[...]assobiou
musiquinhas, imitou o queixume da coruja, disse a tabuada até onde sabia e no
amanhecer quando o sol começou a tirar brilho do campo e os galos se largaram a
cantar, aí mandou que todos os presentes fizessem o sinal da cruz e disse: Em
nome do Espírito Santo! Que alegria! Chegou o Natal. O Jesuzinho já está no
mundo.
Guillermo Pérez, em pleno
campo, na véspera de Natal está esquentando sua comida quando chega o filho do
patrão, bêbado. Um breve diálogo entre ele e o peão o leva a concluir que para viver
tão sozinho e tão pobre, um bicho que a
solidão pode tornar feroz, não vale a pena viver. Não pode se controlar e,
embora bêbado, tem forças para degolar aquele que acha um coitado.
À noite, ainda, ou outra vez
bêbado, entra na sala em que a família festejava com os amigos e diz que o pai
precisa mandar fazer investigações pois os peões andam se matando. Numa bandeja
traz a cabeça de Guillermo Pérez.
Entre os presentes se
estabelece o silêncio. Nem o juiz, nem o padre, nem o pai, nem o escrivão
erguem a voz. A cabeça de Guillermo Pérez, sim. Disse quem era, os anos de
geada que já tinha passado, os trabalhos que sabia fazer. E cantou e imitou a
coruja e recitou a tabuada de multiplicar. E quando amanheceu o dia 25 de dezembro,
ele ficou alegre porque Jesus tinha nascido e fechou, finalmente, os olhos.
Pela primeira vez em sua
vida foi escutado e, talvez, isso seja mais surpreendente do que ter falado com
sua cabeça de degolado.
No relato, a ruptura da
lógica estabelecida se faz já nas primeiras linhas: Foi morto na véspera de Natal, morreu
no dia de Natal.
Quando, porém, as
circunstâncias de sua morte são conhecidas, advém um outro tipo de ruptura:
essa morte que acontece porque alguém se atribuiu o arbítrio divino de tirar a
vida de um ser humano.
Assim, o elemento fantástico
que se dilui diante do absurdo da realidade e passa a ter uma função que vai
além de um simples sentido lúdico, negando-se a servir de antídoto contra o
desconhecido do Universo como acontece nos textos europeus.
Na Literatura do Continente,
o fantástico mantendo estreitas relações com o contexto que lhe dá origem,
funciona como um antídoto contra o conhecido (e repudiado) que, no entanto, nem
sempre pode ser dito claramente.
O conto de Eduardo Mignona
busca a lucidez que desmascara a prepotência sem limite. Diante dela que rege a
maior parte das relações entre os homens no Continente e de outras
transgressões repetidas ao infinito, um dos caminhos da criação literária é a
denúncia.
E o fantástico se presta
muito bem a esse caminho ao expressar o que parece não existir embora sempre
preso a realidade que tem sido negada e escamoteada no Continente.
“Guillermo” foi publicado
pela revista Crisis de abril de
1976. A Crisis que documentou,
durante os quarenta meses em que lhe foi possível circular essa realidade cheia
de dúvidas, interrogações, injustiças e absurdos. E a criação ficcional que
dela faz parte não apresenta um mundo diferente.












