Designado
pelo vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez de Prado, com duzentos
homens percorreu um extenso itinerário durante o qual enfrentou discórdias e
lutas e toda sorte de desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da história
oficial, relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El
hombre que trasladaba las ciudades
(Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances
latino-americanos. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no
Continente, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade.
Temos mais prisioneiros que soldados livres
e leais? ele perguntou com desconfiança. Pergunta na qual os adjetivos não
têm, certamente, um sentido absoluto. Porque livres não poderiam ser
considerados esses soldados que, ao sair de Cuzco para a conquista do
Continente, não tinham outra escolha senão seguir o capitão ainda que fosse nos
seus desvarios. Porque, tampouco, lhes era possível continuar a serem leais a
quem levava em conta, somente, as próprias vontades.
Juan
Núñez de Prado já estava a meio construir a cidade quando Dom Francisco, em
nome de Pedro de Valdívia, colonizador do Chile, chega para contestar uma
presença que, segundo ele, invadira as terras sob sua jurisdição. Juan Núñez de
Prado decide trocá-la de lugar, carregando seus pedaços nas carretas e no dorso
dos índios. Muitos de seus homens, porém, não quiseram segui-lo para não
abandonar o que já possuíam: agora estão
presos todos os que tinham suas casas terminadas
e varridas. Ao longo do relato, esses presos irão evidenciar, nos maus
tratos que recebem, a vilania do poder absoluto que se arvora no direito, em nome
de Deus, do rei, da Justiça, de privar de
liberdade aqueles que lhe são contrários e decidir lhes a vida e a morte .
Na
verdade, são muitos os presos. Enquanto os soldados tidos por leais, os cruéis e desalmados, os que nada fizeram para levantar a cidade, os mais aventureiros, os mais vis, os
que satisfeitos e cantando, cospem nas ruínas, fendem as muralhas, arrancam
portas, lançam ao chão as janelas, deitam abaixo as vigas, acompanham o
capitão, os que semearam milho e plantaram flores e esculpiram uma sacada, são
feitos prisioneiros. E, não somente, por ainda, aos olhos de todos, estarem
construindo a cidade ao invés de destruí-la, mas, pelo que diziam nos intermináveis fins de tarde, vigiados que foram até nos seus
sonhos como diz um dos capitães de Juan Núñez de Prado. Passam presos, empurrados pelos arcabuzes, despenteados e apressados, com a roupa
rasgada, a camisa voando no ar cálido
[...], impelidos com insolência, atados aos móveis, ligados de dois em
dois; passam, manietados na direção das masmorras, um deles a olhar como o amarravam com sossego, com destreza
na que não havia ódio nem maldade mas, somente, unção presa ao ofício, somente
um rápido e evidente afã de trabalhar bem , de atar dois braços ou uma braçada
de lenha de forma que não se desatassem.
Ao longo da
ação, o narrador registra o quê vê e, muitas vezes, também, o que, na sua
onisciência lhe é dado saber. Ao se fixar num prisioneiro que se move aos
tropeções, observa que está amarrado de
um modo torpe e caricaturesco, para mostrar melhor a farsa e a falsidade
que o levam a gritar divertido e sofredor.
Ou, em outro que, atado com as cordas que lhe subiam até os ombros, ia
caminhando apressado, quase desejando correr embora ninguém o empurrasse ou
vigiasse; ia sozinho e um cão lhe seguia os passos, sem latir, sem uivar,
ignorando o que de mau lhe acontecia. Ou, ainda, em outro prisioneiro que reza
aos gritos, canta, clama, fala de remorsos e da lealdade ao rei e à rainha e
parece rir de todos, também de si mesmo.
Por vezes os
prisioneiros se mostram pelo olhar de Juan Núñez de Prado ou pelo olhar do
padre Cedrón e as perguntas que um e outro se enunciam, se constituem, então, elas mesmas, as suas
respostas: somente fizemos justiça.

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