No
Prefácio para a edição de Saga da Editora Globo, escrito vinte e seis
anos depois do aparecimento do romance, em 1940, Érico Veríssimo menciona a
razão que o levou a escrevê-lo e as escolhas que fez como ficcionista: em
princípios de 1940, um brasileiro, ex-combatente da Brigada Internacional anti
franquista, lhe ofereceu o seu diário de guerra para que o aproveitasse num
romance. Dessas páginas, ele tirou anotações
de ordem geográfica e referentes ao movimento das tropas e, ainda, um punhado de outras descritivas da vida nas
aldeias espanholas e nas frentes de batalha.
De sua imaginação, o personagem Vasco Bruno que de Porto Alegre parte para a
Espanha com o intuito de lutar na Brigada Internacional contra Franco, irá
narrar a sua experiência como soldado até o momento de sua volta ao Brasil e de
sua nova escolha de vida.
Saga
se constrói em quatro partes: na primeira, “O círculo de giz”, o relato da
chegada de Vasco Bruno na Espanha e de sua atuação na Guerra como soldado da
República Espanhola; a terceira, “O destino bate à porta”, dá conta de seu
retorno ao Brasil onde se casa com Clarissa e passa a viver, como agricultor no
vale de Águas Claras o que é contado na última parte, “Pastoral”. A segunda
parte, “Sórdido interlúdio” é a mais densa do livro. Mais do que ligar a
primeira parte à terceira, se constitui um documento sobre o que ocorria em
Argelès-sur-Mer. Nesse povoado francês, às margens do mar Mediterrâneo, os
espanhóis republicanos foram encurralados
como animais num campo de
concentração, vigiado por tropas senegalesas, constituídas de soldados brutos e
insensíveis.
Tratando-se
de um texto em primeira pessoa, há evidentemente, o registro dos sofrimentos
suportados pelo narrador: o frio do vento gélido que levanta areia e neve, a
fome que só pode ser saciada irregularmente e com alimentos frios, esquentados
no tanque de gasolina de um caminhão, a escassez da água, suja e salobra que para obter era preciso esperar longo tempo na
fila. Ao seu redor, estão os outros, cento e oitenta mil espanhóis que
esperavam encontrar refúgio do outro lado da fronteira e, que, no entanto, se
depararam com uma prisão ao ar livre, o testemunho impera: não temos casas nem barracas,
dormimos ao relento e contra o frio, somente o recurso de se amontoar uns por cima dos outros, numa espécie de
fétida cooperativo de calor. No espaço reduzido em que se movem homens sujos, peludos, esfarrapados e lívidos,
a provação e o sofrimento não os impedem de continuarem a ser iguais a si
mesmos no cultivo do egoísmo e do instinto de posse, na ânsia do lucro. Como
eles não se dispõem à compreensão, basta que alguém, sem o querer, esbarre no
outro, para que uma violenta troca de
palavras se inicie e, por vezes, se degenere em agressões físicas: os contendores, engalfinhados como fera,
saem a rolar pela neve. Tampouco se dispõem a esquecer o significado dos
possessivos e, assim, o que se apossa de algo, logo se depara com o que aquele
que se acredita dono desse algo e se insurja, ferozmente, para defender o quê,
talvez, não passe de uma ninharia; e assim, o que busca tirar proveito como o velhote francês de sobrecasaca sebosa que chega, duas vezes por semana,
no seu “caminhão cheio de bugigangas
para tirar, dos habitantes do campo, suas últimas
pesetas em troca de carteiras de cigarro, sabonetes, latas de conserva.
Entre os agressores (o que delata, os que matam, os
que legislam contra o semelhante) e as vítimas (rostos macerados, doentes que
gemem e se torcem de dor ou têm acesso de loucura ou deliram febris), Vasco
Bruno constata a presença dos que revelam
ânimo forte, espírito organizador:
fazem reuniões, reivindicam, prestam serviços. Em meio do caos em que os
prisioneiros se acham demasiadamente
enfraquecidos e desmoralizados para reagir e se o fizessem não poderiam se
opor à força armada de fuzis e
metralhadoras daqueles que os vigiam, eles são as vozes lúcidas e cheias de esperança. Uma esperança que tampouco
abandona Vasco Bruno ao ter, ainda, olhos
e alma para apreciar os crepúsculos de inverno por trás dos Pireneus embora
doente e vivendo, como a população inteira do campo de concentração, o
prolongamento da guerra: abjeção e sofrimento impostos aos derrotados além da
cruel desilusão de encontrar, do outro lado da fronteira, não a esperada
acolhida humanitária e, sim, passagem para uma estação no inferno.

Nenhum comentário:
Postar um comentário