domingo, 3 de dezembro de 2006

A guerra da Espanha em Saga: o mapa


Vasco Bruno tinha doze anos e estava olhando um mapa pendurado na parede. Clarissa se aproxima e quer olhar também. Sonhadores, perguntam um ao outro qual lugar desejariam conhecer. A China, diz Clarissa. Vasco, com o dedo apontando ao acaso, indica Tortosa, na Espanha. Quatorze anos depois, está em Tortosa. E como soldado voluntário da Brigada Internacional, a defende das tropas de Franco. Chegara na Europa, na terceira classe de um navio, obedecendo ao impulso que lhe viera num momento, de cansaço, de dificuldades financeiras, do desejo de aventuras. No primeiro capítulo de Saga, está em Cerbière, pequena cidade francesa às margens do Golfo de Leão e espera o trem que o levará, junto com outros voluntários, para Porthou, na Espanha, início de um itinerário marcado pelas cruéis tragédias da guerra. Da janela do trem vislumbra os Pireneus cujos cumes de neve recebem a luz do anoitecer. Logo o túnel e a chegada na povoação espanhola, quase toda destruída pelos aviões inimigos vindos da base aérea de Maiorca. No dia seguinte, outra vez no trem em direção a Figueras onde são alojados num velho convento beneditino de seiscentos anos. Logo, partem para Besalu, povoação muito antiga, cujos arredores são tomados pelos gritos dos soldados nos seus exercícios de guerra. De caminhão, sob o céu sombrio numa ameaça de chuva, seguem para Ollot e, daí, num trem que passa por Barcelona para a serra de Cambrills, à beira do mar onde se repetem os exercícios militares e a passagem dos aviões que sobrevoam o acampamento. Pela primeira vez, a explosão das bombas, o espetáculo dos corpos mutilados e da natureza em destroços o que acirra ainda mais a ansiedade dos homens que desejam lutar, mas que ainda se encontram desarmados. Finalmente, chegam as carabinas e os fuzis que são distribuídos antes da partida para a frente de batalha. Saem de madrugada, em caminhões que descem a colina para chegar, à noite, em Rasquera, povoado tipicamente catalão com suas casas brancas em sua maioria de dois andares, ruas tortuosas, calçadas de pedras redondas. À noite, os soldados têm permissão para caminhar pelo povoado e, curiosos, entram numa casa que, à semelhança de muitas outras, estava com as portas e janelas abertas. À luz do isqueiro de um dos soldados, se mostra um pedaço de vida que a guerra interrompeu: na mesa posta, a toalha de xadrez vermelho, quatro pratos, a moringa d’ água, o pão cortado em fatias. Antes do sol nascer, tornam a embarcar e os caminhões seguem para as margens do Ebro onde, num barranco, eles ficam dois dias antes de seguir rio acima para se posicionar na frente do povoado de Miravert, em poder das tropas de Franco. Olham para o seu castelo e escutam os murmúrios de que irão tentar a travessia do rio que, na verdade será feita. Antes, porém, as trincheiras onde estavam foram terrivelmente bombardeadas, assim como Ginestar que avistam de longe, desmoronando em meio à poeira e à fumaça sob o ataque aéreo, prodígio de precisão e método: bombas caem no rio destruindo os peixes e nos abrigos, ferindo e matando. Porém, é do outro lado do rio que Vasco terá o seu batismo de fogo numa luta que durou horas sob o sol causticante e tendo como objetivo um castelo em ruínas. Seguem-se os dias e os combates e eis que Vasco e sua companhia estão em Tortosa, nome que lhe ficará na lembrança, vagamente ligado à idéia de destino. Andando ao longo das trincheiras, é baleado e se inicia, então, um percurso que já começa a ser o de regresso: estação de Tarragona, hospital de Barcelona, trincheiras da serra de Caballs, hospital de Mataró, interregno em Barcelona. E, retirada em direção à França, junto com a grande multidão de espanhóis onde, além da derrota, novos horrores lhes advêm nesse espaço entre o mar e a cerca de arame farpado em que foram encurralados.

            Se os topônimos marcam o caminho percorrido pelos soldados da Brigada Internacional, o que os distingue, no entanto, é a crueldade de cada um dos atos de guerra da qual são o cenário. Érico Veríssimo, documenta em Saga (1940), não apenas a destruição material que da guerra decorre, mas o sofrimento dos que estão a seu serviço e de suas vítimas: mortes e perdas, fome, sede, cansaço, solidão. Também esse alinhavar de razões para justificar tantas dores, numa narrativa em primeira pessoa, voz do gaúcho Vasco Bruno, que, além de relatar o que presencia, expressa as emoções e as inquietudes de um homem que as circunstâncias fizeram soldado.

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