domingo, 10 de dezembro de 2006

A guerra da Espanha em Saga: os tipos


Uma paisagem bela tem a força de me comover até as lágrimas. Mas a paisagem humana é a que mais me interessa, diz o narrador de Saga, Vasco Bruno, logo no segundo capítulo do romance. E o que chama de paisagem humana estará presente ao longo da narrativa que faz dos dias que viveu como soldado voluntário da Brigada Internacional que, na Espanha, lutava contra as tropas de Franco. Menciona alguns traços dos companheiros que o rodeiam: cabelos lisos, uma larga cara trigueira, cara ascética, muito branca, de testa alta e lábios apertados, louro e emaciado, duma palidez doentia, quarenta anos presumíveis, magro, tostado de sol e senhor de maneiras mundanas, rosto descarnado e oblongo, dum moreno lívido, cara eqüina e grossas sobrancelhas eriçadas0. E como o hábito de desenhar cabeças humanas lhe dera o gosto de analisar os traços fisionômicos, lhes amplia os perfis: o do velho catalão que perdeu, na guerra, os filhos e netos, a casa, a vinha e os trigais e nos seus oitenta anos tem uma expressão de pétrea energia no rosto pregueada de rugas terrosas e mãos que se assemelhando a raízes tentaculares são enormes e nodosas e parecem trazer ainda a marca da terra; o do polaco que só fala a sua língua e não se dispõe a se entender com os demais por gestos e por expressões; seus olhos são esverdeados e pequenos, seu rosto vermelho e de testa curta. Diante de uma cena de destruição e de morte, olha com olhar vago, mas ao ver o piano, seu rosto ganha uma expressão indescritível. Deixa cair as mãos pesadas sobre as teclas e a música de Beethoven, Chopin, Bach conta delícias do céu. Depois, fecha o piano com cuidado carinhoso e atravessa a sala sombria, apanha o fuzil e sai sem dizer palavra; ou, ainda, o do espanhol de Cadiz cujos pés foram esmagados num bombardeio: Magro, ossudo, encurvado [...] tem um rosto miúdo, a boca muito rasgada e um queixo prognata que lha dá um grande caráter à fisionomia. A barba de três dias branqueia híspida contra o moreno da pele rugosa.

Por vezes, Vasco Bruno se detém nas razões que norteiam seus companheiros: aquele que, apesar de tudo, ainda acredita nos homens e na possibilidade de um mundo melhor ou o que pensa que todos os males do mundo, de um modo geral, se originam da idiotice irremediável do gênero humano e da malévola esperteza dos padres. Identifica idealistas puros que desejam oferecer a vida em sacrifício de qualquer idéia; os que chegam, simplesmente, por espírito esportivo. Não estão desiludidos do mundo nem falam em ideal. Acham que a vida é uma só e o homem tem todo o direito de usá-la ou perdê-la como entender. Os que se mostram sem ilusões quando constatam que tanto o comunismo quanto o fascismo já foram minados pelos seus próprios construtores, que não há nada mais parecido com o comunismo do que o fascismo.

            Sem mencionar nomes ou nacionalidades, fala de tipos turbulentos e palavrosos, sujeitos sociáveis que só podem viver em grandes grupos; dos solitários que procuram os cantos sombrios e dos que anseiam pela hora decisiva e dos que parecem ter prazer no medo terrível que sentem da morte; dos serenamente bravos e dos que se esforçam para não fraquejar. Também, dos insubordinados e dos derrotistas, dos que se entregam à pilhagem e que formam o batalhão disciplinar, cuja missão é cavar trincheiras na linha de fogo, abrir estradas e enterrar cadáveres. Andam sem sapatos e recebem menos alimentos – sem pão e sem vinho – do que os outros. Sujos e queimados de sol já nem parecem homens.

             Num cenário apenas sugerido e quase sempre degradado pelas ações da guerra, esses inúmeros tipos, embora submissos à lei da Brigada Internacional, compõem um universo em que se inscrevem múltiplas idéias e diferentes motivações e no qual nem sempre grassaram os heroísmos ou foram ocultadas as fraquezas ou as dúvidas. Assim, se constituiu, segundo seu autor, o mais controvertido de seus romances, desagradando tanto os esquerdistas como os direitistas. Num momento em que, ferozmente, se digladiavam as ideologias, Saga não é expressão das escolhas políticas de Érico Veríssimo, apenas revelam, no intrincado romanesco das ações bélicas e dos sofrimentos dos homens, as inquietações de um ser pensante diante de um mundo que parece não ter conserto.
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário