, para mostrar melhor a farsa e a falsidade que o levam a gritar divertido e sofredor. Ou, em outro que, atado com as cordas que lhe subiam até os ombros, ia caminhando apressado, quase desejando correr embora ninguém o empurrasse ou vigiasse; ia sozinho e um cão lhe seguia os passos, sem latir, sem uivar, ignorando o que de mau lhe acontecia. Ou, ainda, em outro prisioneiro que reza aos gritos, canta, clama, fala de remorsos e da lealdade ao rei e à rainha e parece rir de todos, também de si mesmo.

Por vezes os prisioneiros se mostram pelo olhar de Juan Núñez de Prado ou pelo olhar do padre Cedrón e as perguntas que um e outro se enunciam,  se constituem, então, elas mesmas, as suas respostas: somente fizemos justiça.

domingo, 1 de outubro de 2006

Os anônimos



Designado pelo vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez de Prado, com duzentos homens, percorreu um extenso itinerário durante o qual enfrentou discórdias e lutas e toda sorte de desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da história oficial, relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances latino-americanos. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade.
 

            Juan Núñez de Prado partiu de Cuzco com um punhado de homens empobrecidos, sonhadores, polidos pela miséria, perseguidos e solitários [...] na direção das montanhas. Levados pelas carretas e pelos cavalos, usando a força dos índios para carregar seus fardos, ele e seus capitães mal sabem daqueles que os acompanham a não ser que eram homens arrancados da família, da amizade ou da justiça. Anônimos, se constituem a presença que povoa o lugar da ação: caminhando devagar, atirados no chão sob as árvores, sentados em torno das fogueiras, acocorados no alto das vigas; rindo, conversando em voz baixa ou com vozes de sono que pareciam sair de entre as roupas, falando cautelosamente, falando em voz baixa, sem desejar romper o silêncio, conversando entre si, empurrando os cavalos, a bocejar com sarcasmo, roncando, rindo com alvoroço, assobiando para os cachorros, gritando furiosamente,  deixando ouvir queixas, murmúrios, talvez rezas, murmúrios misteriosos e fatais, a levar cordas ou um monte de pás, a fazer fogo sob as tendas. Deixam-se ver a levantar o rosto e estender a vista para o horizonte, a olhar, assustados ou esperançosos, para o padre capelão; com orgulho e desprezo para os capitães, batendo as portas para derrubá-las, empurrando os prisioneiros. Uma presença marcada, também, pelo olhar de Juan Núñez de Prado que sobre eles se pousa ao descerem das carretas, ao rodear o padre Cedrón que lê a sorte nos naipes, ao se afastarem e desaparecem detrás dos cavalos. Ou, quando os escuta tossir ou gritar. Mais próximo deles, o padre Cedrón lhes ouve o barulho das conversas, dos risos, das vozes de suspeita ou troça ou desprezo, as palavras soltas e misteriosas[...]. E o padre Carvajal, ao perambular, à noite, pela cidade, os vislumbra no meio das roupas, espalhados pelos cantos ou em cima do teto. Sente-lhes a respiração pesada e tranqüila e, ainda, lhes percebe os rostos, submergidos superficialmente na luz da lua, rostos limpos e pacíficos, sem ódios e sem necessidades, plenos de silêncio e de sabedoria elementar [...].

            Outras vezes, esses soldados anônimos se diluem, ainda mais, no pano de fundo do qual fazem parte: quando, no relato, são mencionados pelo pronome indefinido alguém, quase sempre sujeito de um verbo a indicar emoção: alguém ria francamente espalhando um riso tumultuoso e cauto, alguém se queixava, tossia com escândalo, cantarolava ou resmungava, exclamava, falava com autoridade, alguém muito jovem soluçava. Alguém sacudia umas roupas como fazendo voar o maldito tempo que não parava de passar, esvaziando uma lembrança da cidade abandonada. Referidos ou como gente (gente acalorada ou pálida) ou como homens (gritos pausados dos homens, os homens riam, não pareciam sentir calor); ou, ainda, pelo gentílico. O capitão, ao refletir sobre o destino da cidade, pensa nos espanhóis; o vice-rei, a divisa, pela janela aberta para a praça, os espanhóis débeis que passavam  agachados sob o vento forte.; o padre Carvajal, caminhando entre os espanhóis que arrastavam móveis pelo meio da rua, os percebe fracos, esbranquiçados, frágeis, demasiado frágeis, demasiado transparentes.

            Eles não tem nome, nem um perfil delineado; não enunciam vontades, pouco se lamentam. Suas vozes e seus gestos, no entanto, dão vida e movimento ao relato e se constituem o suporte da ação maior: o fazer e o desfazer da cidade. Suporte que, em breves sequências, lhes determina a  presença, impedindo que, por obscuros e tidos por sem valor, sejam relegados ao esquecimento.

domingo, 24 de setembro de 2006

Laços no Continente



            No ano 2002, comemorando os cem anos de Os Sertões, a publicação de O clarim e a oração: cem anos de Os Sertões (São Paulo, Geração Editorial), organizado por Reinaldo de Fernandes, uma alentada obra de quase seiscentas páginas, ilustrada pelo artista plástico baiano, T. Gaudenzi. Dividida em partes que reúnem trabalhos agrupados sob distintas rubricas – Jornalistas e escritores, Poemas sobre Euclides da Cunha, Os Sertões, A crítica literária e Entrevistas com moradores de Canudos e região – é uma obra que, nas suas diversas abordagens, nem sempre trata, efetivamente, do texto de Euclides da Cunha. Há estudos que lembram paralelos biográficos (a morte de Euclides da Cunha e a do Ministro do Exército que no desfile das tropas finalmente vitoriosas foi morto por um soldado enlouquecido ou a morte de Euclides da Cunha e a de Antonio Conselheiro); aquele que refaz a trajetória, “o processo” editorial de Os Sertões; o que tem por objetivo, rasteando as marcas de leitura em Euclides da Cunha, situar Os Sertões como obra literária ou histórica; a que formula o destino de Euclides da Cunha: estava fadado a escrever Os Sertões. Ainda, o trabalho que, exaustivo segue, ao longo do tempo e de autores, a palavra sertão; o que expõe, veemente, os desacertos ideológicos de Euclides da Cunha. Em geral, se trata de matéria laudatória, poucas vezes, pautada por dúvidas e que, frequentemente, privilegia divagações no melhor estilo acadêmico do Continente: essa conhecida e como que inevitável tendência para mostrar erudição. Erudição que só parece ser aceitável se tiver referência a autores e a obras do hemisfério norte ainda que a sua relação com o assunto estudado esteja distante, como é o caso de Emile Zola com seu J’accuse, Primo Levi com seu É isto um homem?, Josepf Conrad com seu Coração em chamas; ou, que,ainda, não se justifiquem como as comparações entre a obra jornalística de Gabriel García Márquez e a de Euclides da Cunha. A tais opções, se acrescem, outras, não menos curiosas. Por exemplo, dar a referência de uma obra de Ítalo Calvino, da qual foi citada uma frase, e na mesma página, mencionar Darcy Ribero, cuja asserção, mesmo aparecendo entre aspas, não foi referenciada; transcrever longos textos em língua estrangeira sem a sua respectiva tradução para o português; permitir-se enunciar conceitos tão simplórios que induzem a concluir não estar sendo o leitor levado muito a sério como o demonstra a seqüência que trata da relação entre Literatura e Jornalismo: Aparentemente [jornalismo e literatura] são coisas diferentes, a começar pelo veículo. Livro é uma publicação de certo volume, capaz de ficar de pé numa prateleira, onde sobreviverá mesmo empoeirado, por muitos anos. Jornal é descartável – nada mais velho que o jornal de ontem [...]. Como exceção, por trabalhar as relações entre uma obra brasileira e uma obra hispano-americana, o estudo de Rinaldo de Fernandes “Os Sertões na leitura de Mario Vargas Llosa: quatro personagens”. Um estudo inusual no panorama da critica literária brasileira que não se detém, a não ser que façam sucesso na Europa e nos Estados Unidos, em obras latino-americanas; como, também, inusual que um escritor latino-americano trate, na sua ficção, de um tema brasileiro como o fez Vargas Llosa em La guerra del fin de mundo. Rinaldo de Fernandes sob a ótica de um literato pois, além de contista (O caçador, 1997 e O perfume de Roberta, 2005) é professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal da Paraíba, analisa quatro personagens históricos com o objetivo de caracterizar-lhes a visão de mundo (que é sabido, não irá ser muito diferente daquela de certos segmentos do Continente) e aflora algumas técnicas ficcionais do escritor peruano num trabalho que enriquece O clarim e a oração: cem anos de Os Sertões. Volume que pelo mérito da maioria de seus textos será, sem dúvida, referência para novos trabalhos sobre esse grande autor que foi Euclides da Cunha.

domingo, 17 de setembro de 2006

Todas esas mortes

             Se parece impossível que alguém possa entender a própria morte, Pablo Neruda teria, ainda, razões de sobra para não o ter conseguido: morreu no sofrimento de ver sucumbirem seus últimos sonhos na desgraça do dia 11 de setembro de 1973, em Santiago do Chile. Velado em meio ao caos de sua casa destruída, em meio à angústia daqueles que, além do sentimento de perda e de revolta, sabiam que estavam correndo sério risco simplesmente por estarem ali. Assim, não foi lembrado o que pedira: Não fechem meus olhos / mesmo depois de morto, / precisarei deles ainda para aprender, / para olhar e compreender a minha morte. Estes versos pertencem ao poema “La verdad”, do livro Memorial de Isla negra, publicado, em 1962. Como o fizera alguns anos antes, em alguns versos de Canto General, aos cinqüenta e oito anos, Pablo Neruda obedece ao impulso de escrever em verso, como o fazia em prosa para as memórias publicados pelo O CRUZEIRO Internacional,  a sua biografia.

            Memorial de Isla Negra  se divide em cinco partes (cinco volumes como as define o Poeta) e na primeira, “Donde nace la lluvia”, procura fixar, em busca do reencontro e numa evocação que o vazio das ausências torna profundamente dolorido, três figuras: a da mãe, cujo rosto se desvaneceu e lhe ficou desconhecido, roubado pela morte prematura; a da mamadre (quem o criou e nunca foi, por ele, chamada de madrasta) que, lavando, passando, semeando, costurando, cozinhando, ao vê-lo criado, partiu no pequeno esquife /  onde pela primeira vez ficou ociosa / sob a dura chuva de Temuco; e do pai, o pai brusco, ferroviário que volta do trabalho, recriminando em voz alta, sacudindo as tábuas da mesa, bebendo com os amigos. O pai, chamado José del Carmen Reyes, que um dia com mais chuva que outros dias[...] subiu no trem da mortee não voltou.

            Nestes três poemas, “Nacimiento”, “La mamadre”, “El padre”, Pablo Neruda inicia, sob a égide da morte, o fio biográfico que irá conduzir suas lembranças, também, outras vezes, encadeadas aos desígnios do inevitável. No poema “Locos amigos” fala desse vazio que ficou no lugar de Rojas Giménez, o amigo extraviado, aquele que deveria dar lições à primavera, motivo da ode que lhe dedicou, ao saber, em Barcelona, que havia morrido. Recorda a sua delicadeza, a sua ternura errante, a sua fragilidade, o que dele recebeu e esse partir inesperado como se o vinho o tivesse levado embora. Também, retorna à figura de outros amigos, Federico García Lorca e Miguel Hernández, no poema “Los muertos”. Pertence, como outros que dizem de sua experiência na Guerra Civil espanhola, ao terceiro volume, “Fuego cruel”, e expressa a grande dor que sentiu com suas morte e a indignação diante do suplício infligido a muitos outros feridos, / crucificados  / até na lembrança / com a morte espanhola.

            Dois anos depois da publicação de Memorial de Isla Negra, proferiu, na Biblioteca Nacional de Santiago, uma conferência na qual diz ter perseguido, nos versos desse livro, a expressão venturosa ou sombria de cada dia e que seu relato se dispersa e volta a se unir, acurralado por fatos de sua vida e pela natureza que o continua chamando com todas as suas inumeráveis vozes. Premissa já presente no poema “Aquellas vidas” do volume, “La luna en el labirinto”, ao confessar que não lhe era possível, somente, falar de si pois, nesse tecer Não somente conta o fio / mas o ar que escapa das redes. Então, fala dos que amam e dos que morrem de amor e do que presenciou, uma tarde, na Índia: o ritual fúnebre nas margens do rio onde foi consumido pelo fogo o corpo da mulher: e não sei se era a alma ou era a fumaça / o que do sarcófago saía / até que não restou mulher nem fogo / nem ataúde, nem cinza: já era tarde / e só a noite e água e sombra e rio  / ali permaneceram na morte. Fala de animais porque não pode esquecer aquele que foi sacrificado quando ele era menino e cujo grito ainda ressoa na distância aterradora. Fala dos peixes porque lhe persiste a lembrança dos que azuis, peixes de puro âmbar amarelo, peixes de luz violeta e pele fosfórica, no Ceilão, morriam esvaindo-se no fio da pálida faca mercenária.

            Com seus olhos de humano, não pode o Poeta enxergar depois de morto. Tampouco pode cantar, como queria, ao deixar de existir. O que viu, no entanto, e cantou, ainda que tenham sido todas essas mortes, adquiriu vida na sua expressão luminosa. 

         Só a morte permaneceu calada

domingo, 10 de setembro de 2006

Mais do que perguntar

             Em setembro de 1983, editado nos Estados Unidos por Ediciones de la Frontera, o vigésimo quinto número de Literatura Chilena, creación y crítica. Homenagem a Salvador Allende, na contracapa, reproduz breves palavras, destacados dos discursos que ele pronunciou em várias oportunidades, inclusive o do dia 11 de setembro de 1973. Entre os textos que lhe são dedicados, o de Carlos Droguett romancista e Rafael Agustín Gumucio, presidente da Unidad Popular. Exilados da ditadura chilena, viviam na Europa e, num de seus encontros, idealizaram um trabalho comum no qual, sem censura, falassem do céu, da terra e do inferno a partir da figura de Salvador Allende que, para eles, significou um eixo magnífico e permanente. O resultado foi “Diálogo sobre Salvador Allende”, uma entrevista onde não há “entrevistador e entrevistado”, mas perguntas que são opiniões e respostas, testemunhos não somente sobre Salvador Allende, mas, também, sobreos fatos que antecederam e tornaram possível o seu assassinato.
            Longas são as perguntas de Carlos Droguett, definidas como temas em forma de perguntas que ele, em número de doze, mas às quais acrescenta muitas outras – podem ser mais, podem ser menos – como previne ao enviá-las para o amigo. Na primeira, quer saber se a juventude de Salvador Allende já anunciava essa passagem de médico assistencial para a cabeceira de um doente mais doente, mais numeroso, mais desastroso, um povo inteiro, um país longo e esquelético, uma sociedade marcada e tarada, um organismo social desintegrando-se, apodrecendo-se. Em outra, se ele deixava prever, ao ser ministro da saúde do governo de Pedro Aguirre Cerda, no seu trabalho para aliviar a miséria e erradicar as doenças oriundas dos males da pobreza, o Presidente que proclamava e preconizava as mudanças na sociedade, efetuadas dentro da lei. Respostas que o convívio de estreita amizade e durante trinta anos de Rafael Agustín Gumucio com Salvador Allende, torna particulares pois confessa lhe resultar difícil emitir juízos que se atenham a um ou a outro momento de sua vida familiar ou política. Assim, jovem ou maduro, em qualquer escalão de governo onde estivesse, Salvador Allende se constituiu, para ele, o homem insubornável, respeitador de seus compromissos.

            Na verdade, Salvador Allende não pode ser compreendido longe do povo que o elegeu  do qual se despede no dia 11 de setembro  e da classe que o destruiu . Carlos Droguett a nomeia aristocracia e com a ressalva de que, além das pouquíssimas exceções, nada mais é do que uma classe covarde, ladra, extorsionária, aventureira, que não mata, que não se atreve a matar, que contrata assassinos. Por sua vez, Rafael Agustín Gumucio, nessa aristocracia chilena, só vê o amor desenfreado pelo dinheiro, uma arrogante incultura e, sobretudo, o poder que, representada pela direita, exerce no país.

            Então, Carlos Droguett e Rafael Agustín Gumucio falam de algo sobejamente conhecido, parte desse lugar comum, inscrito na razão do mais forte, a permitir que as verdades oscilem conforme o imprescindível interesse daqueles que as enunciam. Isto é, a imoralidade congênita da direita, na expressão de Rafael Agustín Gumucio. Razão do mais forte que reinou sempre e , reina, soberana, nos países do Continente ainda que se abriguem (e ou querem fazer crer) sob a égide da democracia. Daí, impossível não serem mencionadas a dívida exterior, a venda do patrimônio nacional, a fuga do capital para as contas bancárias suíças, a manipulação da doutrina de segurança nacional inspirada pelos norte-americanos para lhes facilitar o contínuo saque efetuado pelo seu imperialismo.


             De um e de outro, são palavras ainda emocionadas, ainda indignadas pelo assassinato de Salvador Allende. E a vivência sofrida dessa perda e do que então, a partir dela se desencadeou no Chile, se torna uma expressão que, interrogando e respondendo traz em si um valor documental e polêmico que é imprescindível para uma aproximação hegemônica da verdade – no Continente, é quase uma utopia – sobre o que ocorreu em Santiago do Chile no dia 11 de setembro de 1973.