domingo, 17 de dezembro de 2006

A guerra da Espanha em Saga: a chegada


            No Prefácio para a edição de Saga da Editora Globo, escrito vinte e seis anos depois do aparecimento do romance, em 1940, Érico Veríssimo menciona a razão que o levou a escrevê-lo e as escolhas que fez como ficcionista: em princípios de 1940, um brasileiro, ex-combatente da Brigada Internacional anti franquista, lhe ofereceu o seu diário de guerra para que o aproveitasse num romance. Dessas páginas, ele tirou anotações de ordem geográfica e referentes ao movimento das tropas e, ainda, um punhado de outras descritivas da vida nas aldeias espanholas e nas frentes de batalha. De sua imaginação, o personagem Vasco Bruno que de Porto Alegre parte para a Espanha com o intuito de lutar na Brigada Internacional contra Franco, irá narrar a sua experiência como soldado até o momento de sua volta ao Brasil e de sua nova escolha de vida.

            Saga se constrói em quatro partes: na primeira, “O círculo de giz”, o relato da chegada de Vasco Bruno na Espanha e de sua atuação na Guerra como soldado da República Espanhola; a terceira, “O destino bate à porta”, dá conta de seu retorno ao Brasil onde se casa com Clarissa e passa a viver, como agricultor no vale de Águas Claras o que é contado na última parte, “Pastoral”. A segunda parte, “Sórdido interlúdio” é a mais densa do livro. Mais do que ligar a primeira parte à terceira, se constitui um documento sobre o que ocorria em Argelès-sur-Mer. Nesse povoado francês, às margens do mar Mediterrâneo, os espanhóis republicanos foram encurralados como animais num campo de concentração, vigiado por tropas senegalesas, constituídas de soldados brutos e insensíveis.

            Tratando-se de um texto em primeira pessoa, há evidentemente, o registro dos sofrimentos suportados pelo narrador: o frio do vento gélido que levanta areia e neve, a fome que só pode ser saciada irregularmente e com alimentos frios, esquentados no tanque de gasolina de um caminhão, a escassez da água, suja e salobra que para obter era preciso esperar longo tempo na fila. Ao seu redor, estão os outros, cento e oitenta mil espanhóis que esperavam encontrar refúgio do outro lado da fronteira e, que, no entanto, se depararam com uma prisão ao ar livre, o testemunho impera: não temos casas nem barracas, dormimos ao relento e contra o frio, somente o recurso de se amontoar uns por cima dos outros, numa espécie de fétida cooperativo de calor. No espaço reduzido em que se movem homens sujos, peludos, esfarrapados e lívidos, a provação e o sofrimento não os impedem de continuarem a ser iguais a si mesmos no cultivo do egoísmo e do instinto de posse, na ânsia do lucro. Como eles não se dispõem à compreensão, basta que alguém, sem o querer, esbarre no outro, para que uma  violenta troca de palavras se inicie e, por vezes, se degenere em agressões físicas: os contendores, engalfinhados como fera, saem a rolar pela neve. Tampouco se dispõem a esquecer o significado dos possessivos e, assim, o que se apossa de algo, logo se depara com o que aquele que se acredita dono desse algo e se insurja, ferozmente, para defender o quê, talvez, não passe de uma ninharia; e assim, o que busca tirar proveito como o velhote francês de sobrecasaca sebosa que chega, duas vezes por semana, no seu “caminhão cheio de bugigangas para tirar, dos habitantes do campo, suas últimas pesetas em troca de carteiras de cigarro, sabonetes, latas de conserva.

Entre os agressores (o que delata, os que matam, os que legislam contra o semelhante) e as vítimas (rostos macerados, doentes que gemem e se torcem de dor ou têm acesso de loucura ou deliram febris), Vasco Bruno constata a presença dos que revelam ânimo forte, espírito organizador: fazem reuniões, reivindicam, prestam serviços. Em meio do caos em que os prisioneiros se acham demasiadamente enfraquecidos e desmoralizados para reagir e se o fizessem não poderiam se opor à força armada de fuzis e metralhadoras daqueles que os vigiam, eles são as vozes lúcidas e cheias de esperança. Uma esperança que tampouco abandona Vasco Bruno ao ter, ainda, olhos e alma para apreciar os crepúsculos de inverno por trás dos Pireneus embora doente e vivendo, como a população inteira do campo de concentração, o prolongamento da guerra: abjeção e sofrimento impostos aos derrotados além da cruel desilusão de encontrar, do outro lado da fronteira, não a esperada acolhida humanitária e, sim, passagem para uma estação no inferno.

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