domingo, 17 de setembro de 2006

Todas esas mortes

             Se parece impossível que alguém possa entender a própria morte, Pablo Neruda teria, ainda, razões de sobra para não o ter conseguido: morreu no sofrimento de ver sucumbirem seus últimos sonhos na desgraça do dia 11 de setembro de 1973, em Santiago do Chile. Velado em meio ao caos de sua casa destruída, em meio à angústia daqueles que, além do sentimento de perda e de revolta, sabiam que estavam correndo sério risco simplesmente por estarem ali. Assim, não foi lembrado o que pedira: Não fechem meus olhos / mesmo depois de morto, / precisarei deles ainda para aprender, / para olhar e compreender a minha morte. Estes versos pertencem ao poema “La verdad”, do livro Memorial de Isla negra, publicado, em 1962. Como o fizera alguns anos antes, em alguns versos de Canto General, aos cinqüenta e oito anos, Pablo Neruda obedece ao impulso de escrever em verso, como o fazia em prosa para as memórias publicados pelo O CRUZEIRO Internacional,  a sua biografia.

            Memorial de Isla Negra  se divide em cinco partes (cinco volumes como as define o Poeta) e na primeira, “Donde nace la lluvia”, procura fixar, em busca do reencontro e numa evocação que o vazio das ausências torna profundamente dolorido, três figuras: a da mãe, cujo rosto se desvaneceu e lhe ficou desconhecido, roubado pela morte prematura; a da mamadre (quem o criou e nunca foi, por ele, chamada de madrasta) que, lavando, passando, semeando, costurando, cozinhando, ao vê-lo criado, partiu no pequeno esquife /  onde pela primeira vez ficou ociosa / sob a dura chuva de Temuco; e do pai, o pai brusco, ferroviário que volta do trabalho, recriminando em voz alta, sacudindo as tábuas da mesa, bebendo com os amigos. O pai, chamado José del Carmen Reyes, que um dia com mais chuva que outros dias[...] subiu no trem da mortee não voltou.

            Nestes três poemas, “Nacimiento”, “La mamadre”, “El padre”, Pablo Neruda inicia, sob a égide da morte, o fio biográfico que irá conduzir suas lembranças, também, outras vezes, encadeadas aos desígnios do inevitável. No poema “Locos amigos” fala desse vazio que ficou no lugar de Rojas Giménez, o amigo extraviado, aquele que deveria dar lições à primavera, motivo da ode que lhe dedicou, ao saber, em Barcelona, que havia morrido. Recorda a sua delicadeza, a sua ternura errante, a sua fragilidade, o que dele recebeu e esse partir inesperado como se o vinho o tivesse levado embora. Também, retorna à figura de outros amigos, Federico García Lorca e Miguel Hernández, no poema “Los muertos”. Pertence, como outros que dizem de sua experiência na Guerra Civil espanhola, ao terceiro volume, “Fuego cruel”, e expressa a grande dor que sentiu com suas morte e a indignação diante do suplício infligido a muitos outros feridos, / crucificados  / até na lembrança / com a morte espanhola.

            Dois anos depois da publicação de Memorial de Isla Negra, proferiu, na Biblioteca Nacional de Santiago, uma conferência na qual diz ter perseguido, nos versos desse livro, a expressão venturosa ou sombria de cada dia e que seu relato se dispersa e volta a se unir, acurralado por fatos de sua vida e pela natureza que o continua chamando com todas as suas inumeráveis vozes. Premissa já presente no poema “Aquellas vidas” do volume, “La luna en el labirinto”, ao confessar que não lhe era possível, somente, falar de si pois, nesse tecer Não somente conta o fio / mas o ar que escapa das redes. Então, fala dos que amam e dos que morrem de amor e do que presenciou, uma tarde, na Índia: o ritual fúnebre nas margens do rio onde foi consumido pelo fogo o corpo da mulher: e não sei se era a alma ou era a fumaça / o que do sarcófago saía / até que não restou mulher nem fogo / nem ataúde, nem cinza: já era tarde / e só a noite e água e sombra e rio  / ali permaneceram na morte. Fala de animais porque não pode esquecer aquele que foi sacrificado quando ele era menino e cujo grito ainda ressoa na distância aterradora. Fala dos peixes porque lhe persiste a lembrança dos que azuis, peixes de puro âmbar amarelo, peixes de luz violeta e pele fosfórica, no Ceilão, morriam esvaindo-se no fio da pálida faca mercenária.

            Com seus olhos de humano, não pode o Poeta enxergar depois de morto. Tampouco pode cantar, como queria, ao deixar de existir. O que viu, no entanto, e cantou, ainda que tenham sido todas essas mortes, adquiriu vida na sua expressão luminosa. 

         Só a morte permaneceu calada

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