domingo, 24 de dezembro de 2006

A guerra da Espanha nas memórias de Pablo Neruda: a fogueira


            A quinta parte das memórias de Pablo Neruda tem por título “España en el corazón” e se inicia com o testemunho sobre Federico García Lorca e Miguel Hernández. Logo, sobre a revista El Caballo Verde da qual foi diretor e cujo sexto número não foi terminado porque, no dia em que deveria aparecer, o 19 de julho de 1936, Francisco Franco se rebelara contra a República espanhola. E, novamente, a presença do poeta de Bodas de sangre, no relato do pré-conhecimento que ele havia tido de sua morte. Então, Pablo Neruda fala de España en el corazón, seu primeiro livro de poemas combatentes: creio que poucos livros, na história estranha de tantos livros, tenham tido tão curiosa gestação e destino. Publicado em novembro de 1937, em Santiago, foi traduzido em várias línguas. Um ano depois, aparecia numa edição surpreendente, impresso perto de Gerona, num velho mosteiro. Seu amigo, Manuel Altolaguirre, o mesmo que o fizera diretor de El Caballo Verde, instalou uma impressora em plena frente de batalha. Os soldados aprenderam a fazer uso dela e quando faltou papel, o fabricaram num velho moinho, utilizando não apenas algodão e trapos, mas vendas, roupas, uma bandeira inimiga e a camisa ensangüentada de um soldado mouro. Porém, apenas ficou pronto o livro, deu-se a derrota dos republicanos e milhares de espanhóis iniciaram a sua fuga para França. Entre eles, Manuel Altolaguirre e os soldados que haviam composto e imprimido, em meio à ameaça de morte nas trincheiras, España en el corazón. O livro era para eles um orgulho e o carregavam para o desterro, na sofrida marcha em direção ao norte, numa longa fila, que, muitas vezes, sofria a ação de bombardeios.
            Doze anos antes do aparecimento de Confieso que he vivido, Pablo Neruda publicava na revista O CRUZEIRO Internacional, dez capítulos de suas memórias. O sétimo deles, com o título de “Tempestad en España”, se inicia com o relato da comemoração, na Espanha, dos vinte e cinco anos da insurreição contra a República: Justamente quando escrevo estas linhas, a Espanha oficial celebra vinte e cinco anos da insurreição. Um dado temporal que precisou ser alterado quando retomou os textos escritos em 1962 para o seu livro de memórias. Assim, vinte e cinco anos foi substituído pelo termo tantos que, impreciso, remete ao momento em que ocorreu a ação para um passado indeterminado, permitindo a leitura em qualquer tempo. No entanto, se tal substituição foi necessária, outras houve como, também, eliminações e acréscimos de palavras ou de expressões que se originaram dos mais diversos motivos. Na menção que faz, no texto da revista, à tropa que Franco (designado por Caudillo) passa em revista, ele diz: Estas tropas, que suponho composta por rapazes que não conheceram esta guerra.  No livro, a seqüência sofreu o acréscimo da expressão na sua maioria e a substituição dos adjetivos demonstrativos que, então, passam a indicar uma ação ocorrida mais distante no tempo: umas tropas compostas, na sua maioria, de rapazes que não conheceram aquela guerra. Mais adiante, no texto de O CRUZEIRO, se refere aos moços que desfilam diante da Guarda Moura como aqueles que ignoram talvez a história ou conhecem somente seu lado branco ou negro. No livro, a seqüência em questão, se transforma: ignoram talvez a verdade dessa história tremenda. No episódio que narra a retirada dos republicanos para a França, as modificações possuem um significado que vai além de simples preocupação estilística. Ao se referir aos inúmeros bombardeios lançados sobre os fugitivos inicia a frase com o advérbio alli e usa o verbo desgranar (debulhar): Ali caíram muitos soldados e se debulharam os livros na estrada. Outros, extenuados, enfiaram embaixo de uma pedra ou atrás de um arbusto os perigosos ramos de minha poesia. No livro, apenas: Caíram muitos soldados e se esparramavam os livros na estrada. Outros continuavam a infindável fuga. E o que na versão do livro apareceu diluído numa frase de sujeito indeterminado, como a minimizar a atuação dos franceses, Além da fronteira trataram brutalmente os espanhóis que chegaram no exílio, na revista, se mostra claro não apenas quanto ao lugar, mas quanto ao sujeito da ação: Na fronteira da França as tropas francesas trataram brutalmente os homens que chegavam ao longo exílio.

            E destino igualmente perverso teve, nas injustas mãos francesas, España en el corazón: Numa fogueira foram imolados os últimos exemplares daquele livro ardente que nasceu e morreu em plena batalha.

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