domingo, 10 de setembro de 2006

Mais do que perguntar

             Em setembro de 1983, editado nos Estados Unidos por Ediciones de la Frontera, o vigésimo quinto número de Literatura Chilena, creación y crítica. Homenagem a Salvador Allende, na contracapa, reproduz breves palavras, destacados dos discursos que ele pronunciou em várias oportunidades, inclusive o do dia 11 de setembro de 1973. Entre os textos que lhe são dedicados, o de Carlos Droguett romancista e Rafael Agustín Gumucio, presidente da Unidad Popular. Exilados da ditadura chilena, viviam na Europa e, num de seus encontros, idealizaram um trabalho comum no qual, sem censura, falassem do céu, da terra e do inferno a partir da figura de Salvador Allende que, para eles, significou um eixo magnífico e permanente. O resultado foi “Diálogo sobre Salvador Allende”, uma entrevista onde não há “entrevistador e entrevistado”, mas perguntas que são opiniões e respostas, testemunhos não somente sobre Salvador Allende, mas, também, sobreos fatos que antecederam e tornaram possível o seu assassinato.
            Longas são as perguntas de Carlos Droguett, definidas como temas em forma de perguntas que ele, em número de doze, mas às quais acrescenta muitas outras – podem ser mais, podem ser menos – como previne ao enviá-las para o amigo. Na primeira, quer saber se a juventude de Salvador Allende já anunciava essa passagem de médico assistencial para a cabeceira de um doente mais doente, mais numeroso, mais desastroso, um povo inteiro, um país longo e esquelético, uma sociedade marcada e tarada, um organismo social desintegrando-se, apodrecendo-se. Em outra, se ele deixava prever, ao ser ministro da saúde do governo de Pedro Aguirre Cerda, no seu trabalho para aliviar a miséria e erradicar as doenças oriundas dos males da pobreza, o Presidente que proclamava e preconizava as mudanças na sociedade, efetuadas dentro da lei. Respostas que o convívio de estreita amizade e durante trinta anos de Rafael Agustín Gumucio com Salvador Allende, torna particulares pois confessa lhe resultar difícil emitir juízos que se atenham a um ou a outro momento de sua vida familiar ou política. Assim, jovem ou maduro, em qualquer escalão de governo onde estivesse, Salvador Allende se constituiu, para ele, o homem insubornável, respeitador de seus compromissos.

            Na verdade, Salvador Allende não pode ser compreendido longe do povo que o elegeu  do qual se despede no dia 11 de setembro  e da classe que o destruiu . Carlos Droguett a nomeia aristocracia e com a ressalva de que, além das pouquíssimas exceções, nada mais é do que uma classe covarde, ladra, extorsionária, aventureira, que não mata, que não se atreve a matar, que contrata assassinos. Por sua vez, Rafael Agustín Gumucio, nessa aristocracia chilena, só vê o amor desenfreado pelo dinheiro, uma arrogante incultura e, sobretudo, o poder que, representada pela direita, exerce no país.

            Então, Carlos Droguett e Rafael Agustín Gumucio falam de algo sobejamente conhecido, parte desse lugar comum, inscrito na razão do mais forte, a permitir que as verdades oscilem conforme o imprescindível interesse daqueles que as enunciam. Isto é, a imoralidade congênita da direita, na expressão de Rafael Agustín Gumucio. Razão do mais forte que reinou sempre e , reina, soberana, nos países do Continente ainda que se abriguem (e ou querem fazer crer) sob a égide da democracia. Daí, impossível não serem mencionadas a dívida exterior, a venda do patrimônio nacional, a fuga do capital para as contas bancárias suíças, a manipulação da doutrina de segurança nacional inspirada pelos norte-americanos para lhes facilitar o contínuo saque efetuado pelo seu imperialismo.


             De um e de outro, são palavras ainda emocionadas, ainda indignadas pelo assassinato de Salvador Allende. E a vivência sofrida dessa perda e do que então, a partir dela se desencadeou no Chile, se torna uma expressão que, interrogando e respondendo traz em si um valor documental e polêmico que é imprescindível para uma aproximação hegemônica da verdade – no Continente, é quase uma utopia – sobre o que ocorreu em Santiago do Chile no dia 11 de setembro de 1973.

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