domingo, 22 de outubro de 2006

Os maltratados


Designado pelo vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez de Prado, com duzentos homens, percorreu um extenso itinerário durante o qual enfrentou discórdias e lutas e toda sorte de desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da história oficial, relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais perfeitos romances latino-americanos. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade.

 

            [...] passavam ginetes, os olhavam com naturalidade, se detinham a cumprimentá-los como se nada de estranho ou extravagante estivesse ocorrendo e aqueles homens atados e ensangüentados transcorressem dentro da realidade normal e franca das coisas [...]. E, assim, tudo se passa em meio à indiferença e o alheamento dos que seguem Juan Núñez de Prado e seus capitães. Eles querem mudar a cidade de lugar e encontram razões para isso. Como encontram aquelas para justificar as violências que cometem contra os que desejam ficar. Para Juan Núñez de Prado, eles são melancólicos e se apegam à terra, choram olhando os jardins que os cavalos pisam, se agarram nas laranjeiras e gritam e vociferam que jamais os abandonarão. E, por isso, são maltratados e feridos pelos que, a sua semelhança, pertencem à idêntica massa anônima que não possui quaisquer direitos. Carlos Droguett, no relato que faz dos caminhos percorridos por esses aventureiros espanhóis com seus quinhentos índios submissos, dos sofrimentos e ilusões, que os conduzem, o pontilha de pequenas ações realizadas sob a égide dos verbos maltratar e bater cujos sujeitos são os soldados que recebem ordens e as obedecem e cujos objetos são os soldados que tentam desobedecer aos delírios dos capitães. Pequenas sentenças se imiscuem entre as que indicam as ações de construir e destruir a cidade, entre as que se detém sobre um aspecto do cenário e revelam agressões: um soldado vai caminhando sem olhar para ninguém. Adivinha que se parar será, outra vez, movido a golpes e empurrões. Ao perceber que não batem no soldado que está perto dele, sente esperança mas, logo, é esbofeteado e se desmorona no chão. Muitos passam perto, aflitos e ensangüentados e, dentre eles, a voz do que manchado de sangue, se rebela, grita contra Cristo e contra os maus cristãos. Uns, embora igualmente golpeados e cheios de sangue, se olham com desprezo e ameaça ou têm o rosto cheio de machucaduras; outros, são surpreendidos ao levantar o martelo para bater um último prego na casa que era sua como o que foi esbofeteado sem que nada lhe dissessem, teve o rosto atingido pelo arcabuz, os ossos quebrados e adivinha que está sangrando; ou o que escutando gritos de ódio e desespero na casa ao lado quando encarou os soldados, que o mantinham com os braços presos, para perguntar, sentiu no rosto a bofetada e o sangue nos lábios e outra bofetada que o lançou para o lado. Há, igualmente, o que estava caído por terra, a cabeça sobre uma rocha e o peito ensangüentado, o uniforme despedaçado e o borzeguim roto.

            Também, acontecem embates entre um soldado e Juan Núñez de Prado. Num episodio, ele vê o soldado caminhar, sozinho, entre os móveis e as roupas espalhadas. Lança o cavalo na sua direção e o joga de bruços no chão, como uma trouxa de roupa suja. Quando o soldado levanta as mãos atadas, querendo mostrar o que lhe tinham feito, se dá conta que tinham lhe batido muito. Em outro episódio, um soldado coxo levanta a muleta para mostrá-la ao capitão num gesto de audaz provocação ou como uma carta de salvação ou uma pobre pueril desculpa [...]. Porque o capitão decretava nem coxos, nem feridos, nem velhos, nem moribundos seriam levados para o novo  assento da cidade e se lançara contra ele com a espada desembainhada.

            Na verdade, tratam-se de informações sucintas como que oferecidas “en passant”, cuja reiterada presença, aliada às razões, justificadas como sendo de Deus e do rei, que as provocam, funcionam como elementos devassadores em relação às verdades enunciadas pela História Oficial que, na interpretação magistral do romancista chileno se revela, então, sob incomuns e perturbadoras nuanças.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário