Uma paisagem bela tem a força de me comover
até as lágrimas. Mas a paisagem humana é a que mais me interessa, diz o narrador de Saga, Vasco
Bruno, logo no segundo capítulo do romance. E o que chama de paisagem humana estará presente ao longo
da narrativa que faz dos dias que viveu como soldado voluntário da Brigada
Internacional que, na Espanha, lutava contra as tropas de Franco. Menciona
alguns traços dos companheiros que o rodeiam: cabelos lisos, uma larga cara trigueira, cara ascética, muito branca, de testa alta e lábios apertados, louro e emaciado, duma palidez doentia, quarenta anos presumíveis, magro, tostado de sol e senhor de maneiras
mundanas, rosto descarnado e oblongo, dum
moreno lívido, cara eqüina e grossas
sobrancelhas eriçadas0. E como o hábito de desenhar cabeças humanas lhe
dera o gosto de analisar os traços fisionômicos, lhes amplia os perfis: o do
velho catalão que perdeu, na guerra, os filhos e netos, a casa, a vinha e os
trigais e nos seus oitenta anos tem uma
expressão de pétrea energia no rosto pregueada de rugas terrosas e mãos que
se assemelhando a raízes tentaculares são enormes e nodosas e parecem trazer
ainda a marca da terra; o do polaco que só fala a sua língua e não se dispõe a
se entender com os demais por gestos e por expressões; seus olhos são
esverdeados e pequenos, seu rosto vermelho e de testa curta. Diante de uma cena
de destruição e de morte, olha com olhar vago, mas ao ver o piano, seu rosto ganha uma expressão indescritível.
Deixa cair as mãos pesadas sobre as teclas e a música de Beethoven, Chopin,
Bach conta delícias do céu. Depois, fecha o piano com cuidado carinhoso e atravessa a sala sombria, apanha o fuzil e sai sem dizer palavra; ou,
ainda, o do espanhol de Cadiz cujos pés foram esmagados num bombardeio: Magro, ossudo, encurvado [...] tem um rosto
miúdo, a boca muito rasgada e um queixo prognata que lha dá um grande caráter à
fisionomia. A barba de três dias branqueia híspida contra o moreno da pele
rugosa.
Por vezes,
Vasco Bruno se detém nas razões que norteiam seus companheiros: aquele que,
apesar de tudo, ainda acredita nos homens e na possibilidade de um mundo melhor
ou o que pensa que todos os males do mundo, de um modo geral, se originam da idiotice irremediável do gênero humano e
da malévola esperteza dos padres. Identifica idealistas puros que desejam oferecer a vida em sacrifício de qualquer
idéia; os que chegam, simplesmente, por espírito esportivo. Não estão desiludidos do mundo nem falam em
ideal. Acham que a vida é uma só e o homem tem todo o direito de usá-la ou perdê-la como entender. Os que se
mostram sem ilusões quando constatam que tanto o comunismo quanto o fascismo já foram minados pelos seus próprios
construtores, que não há nada mais
parecido com o comunismo do que o fascismo.
Sem
mencionar nomes ou nacionalidades, fala de tipos
turbulentos e palavrosos, sujeitos sociáveis que só podem viver em
grandes grupos; dos solitários que procuram os cantos sombrios e dos que
anseiam pela hora decisiva e dos que parecem ter prazer no medo terrível que
sentem da morte; dos serenamente bravos
e dos que se esforçam para não fraquejar. Também, dos insubordinados e dos
derrotistas, dos que se entregam à pilhagem e que formam o batalhão disciplinar, cuja missão é
cavar trincheiras na linha de fogo, abrir estradas e enterrar cadáveres. Andam
sem sapatos e recebem menos alimentos – sem pão e sem vinho – do que os outros.
Sujos e queimados de sol já nem parecem homens.
Num cenário apenas sugerido e quase sempre
degradado pelas ações da guerra, esses inúmeros tipos, embora submissos à lei
da Brigada Internacional, compõem um universo em que se inscrevem múltiplas
idéias e diferentes motivações e no qual nem sempre grassaram os heroísmos ou
foram ocultadas as fraquezas ou as dúvidas. Assim, se constituiu, segundo seu
autor, o mais controvertido de seus romances, desagradando tanto os esquerdistas como os direitistas. Num momento em que,
ferozmente, se digladiavam as ideologias, Saga não é expressão das
escolhas políticas de Érico Veríssimo, apenas revelam, no intrincado romanesco
das ações bélicas e dos sofrimentos dos homens, as inquietações de um ser pensante
diante de um mundo que parece não ter conserto.
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