Memorial
de Isla Negra se divide em cinco
partes (cinco volumes como as define o Poeta) e na primeira, “Donde nace la
lluvia”, procura fixar, em busca do reencontro e numa evocação que o vazio das
ausências torna profundamente dolorido, três figuras: a da mãe, cujo rosto se
desvaneceu e lhe ficou desconhecido, roubado pela morte prematura; a da mamadre
(quem o criou e nunca foi, por ele, chamada de madrasta) que, lavando,
passando, semeando, costurando, cozinhando, ao vê-lo criado, partiu no pequeno esquife / onde pela primeira vez ficou ociosa / sob
a dura chuva de Temuco; e do pai, o pai brusco, ferroviário que volta do
trabalho, recriminando em voz alta, sacudindo as tábuas da mesa, bebendo com os
amigos. O pai, chamado José del Carmen Reyes, que um dia com mais chuva que outros dias[...] subiu no trem da mortee
não voltou.
Nestes
três poemas, “Nacimiento”, “La mamadre”, “El padre”, Pablo Neruda inicia, sob a
égide da morte, o fio biográfico que irá conduzir suas lembranças, também,
outras vezes, encadeadas aos desígnios do inevitável. No poema “Locos amigos”
fala desse vazio que ficou no lugar de Rojas Giménez, o amigo extraviado, aquele que deveria dar lições à primavera, motivo da ode
que lhe dedicou, ao saber, em Barcelona, que havia morrido. Recorda a sua
delicadeza, a sua ternura errante, a sua fragilidade, o que dele recebeu e esse
partir inesperado como se o vinho o tivesse levado embora. Também, retorna à
figura de outros amigos, Federico García Lorca e Miguel Hernández, no poema
“Los muertos”. Pertence, como outros que dizem de sua experiência na Guerra
Civil espanhola, ao terceiro volume, “Fuego cruel”, e expressa a grande dor que
sentiu com suas morte e a indignação diante do suplício infligido a muitos
outros feridos, / crucificados / até na
lembrança / com a morte espanhola.
Dois
anos depois da publicação de Memorial de Isla Negra, proferiu, na
Biblioteca Nacional de Santiago, uma conferência na qual diz ter perseguido,
nos versos desse livro, a expressão
venturosa ou sombria de cada dia e que seu relato se dispersa e volta a se
unir, acurralado por fatos de sua vida e pela
natureza que o continua chamando com todas as suas inumeráveis vozes. Premissa já presente no poema “Aquellas vidas”
do volume, “La luna en el labirinto”, ao confessar que não lhe era possível,
somente, falar de si pois, nesse tecer Não
somente conta o fio / mas o ar que
escapa das redes. Então, fala dos que amam e dos que morrem de amor e do
que presenciou, uma tarde, na Índia: o ritual fúnebre nas margens do rio onde
foi consumido pelo fogo o corpo da mulher: e
não sei se era a alma ou era a fumaça / o que do sarcófago saía / até que não
restou mulher nem fogo / nem ataúde, nem cinza: já era tarde / e só a noite e
água e sombra e rio / ali permaneceram na morte. Fala de
animais porque não pode esquecer aquele que foi sacrificado quando ele era
menino e cujo grito ainda ressoa na distância
aterradora. Fala dos peixes porque lhe persiste a lembrança dos que azuis, peixes de puro âmbar amarelo, peixes
de luz violeta e pele fosfórica,
no Ceilão, morriam esvaindo-se no fio da
pálida faca mercenária.
Com
seus olhos de humano, não pode o Poeta enxergar depois de morto. Tampouco pode
cantar, como queria, ao deixar de existir. O que viu, no entanto, e cantou,
ainda que tenham sido todas essas mortes,
adquiriu vida na sua expressão luminosa.
Só a morte permaneceu calada

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