domingo, 5 de novembro de 2006

A mulher asiática


            Ele foi entregue no porto a um sujeito (amigo de Alberto Ponsard), sujeito fino (capitalista ou coisa que o valha) que também seguia. A seu lado, no cais, estava uma mulher. Mas de certo não era a mulher dele. Embarcava também. Alberto Ponsard recomendava que fosse tratado com carinho. O que, de fato, acontece. A mulher (morena e um tanto baixa, meio mongolóide – tinha um ar oriental, asiático) dizia ter prática em viajar e, ao se aproximar a hora da primeira refeição a bordo, faz questão de ir vê-lo na segunda classe. Ao voltar, já havia decidido que ele deveria comer na primeira classe e insiste com o capitalista, que se mostrava indeciso, para que isso acontecesse.

–Você está na obrigação de pedir ao comissário que ele venha comer aqui em cima. Tal foi feito, mediante negociações, das quais constava, não somente um aporte em dinheiro como traje adequado a sua nova classe, solução dada pelo capitalista que viajava com muita roupa. Mais tarde, já informada que ele estivera preso, a mulher conclui –Ora, o pobre... e continua a se ocupar dele. Leva-o para almoçar em Santos quando ela e o capitalista desembarcaram e, também, para São Paulo onde, foram tomar chá e ao cinema. E onde o hospedaram junto com eles na casa dessa parenta, Dona Josefina, que tinha uma bela casa e os receberia com prazer. Ainda que a surdez a impedisse de ouvir o que se passava a seu redor, passou a manhã a contar ao Cati a história da filha, loira e inteligente que havia morrido criança. Depois, pela mulher asiática, sabe-se que Dona Josefina se encantara com ele, certamente porque a ouvira calado. No retorno a Santos, para embarcar com destino a Florianópolis, a asiática, outra vez, se interessa por ele quanto à passagem de navio, preocupando-se quanto ao fato de que ele seja louco ou não. Mas, ele já encontrara outro protetor, o médico de bordo, que por sua vez o irá cuidar. Na escala em Paranaguá, desembarcam para comer os camarões de que todos falavam a bordo. Quando o navio torna a zarpar, ficaram em terra a mulher de cara mongólica e seu companheiro. Nem dela, nem dele, foram dados a conhecer os nomes. São referidos como o sujeito, o homem, o amigo, o companheiro, o indivíduo; como a mulher, a companheira, sua companheira de viagem, mulher mongólica, a asiática, a mulher de cara mongólica, a sujeita. Tampouco, a não ser esse traço fisionômico asiático da mulher e a referência a seus quadris muito proporcionados e ser, aos olhos do companheiro de viagem, ágil e bem feita, não constam muitas outras informações sobre ela.

            Sobre o capitalista, menos ainda: que na breve travessia até Santos, procurava fazer uma viagem de comodidade o que era, também, o intuito da mulher. Seguiam naquele navio, considerado grande, porque não haviam conseguido lugar num dos verdadeiros paquetes que demandavam Buenos Aires. Ele opina sobre a qualidade do navio em que viajariam, essas gaiolas já estão mais confortáveis. E ela garante que irão se conformar com isso. Viajando juntos e juntos tomando decisões – usam, inclusive o pronome nós – também estão de acordo quando aceitam se encarregar do Cati: –Mas não há dúvida, afirma, o capitalista, lembrando – o que é contado pelo narrador – que já cuidara alguma coisa, numa viagem de trem: era um casal de galgos que seguiam para uma exposição. É, porém, principalmente, a mulher que, sentindo pena do Cati, além de cuidá-lo no navio e se ocupar dele durante a escala em São Paulo, providenciando, inclusive, um agasalho para que enfrente o chuvisqueiro frio da cidade, igualmente, se interessa pela continuação de sua viagem.

            Essa viagem que ele iniciara em Porto Alegre, conduzido por Norberto, em direção ao litoral e depois, ao norte, quando já ambos presos foram levados sem que tivesse sido precisado o motivo da prisão. Liberados, Norberto providencia a sua volta para o Rio Grande do Sul. Responsável que fora por essa ida ao Rio de Janeiro e pelas, nem sempre, agradáveis peripécias ocorridas durante a viagem, posto em liberdade, conseguira, também livrar o Cati da prisão e disso resultando ter que se haver com suas despesas. Continua se estabelecendo, então, essa corrente de solidariedade em torno do Cati. Como as demais mulheres que dele se apiedaram , a asiática é um de seus elos: um personagem sem nome e cujo perfil é apenas esboçado que, ao se erigir em mulher liberada –à margem das situações femininas usuais da sociedade da época em que foi concebido o romance –, possui uma função que vai além de, simplesmente, fazer fluir a narrativa. Sensível e bondosa, é um dos personagens, da ampla galeria de tipos de O Louco do Cati (Editora Globo, 1942), não somente luminoso, mas, principalmente, revelador de um Dyonélio Machado capaz de entender um universo feminino e valorizá-lo ainda que o seu viver se faça à revelia dos preceitos estabelecidos.

           

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