domingo, 15 de outubro de 2006

Os prisioneiros


       Designado pelo vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez de Prado, com duzentos homens percorreu um extenso itinerário durante o qual enfrentou discórdias e lutas e toda sorte de desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da história oficial, relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances latino-americanos. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade.

 

            Temos mais prisioneiros que soldados livres e leais? ele perguntou com desconfiança. Pergunta na qual os adjetivos não têm, certamente, um sentido absoluto. Porque livres não poderiam ser considerados esses soldados que, ao sair de Cuzco para a conquista do Continente, não tinham outra escolha senão seguir o capitão ainda que fosse nos seus desvarios. Porque, tampouco, lhes era possível continuar a serem leais a quem levava em conta, somente, as próprias vontades.

            Juan Núñez de Prado já estava a meio construir a cidade quando Dom Francisco, em nome de Pedro de Valdívia, colonizador do Chile, chega para contestar uma presença que, segundo ele, invadira as terras sob sua jurisdição. Juan Núñez de Prado decide trocá-la de lugar, carregando seus pedaços nas carretas e no dorso dos índios. Muitos de seus homens, porém, não quiseram segui-lo para não abandonar o que já possuíam: agora estão presos todos os que tinham suas casas terminadas e varridas. Ao longo do relato, esses presos irão evidenciar, nos maus tratos que recebem, a vilania do poder absoluto que se arvora no direito, em nome de Deus, do rei, da Justiça,  de privar de liberdade aqueles que lhe são contrários  e decidir lhes  a vida e  a morte .

            Na verdade, são muitos os presos. Enquanto os soldados tidos por leais, os cruéis e desalmados, os que nada fizeram para levantar a cidade, os mais aventureiros, os mais vis, os que satisfeitos e cantando, cospem nas ruínas, fendem as muralhas, arrancam portas, lançam ao chão as janelas, deitam abaixo as vigas, acompanham o capitão, os que semearam milho e plantaram flores e esculpiram uma sacada, são feitos prisioneiros. E, não somente, por ainda, aos olhos de todos, estarem construindo a cidade ao invés de destruí-la, mas, pelo que diziam nos intermináveis fins de tarde, vigiados que foram até nos seus sonhos como diz um dos capitães de Juan Núñez de Prado. Passam presos, empurrados pelos arcabuzes, despenteados e apressados, com a roupa rasgada, a camisa voando no ar cálido [...], impelidos com insolência, atados aos móveis, ligados de dois em dois; passam, manietados na direção das masmorras, um deles a olhar como o amarravam com sossego, com destreza na que não havia ódio nem maldade mas, somente, unção presa ao ofício, somente um rápido e evidente afã de trabalhar bem , de atar dois braços ou uma braçada de lenha de forma que não se desatassem.

Ao longo da ação, o narrador registra o quê vê e, muitas vezes, também, o que, na sua onisciência lhe é dado saber. Ao se fixar num prisioneiro que se move aos tropeções, observa que está amarrado de um modo torpe e caricaturesco, para mostrar melhor a farsa e a falsidade que o levam a gritar divertido e sofredor. Ou, em outro que, atado com as cordas que lhe subiam até os ombros, ia caminhando apressado, quase desejando correr embora ninguém o empurrasse ou vigiasse; ia sozinho e um cão lhe seguia os passos, sem latir, sem uivar, ignorando o que de mau lhe acontecia. Ou, ainda, em outro prisioneiro que reza aos gritos, canta, clama, fala de remorsos e da lealdade ao rei e à rainha e parece rir de todos, também de si mesmo.

Por vezes os prisioneiros se mostram pelo olhar de Juan Núñez de Prado ou pelo olhar do padre Cedrón e as perguntas que um e outro se enunciam,  se constituem, então, elas mesmas, as suas respostas: somente fizemos justiça.

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