domingo, 25 de dezembro de 1994

O pequeno monólogo



[...]assobiou musiquinhas, imitou o queixume da coruja, disse a tabuada até onde sabia e no amanhecer quando o sol começou a tirar brilho do campo e os galos se largaram a cantar, aí mandou que todos os presentes fizessem o sinal da cruz e disse: Em nome do Espírito Santo! Que alegria! Chegou o Natal. O Jesuzinho já está no mundo.
 

          O conto se chama “Guillermo” e faz parte do livro Cuatrocasas, Prêmio Casa de las Américas, 1976.

          Guillermo Pérez, em pleno campo, na véspera de Natal está esquentando sua comida quando chega o filho do patrão, bêbado. Um breve diálogo entre ele e o peão o leva a concluir que para viver tão sozinho e tão pobre, um bicho que a solidão pode tornar feroz, não vale a pena viver. Não pode se controlar e, embora bêbado, tem forças para degolar aquele que acha um coitado.

          À noite, ainda, ou outra vez bêbado, entra na sala em que a família festejava com os amigos e diz que o pai precisa mandar fazer investigações pois os peões andam se matando. Numa bandeja traz a cabeça de Guillermo Pérez.

          Entre os presentes se estabelece o silêncio. Nem o juiz, nem o padre, nem o pai, nem o escrivão erguem a voz. A cabeça de Guillermo Pérez, sim. Disse quem era, os anos de geada que já tinha passado, os trabalhos que sabia fazer. E cantou e imitou a coruja e recitou a tabuada de multiplicar. E quando amanheceu o dia 25 de dezembro, ele ficou alegre porque Jesus tinha nascido e fechou, finalmente, os olhos.

          Pela primeira vez em sua vida foi escutado e, talvez, isso seja mais surpreendente do que ter falado com sua cabeça de degolado.

          No relato, a ruptura da lógica estabelecida se faz já nas primeiras linhas: Foi morto na véspera de Natal, morreu no dia de Natal.

          Quando, porém, as circunstâncias de sua morte são conhecidas, advém um outro tipo de ruptura: essa morte que acontece porque alguém se atribuiu o arbítrio divino de tirar a vida de um ser humano.

          Assim, o elemento fantástico que se dilui diante do absurdo da realidade e passa a ter uma função que vai além de um simples sentido lúdico, negando-se a servir de antídoto contra o desconhecido do Universo como acontece nos textos europeus.

          Na Literatura do Continente, o fantástico mantendo estreitas relações com o contexto que lhe dá origem, funciona como um antídoto contra o conhecido (e repudiado) que, no entanto, nem sempre pode ser dito claramente.

          O conto de Eduardo Mignona busca a lucidez que desmascara a prepotência sem limite. Diante dela que rege a maior parte das relações entre os homens no Continente e de outras transgressões repetidas ao infinito, um dos caminhos da criação literária é a denúncia.

          E o fantástico se presta muito bem a esse caminho ao expressar o que parece não existir embora sempre preso a realidade que tem sido negada e escamoteada no Continente.

          “Guillermo” foi publicado pela revista Crisis de abril de 1976. A Crisis que documentou, durante os quarenta meses em que lhe foi possível circular essa realidade cheia de dúvidas, interrogações, injustiças e absurdos. E a criação ficcional que dela faz parte não apresenta um mundo diferente.
 

domingo, 18 de dezembro de 1994

Oitenta: o caminho interrompido

           Na primavera de 1984, a L&PM de Porto Alegre publicou o número 9 da revista Oitenta, o último de uma publicação periódica, iniciada cinco anos antes.
 

           São artigos centrados em questões polêmicas, entrevistas, pequenos ensaios sobre política, literatura, cinema. Por vezes, um poema, um conto.   

Muitos dos textos são traduzidos do inglês, do francês, do italiano e, alguns deles, de leitura verdadeiramente instigante. Em menor número, os textos brasileiros. Do Continente, a expressão de Fidel Castro, Miguel Angel Asturias, Fontanarrosa, Pablo Neruda, Carlos Fuentes, Juan Rulfo, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa em discursos, entrevistas, depoimentos, material jornalístico, reflexões. Entre essas a de Mario Vargas Llosa, de título sugestivamente ficcional, “Reflexões sobre uma moribunda”. Sobre a crise universitária de seu país.


           Após contar um episódio ocorrido quando de sua presença na Universidade de Bologna, ele expõe as origens do movimento reformista universitário no Peru para, então, analisar as soluções que desse movimento advieram e, que no seu entender, nem sempre foram as mais acertadas, uma vez que originaram, exatamente, o inverso de objetivos que ele considera imprescindíveis: elevar os níveis acadêmicos, manter a Universidade atualizada, produzindo cientistas e profissionais capacitados para resolver os problemas do país.


           Para Vargas Llosa as práticas instauradas visando o debate intelectual, a análise e a crítica, a democratização do saber resultaram num mal entendido que não foram além das greves indiscriminadas, do patrulhamento ideológico, da concessão de mais direitos do que deveres.


           Constatações que o levam a concluir que em países com desigualdades sociais e problemas seriíssimos como os latino-americanos, os universitários, professores ou alunos, são uns privilegiados.    

            E como privilegiados contraem uma dívida moral com aqueles que, pelo seu esforço e pelo seu trabalho, tornam possível a existência da Universidade.
 

           Dívida que devem saldar com um estudo sério e capacitação para exercer um trabalho e para adquirir a consciência cívica sem a qual não é possível construir uma nação.


           É um dizer convicto que faz mais do que discutir a relação Universidade versus Movimento Estudantil ao lembrar compromissos que no Continente muito poucos são os que estão dispostos a assumir. Pois a herança ibérica recebida determina a manutenção de privilégios. Poder usufruí-los sempre foi, indubitavelmente, mais importante do que o respeito a qualquer legislação.

          Ao escolher esse texto de Mario Vargas Llosa, como o de Anita Leocádia Prestes sobre a reforma agrária no Brasil, o de Lino Agra sobre os refugiados do Vietnam, o de Fidel Castro sobre os não-alinhados, para citar apenas alguns, Oitenta, certamente, se propôs sanar ausências, oferecendo à leitura escritos ainda inéditos no Brasil ou convidar à leitura e releitura de outros, talvez, ainda desconhecidos.
 

         Valioso projeto que por qualquer razão ou por presumíveis razões teve seu caminho interrompido.


domingo, 11 de dezembro de 1994

O mito

           Mafalda olha para a pomba pousada num galho de árvore e lhe pergunta se ela é a pomba da paz. Não obtendo resposta e para desfazer sua dúvida, ela exclama: Viva a agressão e a bomba H. Do alto do galho cai a resposta quase sobre Mafalda que, feliz, conclui tratar-se, efetivamente, da pomba da paz.

           A paz que ela, contemporânea dos Beatles, almeja se concretize num Vietnam que, na condição de David frente a Golias, ocupou durante dez anos as páginas dos grandes jornais. Nessa história de Quino, construída em cinco quadrinhos, aparece Mafalda, a árvore, a pombinha. Uma árvore urbanamente solitária e outonal, de raízes protegidas por grades e umas poucas folhas. A pombinha pousada num dos galhos adquire, diante do olhar infantil, um significado que lhe é alheio. E, também, evidentemente, lhe permanece alheio o sentido que é dado por Mafalda a seu natural ato fisiológico.

           Receptiva a tudo o que acontece, Mafalda é capaz de discernir as desarmonias que imperam a seu redor sem que a imaginação própria de sua idade seja cerceada pelo senso crítico que, repetidamente, ela exerce. É essa imaginação infantil que a faz acreditar ter estabelecido com a pomba um diálogo que na realidade é um monólogo. Seu poder sugestivo está precisamente no silêncio de um dos “interlocutores” e na interpretação, por parte do outro, de que um ato espontâneo seja uma tomada de posição.

           Se os quadrinhos de Quino se mantém no nível da mais aceitável verossimilhança, o desenho de Edgard Vasques parte de uma situação fantasiosa que remete a uma situação mimética de um determinado e conhecido cotidiano. Uma pombinha, voa, altiva, com um ramo de oliveira no bico. Chaco aponta na sua direção o estilingue e Rango aparece, correndo, para dizer: Não! Essa aí, não!

           Porque Chaco, o índio que representa a fome na América, como Rango, usa de qualquer expediente para encontrar o que comer. O surpreendente é que Rango, faminto, chegue para impedir que ele atinja a pomba da paz e, assustado, intervenha.

           O único quadro, em que um rápido olhar é suficiente para abarcar os três personagens e a frase breve é de um efeito surpreendente. Seu significado se torna maior, porém, se conhecido o estatuto dos personagens: continuamente e, pelo que tudo indica, condenados à fome e em constante busca de comida.

           Assim, ter renunciado a abater a pomba que poderia servir de alimento é um gesto extremamente valioso pois ainda que miserável e com fome Rango se mostra capaz de uma escolha altruísta
           Sempre tão requisitada num mundo de conflitos perenes, nessa década 1965-1975 em que no Vietnam foram despejadas toneladas de bombas, a paz foi desejada não apenas pelas vítimas das agressões como pelos que entenderam o conflito além do que a potência agressora queria fazer acreditar.

           Se nos quadrinhos de Quino a pomba da paz, sob os olhos de Mafalda, expressa o seu repúdio à violência, em acorde com todos os que repudiam a guerra, no desenho de Rango ela passa, sem perceber os dramas próprios do Terceiro Mundo que está a sobrevoar.

           Os anos se passaram, a paz entre o Vietnam e os Estados Unidos foi assinada, as relações diplomáticas restabelecidas.

           Mafalda, porém, continuaria pensando na paz diante dos novos conflitos bélicos que foram surgindo.

           A pomba da paz certamente prossegue sobrevoando territórios com seu pequeno ramo de oliveira no bico.

           E Rango mais do que nunca se encontra preso no seu monturo.

domingo, 4 de dezembro de 1994

Rango e os ouvidos moucos

          Em outubro de 1974 era publicado o primeiro livro da L & PM de Porto Alegre Rango 1. Histórias em quadrinhos que Érico Veríssimo ao apresentar o livro dizia terem o valor de um editorial realista, corajoso e pungente. Porque Rango é o deserdado que vive dos restos, o “herói” que tenta apenas sobreviver, submetendo-se às condições que a sociedade lhe impõe.

          Quando o filho pergunta se eles não trabalham porque são aleijados Rango responde: Não, nós somos alijados.

          Alijados da alimentação da moradia. Principalmente do direito de viver como cidadão.

          Rango vive no monturo, no meio do lixo, sobre o lixo, aceitando como presença inevitável os ratos, as moscas, os urubus que compartilham o seu habitat. Muitas vezes, dentro da lata de lixo. Outras tantas falando desse lixo. Que é a sua realidade: monte de lixo, depósito de lixo, produção de lixo, brigar pelo lixo, comer lixo. Um lixo que é jogado pela janela ou transportado pelo caminhão da limpeza pública representando uma esperança de alimento num mundo de fome. Um mundo onde o impossível é quase tudo para ele. Sobram-lhe, apenas, constatações e perguntas.

          Assim, no espaço estéril da grande cidade, aquele que rega um vaso de flor ele considera um subversivo. Considera, também, que o menor abandonado foi abandonado pelo maior abandonado e que a maneira de detectar o lugar mais poluído do mundo é o eletroencefalograma. E que o mais antigo best seller de suspense é a política salarial.
 
         Mas, evidentemente, suas perguntas são irrespondíveis. Ao aviso de não pise na grama,Rango pergunta ao jardineiro comer pode? Escutando alguém da outra classe dizer que os marginais não produzem e se lamentam o tempo todo, ele pergunta: se eu não usar a boca para me queixar, vou usar para que? Diante da pergunta do filho: quando vão comer, ele, por sua, interroga:dia, hora, mês e ano?
 

          Embora tenha condições de interpretar os fatos – só é ladrão quem rouba pouco, o carnaval é um remédio que o povo toma uma vez por ano, - seu pensamento se prende a uma só vontade, a de matar a fome. E é o tema que se repete ao longo das historietas. Porque Rango, o faminto, não pode expressar outra coisa a não ser que lhe falta o que comer.

          Até porque, parece que mesmo o Deus a quem ele se dirige, o condena a ser faminto. Ao inquiri-lo sobre a palavra mágica que lhe resolveria os problemas como é habitual a todo herói de histórias em quadrinhos, a resposta que ouve é amém. Na verdade, é esse assim seja que condiciona a visão de mundo de Rango.

          Quando em 1977 foi editado Rango bis, Jose Onofre, nas linhas que escreveu sobre ele, diz que o único brado de protesto nessas suas histórias é o ronco do estômago vazio. E conclui que o “herói” de Edgar Vasques lembra uma certa paciência que acaba conduzindo à explosão.

          Ameaça que parece não estar preocupando ninguém.

domingo, 27 de novembro de 1994

Rango


         Rango é um personagem de história em quadrinhos cujo heroísmo consiste em sobreviver no dia a dia. Ele é definido  como o marginal-síntese, sujo, doente, cabeludo, barba apontando, nu e faminto: desprovido até de aparência humana por seu criador, Edgar Vasques.  Cursava a Faculdade de Arquitetura de Porto Alegre  quando numa revista marginal chamada Grilus, registrou as suas impressões do adolescente que, cotidianamente, presenciava essa procura de comida no lixo da cidade. E a elaboração artística aconteceu presa a um objetivo definido: ativar o raciocínio geral através dessa pílula dourada que é o humor, conforme disse em matéria publicada no dia 29 de dezembro de 1977 no Estado do Paraná.

         Se, no sentido que lhe dá Ziraldo, o humor é uma defesa de tese, um caminho, uma informação, em Edgar Vasques, os quadrinhos são o testemunho, a tomada de consciência de uma realidade nacional: o faminto brasileiro. Aquele cuja potencialidade é (ficará) desconhecida e que representa um peso morto para o país que somente pode contar, no que se refere à força de trabalho,  apenas com uma parte do povo,apenas.
 
         Rango pertence ao submundo da grande cidade, vive dos detritos dos quais ela se desfaz. Ele está sempre no meio de montes de lixo, dentro de latas de lixo, falando sobre o lixo, se alimentando de lixo. Num contínuo estado de fome que só é atenuado a partir do monturo. É dele que Rango extrai o que pode ser útil para suprir suas necessidades básicas: garrafa vazia, lata de conserva vazia, rato, casca de siri. Mas, sempre remota a possibilidade de saciar, verdadeiramente, uma fome constante.

         Daí um repertório onomatopaico próprio das histórias em quadrinhos – GRONC? RONC? TOC? URC? TIC-TAC – que se intensifica: GRAAUUR, GROOOONC, GROUOURRRR. Até o paroxismo: TCHARARÁ TCHAM TCHAM TARIRA MRAMA TARI RARÔ TCHA TCHARA TCHAM TCHARITCHAROM TARARARAM TCHEM TC TAM TAM e, nada mais é do que os ruídos que emite o estômago vazio dos personagens.

         Porque, em geral, o que aparece é a pretensão de comer. Uma pretensão que, para ser alcançada, tem como alternativa viável a procura nas latas de lixo ou no monturo. Ou, os expedientes os mais fantasiosos: esperar que os morcegos durmam para “colhê-los”; esperar que o gato cace o rato para caçar o gato; tentar achar o coelho da cartola do mágico.

         E esse estar permanentemente faminto e consciente de sua fome (a palavra aparece muitas vezes nas historietas de Rango), convive com a possibilidade de se alimentar condignamente que só é permitida aos outros: às senhoras gordas da alta sociedade comendo, com exagero, num chá filantrópico; senhora de alto poder aquisitivo, explicando uma receita especial para a cozinheira; uma pessoa num restaurante servindo-se do terceiro bife.
         Parafraseando Louis Althusser, o filósofo francês, Moacy Cirne, no seu trabalho “Semiologia e Especificidade dos quadrinhos”, disse não haver quadrinhos inocentes.E se o personagem de Edgar Vasques é a síntese do faminto que, aos milhares, faz parte da população latino-americana, é verdadeiramente instigante perceber que em qualquer uma de suas histórias, de “suas aventuras”, a grande presença é uma ausência.

domingo, 20 de novembro de 1994

Mafalda:o dizer que ficou

          Cheia de perguntas e de razões que ultrapassaram as fronteiras do país onde apareceu, pela primeira vez, numa história em quadrinhos do semanário Primera Plana de Buenos Aires, há trinta anos atrás, nascia Mafalda.

          Quando, no dia 25 de junho de 1973, Quino, seu criador a silenciou, tinha, em dez anos de existência, sido publicada em vinte e seis idiomas. Vinte anos depois, Toda Mafalda, um volume de 600 páginas, vendia 55.000 exemplares numa evidente prova que suas perguntas e suas razões continuaram absolutamente pertinentes. Quer girem em torno de seu pequeno cotidiano, quer se atenham às situações de seu país e das relações que estabelece com o mundo no qual se inscreve.

          Entre os seus seis ou oito anos, Mafalda, como toda criança, pergunta. Só que suas perguntas provocam insônia em seu pai ou o obrigam a tomar calmantes. E, sempre deixam sua mãe sem resposta.

          Assim, quando pergunta por que todos aqueles que terminam o curso superior saem do país. Seu pai responde que talvez não haja suficiente campo o que leva a nova pergunta: se há grande quantidade de campo no país, por que as vacas também vão para o estrangeiro? Ou, instada pela mãe a limpar o globo terrestre, quer saber se deve limpar todos os países ou somente aqueles que têm um mau governo.

          Suas razões não estão longe dessas dúvidas. Ao escutar a mãe dizer que o marido, com dor de dente, precisa ir ao dentista, Mafalda se admira de que existam dentistas no país, pois acreditava que todos tinham ido embora para os Estados Unidos.


          Tampouco lhe escapa como os Estados Unidos está presente no cotidiano da Argentina: o inglês ensinado pelo rádio, os objetos dispensáveis que passam a fazer parte do dia a dia como lenço de cabeça, balas e perfume “James Bond”, as brincadeiras de “cow boy”.

          E, verdadeira síntese de toda uma visão de mundo que é introduzida no Continente, a história em que vestido de “cow boy”, no melhor estilo dos filmes que assistem, um de seus amiguinhos a persegue e a atinge com um tiro. Mafalda se atirando no chão exclama: Puxa! O amiguinho, indignado, observa que nenhum “cow boy” morreria usando tal expressão. É a vez de Mafalda se indignar por esse modelo que acham que deve seguir e que ela chama de morte estrangeirada.
 

          Igualmente significativa é a sua observação ao escutar o informativo radiofônico em que predominam as “últimas” das guerras e das dificuldades para chegar a um acordo sobre desarmamento nuclear. Diante do entusiasmo de Felipe, seu amigo, tendo como referência as fotos de Marte, de que haja vida nos outros planetas, Mafalda conclui que o surpreendente é que haja vida no nosso planeta.

          Como personagem de ficção ela teve o direito de perceber esse mundo com a liberdade que aos humanos é muitas vezes negada. E, nos anos infelizes que marcaram o Continente quando era proibido perguntar ou enunciar opiniões, o seu dizer significou algo de luminoso que os anos transcorridos não conseguiram ofuscar.
 

domingo, 13 de novembro de 1994

Mafalda


           Em 29 de setembro de 1964, pela primeira vez, Mafalda aparecia numa história em quadrinhos. E durante dez anos com suas tiradas e reflexões ela expressou as inquietudes dos argentinos e de muito mais gente, haja visto que suas histórias foram traduzidas em vinte e seis países e os livros que as reuniram vendidos aos milhares.

           Contestadora foi sempre o adjetivo mais usado para defini-la e, na verdade, o seu olhar de menina de seis anos para o mundo que a rodeia tem uma surpreendente e instigante lucidez. Sobre a situação da Argentina, por vezes, semelhante a de outros países do Terceiro Mundo, sobre a situação mundial. Sobre os hábitos, preconceitos e lugares comuns de uma classe média cujos valores não se resigna a acatar mas a cujo perfil não pode fugir.
 

           Mora confortavelmente num pequeno apartamento sob os cuidados da mãe, cuidadosa e voltada para o lar e do pai cujo salário é suficiente para oferecer à família uma vida correta. Sem dúvida, pouco lhe falta e, certamente, algo lhe sobra.

           Muitas são as histórias em que o tema é o repúdio da sopa. No volume nº 1 de Mafalda das Ediciones de la Flor (Buenos Aires, 1974) esse repúdio se repete e sempre com indignação: de que os adultos afirmem que somente crescem as crianças que tomam sopa, de que a liberdade de imprensa permita que sejam publicadas receitas de sopa; que a geometria sirva também para o preparo de sopa em cubos.

           E, considerando que a sopa é um nome feio, observa que não é uma palavra que possa ser pronunciada à mesa. Se o dicionário não a registra como palavrão, ela joga o dicionário no lixo. Só adquire um ar alegre diante do argumento de que o aumento da população ocasionará falta de alimento o que a leva a imaginar uma manchete de jornal: Escassez mundial de sopa.

           Assim, é capaz de enunciar que a sopa é para a infância o que o comunismo é para a democracia e de observar que reinaria a tranquilidade no mundo se Marx não tivesse tomado sopa.

           Nessa ojeriza pela sopa se inserem, porém, outros temas: a preocupação que sobrevém aos que estão acostumados a comer diante da possibilidade de que diminua a quantidade da comida face o aumento da população; o desprezo pelo livro  ou pela ciência  ou pela liberdade de imprensa que, no seu entender, nem sempre  possuem verdadeiras  ou pertinentes respostas.

           Ao mesmo tempo em que se insurge contra o código reinante – no caso a importância do alimento para quem dele pode usufruir – Mafalda assume valores da classe a que pertence ao pretender que tudo esteja a serviço de seus interesses, expressando a ambiguidade que lhe é própria ao oscilar entre alguns valores humanistas e o que acredita lhe seja devido. Mas em cada uma de suas tiradas, Mafalda contesta essa sua classe, a critica, a reflete e não lhe dá trégua.

           Licenciada por vontade de seu criador, os anos que se passaram desde a publicação dos últimos quadrinhos em que apareceu não lhe tiraram a razão.

           Se o seu criador, Quino – nascido Joaquin Lavado, na Argentina – continuasse a desenhá-la e a fazê-la falar, Mafalda provavelmente continuaria a dizer as mesmas coisas que já disse. Porque o mundo para melhor, pouco mudou.

domingo, 6 de novembro de 1994

Do gosto e do poético

          Existe uma cozinha brasileira. Ou, talvez seja melhor dizer, existem cozinhas brasileiras e que se des­conhecem nessa imensidão do território nacional. E seja per­mitido dizer que, certamente, o que pouco existe é a arte de comer entre os brasileiros.

          No país em que plantando tudo dá - e é de­veras comovente como as sementes emergem da terra sem mesmo terem sido plantadas pela mão humana - muitos, e são muitos os que não comem porque o salário que recebem mal lhes per­mite sobreviver.Respiram o mesmo ar daqueles que detém a riqueza e em cuja mesa é servido o que há de melhor, de mais sofisticado, de mais caro. E de muitos que se inspirando em costumes alimentares alienígenas, muito pouco sabem da cozi­nha de seu país.

          Sugestivo, portanto é o livro que a José Olympio publicou neste ano de 1994: 50 sonetos de forno e fo­gão.

          Dois autores, Celso Jupiassu e Nei Leandro de Castro, senhores ambos de muitos livros, se uniram para, como eles dizem, juntar pela primeira vez, num livro de receitas, poesia e gastronomia, exercício poético e experiência culiná­ria.

          Escolhidas principalmente entre as típicas brasileiras, as receitas; os poemas, elaborados em versos brancos de dez sílabas as seguem conscienciosamente e não ha­verá erro algum na elaboração de um prato se for seguido cada um dos versos do soneto.

          Mais como receituário do que como volume de poesia é que o livro deve ser visto dizem os autores. Porém, será, sem dúvida, um prazer a mais usar uma receita escrita em versos que além do ritmo contém, por vezes, pequenas notas afetivas que afastam definitivamente o usual prosaico de qualquer receita.

          Assim, a homenagem aos criadores de pratos ou àqueles que os ensinaram a prepará-los; ou a que prestam aos pratos populares servidos em botecos. E, quando registram a origem de certas receitas - ou nordestina ou gaúcha, de Minas Gerais, Maranhão ou Espírito Santo - ou quando mencionam uma permanência africana ou portuguesa, valorizam uma contribui­ção que tem sido preterida pelos que ainda não se libertaram das influências estrangeiras.

          E, presente entre precisas e entusiásticas informações culinárias está o desejo de compartilhar o prazer da boa e inusitada mesa, os conselhos de alegre sabedoria: ao acertar plenamente o bambá de couve à Mariana, agradeça os aplausos com modéstia. E, se o colesterol estiver alto, convém fugir correndo do (feijão) tropeiro / embora valha a morte em gozo extremo.

          Impregnado de utilidade e beleza, 50 sonetos de forno e fogão é um livro que talvez leve a pensar porque nos cardápios brasileiros não são honrados, também, os pra­tos inventados pelo povo.

          Com isso, aqueles brasileiros que tem acesso aos bens da mesa usufruiriam, como os autores do livro dão fé, também, do melhor bife, da glória dos gaúchos, do prato que merece dez sonetos.

domingo, 30 de outubro de 1994

O fio da meada:o diálogo




Em 1973, a Noguer de Barcelona publi­cou El hombre que trasladaba las ciu­dades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse re­lato oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras da Literatura do Conti­nente. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapien­tíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas si­nuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permitem seja vislumbrado o universo desconhecido que os espa­nhóis cheios de sonhos e se perdendo no tempo quiseram conquistar.


          Quatro longos capítulos correspondendo cada um deles a uma das mudanças de assento da cidade de Barco constroem El hombre que trasladaba las ciudades. Um texto em que o relato, a descrição, os diálogos e os monólogos se en­trelaçam habilmente e prescindem das convenções literárias usuais para atingir um todo de harmonia perfeita.
 
          Assim, o diálogo entre o capitão Juan Nuñez de Prado e o padre Cedrón. E o diálogo entre Juan Núñez de Prado e Francisco Villagra.
 
          Ora um narrador em terceira pessoa, ora um narrador em primeira pessoa mostra o cenário povoado de sol­dados, animais, sons e imagens de montanhas e de céu diluído na bruma.          Mesclando-se às breves descrições, o registro dos movimentos do padre Cedrón entre os soldados e dos senti­mentos e gestos do capitão em relação a ele. Presume que o olhar do padre se pousará nele cheio de presságios e que ao ler os naipes irá ver a sua morte; quer chamar o padre mas não se atreve e movimenta os borzeguins para chamar sua aten­ção até que por fim opta por se levantar de onde estava.     Sentado perto do fogo, o padre fez um gesto e ele se aproxima. Só então, o diálogo se inicia e, tão sim­plesmente - É um belo fogo, disse - que não deixa prenun­ciar o tema que irá se impôr, estendendo-se por mais de duas páginas: a figura de Cristo. Um Cristo venerado mas feito, verdadeiramente, à imagem e à dimensão do homem.
 
          Já o diálogo entre Juan Nuñez de Prado e Francisco Villagra, o capitão que, partindo do Chile, pre­tende tomar-lhe a cidade que fundara, é relembrado e, consequentemente, se mostra a partir da ótica de um dos in­terlocutores.    Em dado momento, Juan Nuñez de Prado se per­gunta de quem deve salvar a cidade. E explica a si mesmo suas razões: Dom Francisco esteve aqui para me roubar, me fez prisioneiro na minha própria casa, deitado na cama seus sol­dados me amarraram e relata as palavras do capitão que pre­tendia convencê-lo a abrir mão da cidade.
 
          Logo, passa a reproduzir o diálogo que tive­ram, alimentado de dissensões. Os adjetivos que usa para qua­lificar seu interlocutor (ameaçador, seus desconfiados olhos de filho natural e rancoroso, pobre espanhol sem pai), os gestos e intenções que lhe atribui (pondo os pu­nhais sobre a mesa, seus soldados me seguraram pelos bra­ços) e as acusações que dele recebe (de ter assassinado um soldado pelas costas) definem o inimigo. Responde-lhe, justi­ficando os próprios atos e se declarando um soldado enfermo. Mas, sobretudo, senhor absoluto da cidade.
 
          Desenvolvendo-se em meandros e sustentado por inesperados recursos narrativos, esses diálogos se aliam a uma visão dialética da Conquista do Continente e a uma excep­cional concepção da divindade.
 
          Publicado em 1973, trinta anos depois de ter sido escrito, El hombre que trasladaba las ciudades não ape­nas se antecipou a toda uma época, como pela sua profundidade e beleza se constitui uma obra, certamente, inigualável.

domingo, 23 de outubro de 1994

O fio da meada:os soldados



Em 1973, a Noguer de Barcelona publi­cou El hombre que trasladaba las ciu­dades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse re­lato oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras da Literatura do Conti­nente. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapien­tíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas si­nuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permitem seja vislumbrado o universo desconhecido que os espa­nhóis cheios de sonhos e se perdendo no tempo quiseram conquistar.


           Foram duzentos os que seguiram Juan Nuñez de Prado na conquista do território. Aventureiros que partiram dos portos da Espanha - por solitários e abandonados e perdidos viemos para as índias aventurar e matar índios, disse um deles - e se transformaram em soldados do rei.
 
           No romance de Carlos Droguett eles constituem essa presença contínua que faz e desfaz a cidade juntamente com os índios e a enchem de vozes, de risos, de cantos, de murmúrios.
 
           Esse alguém que assobia ou grita irado, ou ri, ou tosse ou cantarola e que não tem rosto ou nome para aqueles que os comandam. Apenas o espanhol, empurrado para as galeras e para a luta, que na Conquista é ferido ou morto, deixando rastros de sangue e, marcando, com os ossos espalha­dos na terra, os caminhos abertos para Deus e para o rei.
 
           Ele cava trincheiras, derruba árvores para construir casas, executa ordens. Pequenas seqüências inter­rompem a narrativa para mostrá-lo dormindo sob o sol, sentado perto de uma fogueira à noite, puxando a passo, uma parelha de cavalos; como sentinela, imóvel sentado vigiando uma porta ou no ir e vir diante de uma casa, como lhe compete. Ou, ainda, revelando-lhe as vontades. A dos aventureiros, dos vis, dos que são capazes de apunhalar pelas costas  que se alegram com a destruição da cidade e a dos que se apegam a suas casas, à terra cultivada e querem preservar a cidade.
 
           Por vezes, algo de seu corpos cansado, mar­tirizado, sofrido é mencionado, em meio à dinâmica da narrativa: um cabelo preto e crespo, um braço purulento, braços suados, feridos e cansados ou simplesmente horríveis e sujos, pés ensanguentados, ombros carcomidos, pernas apodrecidas.
 
           Outras vezes, é uma figura que se desenha a partir do olhar do outro: viu o soldado que roncava, seu ca­belo alvoroçado e suave, sua cabeça ingênua, seu corpo tosco, inerme.
 
           E, também, como peças espalhadas de um que­bra-cabeças, há os retratos que se completam aos poucos, in­seridos em diferentes momentos da narrativa. Como o do sol­dado coxo que Juan Nuñez de Prado e o padre Cedrón descobrem descendo de uma carreta. Voltaram-se para olhá-lo e o soldado ficou da cor da terra, a chuva corria miserável pelo seu rosto doente, era jovem, muito jovem, tinha um rosto audaz e provocador, mas agora estava assustado e passou a mão pela testa para apagar o medo, levantou a muleta para que a vissem e riu com humildade. Eles o vêem desaparecer na chuva, tateando a escuridão com a muleta.
 
           Então, inicia-se um novo fragmento e só algu­mas páginas adiante é que sua figura irá se completar quando o padre, caminhando pelos arredores do lugar escolhido para o novo assento da cidade o vê outra vez: viu os pés do homem, o arcabuz gasto caído por terra, perto da água, era um homem jovem, de rosto trabalhado e audaz, cínico e desperto, tinha os olhos fechados mas não dormia, se queixava com esforço, estava caído no chão, de cara para o céu, a cabeça numa pedra e o peito ensangüentado, o uniforme despedaçado e o borzeguim furado pelo qual assomava um pé branco e aristocrático.
 
           Após um texto em que é descrita a agitação dos soldados perguntando pelo fogo, pela comida, pelo vinho nessa trégua da viagem e, após um outro texto em que uma es­pécie de delírio, o padre Cedrón mescla a figura de Deus e de Cristo com o tormentoso cotidiano da Conquista, ele se lembra ter vislumbrado o soldado coxo, olhando para ele, agarrado na muleta como havia feito algumas horas antes no momento em que os capitães de Juan Nuñez de Prado o haviam querido prender e ele fugira pelo bosque afundando a muleta na terra macia.
 
           O padre torna a olhar para o soldado caído no chão: tinha no peito um pouco de sangue, sangue jovem, des­colorido para esse rosto imberbe, cínico, inocente, audaz até o desespero. E outra vez o padre se lembra de seu gesto le­vantando a muleta para se defender e de sua própria capaci­dade de se manter desperto. Lamenta que se o cansaço não o tivesse obrigado a dormir poderia ter salvo o soldado da morte.
 
           Essa maneira de elaborar o personagem - uma constante em El hombre que trasladaba las ciudades - está em acorde com os demais elementos do romance. A insistente repetição que se apoiando na te­mática orienta o fazer lingüístico e guia as seqüências nar­rativas não tem por fim apenas  a beleza estética, certamente alcançada. Porque se as palavras se repetem, se as seqüências reaparecem, completando-se em outro lugar da narrativa - um bater de teclas sempre o mesmo e renovado - também  os conceitos ideológicos que as acompanham giram em torno de um Continente onde muito pouco ou quase nada se renova  nas trilhas do Velho Mundo.
 
          

domingo, 16 de outubro de 1994

O fio da meada: o querer


 

Em 1973, a Noguer de Barcelona publi­cou El hombre que trasladaba las ciu­dades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse re­lato oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras da Literatura do Conti­nente. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapien­tíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas si­nuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permitem seja vislumbrado o universo desconhecido que os espa­nhóis cheios de sonhos e se perdendo no tempo quiseram conquistar.

 

Uma vontade superior, regida por altos e imensos interesses determinava-lhes a vinda para o Novo Mundo.

O rei da Espanha perseguia as riquezas; a Igreja, dissimulando iguais desejos de posse, procurava ado­nar-se das almas. Aos que nada tinham sobrava, igualmente, algum querer - um pedaço de terra, algum ouro, uma aventura - e em busca dele atravessavam o Atlântico.

El hombre que trasladaba las ciudades é, tam­bém, a história dessa busca.

Juan Nuñez de Prado funda a cidade de Barco e a cidade passa a lhe pertencer. Desfeita, reconstruída nova­mente traçada e, novamente, aos pedaços, ele a vislumbra no futuro, mais bela, povoada das mulheres que os soldados man­darão buscar e de muitas crianças, uma carreta cheia.

É um querer que seus capitães endossam e que precisa ser, também, o querer dos homens que comanda.

Não são todos mais aventureiros que soldados, não são todos essa tropa de ladrões e assassinos que embar­caram na Espanha para conquistar a terra. Entre eles há os que sonham um mundo, os que acreditam ter encontrado um es­paço que lhes possa pertencer e, então, desejam criar raízes. São melancólicos, diz um dos capitães, se apegam à terra, choram, olhando os jardins pisoteados pelos cavalos, se agar­ram nas laranjeiras e juram e gritam e vociferam que jamais os abandonarão.

São os que vieram para ficar e não querem se­guir as razões que Juan Nuñez de Prado arranca de suas angústias para determinar, em nome do rei e de Deus, que a cidade deve ser mudada, mais uma vez, de lugar. Aqueles que, se admira, ainda, o capitão, não sabem abandonar virilmente uns vasos com flores, uma dúzia de frutas perfumadas.

É o sentimento condenado, é o querer conde­nado, como condenada está a cidade que, em ruínas, fica no abandono, só habitada pelos mortos pendurados nas forcas.

Juan Nuñez de Prado justifica: estamos cons­truindo um mundo. Então, pouco significa para ele, o desejo do outro, a vida dos homens que o acompanham na Conquista, os seus próprios sofrimentos, as suas próprias dúvidas.

É o preço para realizar o sonho que se inven­tou e que o Poder que lhe auferiram ou que ele mesmo se atri­bui em nome de Deus e do rei, lhe permite pagar.

A conquista é uma bela febre, uma maravi­lhosa derrota, ele diz.

E, assim foi.

domingo, 9 de outubro de 1994

O fio da meada. O tempo


                                           Em 1973, a Noguer de Barcelona publicou El hombre que trasladaba las ciudades, um romance    onstruído a partir das crônicas da Conquista da  mérica. Carlos Droguett, se sem afastar  verdade histórica  contida nesse relato oficial, o refaz dando-lhe vida , criando uma das mais perfeitas e belas  bras da Literatura do Continente. Uma expressão rara,  mo que feita somente  de achados, um sapientíssimo  uso  de recursos romanescos, fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas  nuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permitem  seja  vislumbrado  o universo desconhecido   que os espanhóis cheios de sonhos e se perdendo no  tempo quiseram conquistar.
 
 

            Eles se perderam no tempo.Sob as ordens de Juan Núñez de Prado, duzentos espanhóis se adentraram no Continente, vindos do Peru para fundar uma cidade. Foi chamada Barco e para fugir dos espanhóis chefiados por Francisco Villagra a carregaram três vezes no dorso dos índios ou empilhadas nas carretas. Nem bem eram traçadas a rua  e a praça principal e mal se erguiam s primeiras casas tudo era desmanchado para começar mais adiante. [...] estamos em  1550, estamos sozinhos, sem carne  e sem vinho, sem dinheiro, sem naipe, sem esperanças, sem família [...] diz um dos capitães . Mas, em nome de Deus ou do rei ou em nome de suas próprias ambições, eles avançam nesse espaço desejado e num tempo de fluir lento que, certamente, não podem mensurar senão a partir das relações que estabelecem consigo próprios e com essa aventura em que jogam seus destinos. Então, além desse 1500  indicando o ano em que se inicia a luta pela cidade e que irá aparecer num delírio de Juan Núñez de Prado, consta somente outra data, a de 1570. Antecedida, porém de um advérbio de dúvida, talvez já seja o ano de1570 e de uma alegre previsão de futuro: talvez  estejamos magros e grisalhos e sejamos marqueses e duques e barões e tenhamos caixas de rapé sobre a mesa curva e pó de rapé nas fraldiqueiros e rolem carruagens pelas pedras, carruagens cheias de riso de mulheres e não de soldados, de leques,luvas e matilhas e não de arcabuzes, machadinhas, adagas e cordas de enforcado.

            Na verdade, um futuro vislumbrado já a partir do momento em que pensam no traçado da rua principal e que poderá se realizar num tempo impreciso, um ano, cinco anos, dezoito anos. E será a imprecisão que irá prevalecer, quase sempre, no registro do tempo. Seja na menção das estações do ano, seja nessas indicações de tempo precedidas de expressões dando noção de possibilidades como devia ser, seriam ou da conjunção alternativa ou. Assim, devia ser três ou quatro da tarde, seriam nove horas da noite desse dia do mês de maio, cinco ou seis horas da manhã. Imprecisão que se acentua quando a noção do tempo é mudada -  faz oito meses ou oito anos; dentro de algumas semanas ou meses, dentro de umas poucas noites;- indicando desejo de esquecer um momento penoso ou o medo de perigos previsíveis: achegada dos soldados a mando de Valdivia, os representantes do Santo Ofício a cobrar-lhes os atos. E que, muitas vezes,advém de uma indiferença ou desprezo pelo tempo que transcorre, diante da tarefa que se atribuíram: Dois, três dias, quatro dias talvez. Quem poderia dizer? Não se lembrava, nem isso interessava a nenhum de seus tenentes e capitães  quanto tempo caminharam, quantas   vezes no meio do sono e do cansaço e do desalento correram para segurar umas cordas, recolher uns móveis. Alguma cadeira, um par de borzeguins, uma porta violentamente nova e bela que se desprendia e balançava na escuridão, rangiam os eixos, as rodas se afundavam brandamente no barro, relinchavam os cavalos, mugiam os bois [...]

            Daí, certamente, uma percepção do tempo originada de um imediatismo discernível: uma bela tarde de verão: tardes ardentes; madrugada chuvosa; inesperado dia de sol; dia nublado; noite lenta e alta; tempestuosa noite de outono. Embora efêmero e à margem da exatidão cronológica é um elemento que se integra à perfeição  no dinamismo das sequências narrativas.

            Vago, ambíguo, à mercê das emoções dos personagens, eles mesmos extraviados no espaço que buscavam  e perdidos entre dias e noites que não podem contar, o tempo, neste romance de Carlos Droguett é parte imprescindível de uma  estrutura narrativa que, negando-se aos moldes usuais, é,  regida por leis que a fazem única no Continente. E inigualável.

O fio da meada:o tempo

 
Em 1973, a Noguer de Barcelona publi­cou El hombre que trasladaba las ciu­dades, um romance construído a partir das crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse re­lato oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras da Literatura do Conti­nente. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapien­tíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas si­nuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permitem seja vislumbrado o universo desconhecido que os espa­nhóis cheios de sonhos e se perdendo no tempo quiseram conquistar.
 
          As carretas, adentrando-se em terras desco­nhecidas, avançam carregadas, procurando um lugar onde assen­tar a cidade recém fundada. Elas fazem parte de um cenário que o romancista já afirmou desconhecer e que, então, ele constrói apenas a partir de breves referências à topografia e, sobretudo, a partir de elementos essencialmente sensori­ais.
 
          Nas raras vezes em que uma serra, um rio, uma planície é mencionada, nesse acompanhar do mover-se lento das carretas, é apenas para relacionar o aspecto da paisagem com uma ação: cavalos despencando-se pelas serras abaixo, ovelhas fugindo esbaforidas pelo mato fechado, o capitão olhando para um monte que parece se desfazer na neblina do sol.
 
          Mas, ainda assim - breve espaço esboçado -, é menção que estabelece o cenário de cores, sons, odores, de luminosidade cambiante onde irá se desenrolar o trágico per­curso dos espanhóis conquistadores.
 
          É o azul do céu ou é o céu avermelhado cheio de nuvens e de nevoeiro ou é o céu negro, carregado de água. É o grasnar de bandadas de pássaros, o latir dos cães, o re­linchar dos cavalos, o sussurrar do vento, o ruído da fo­gueira se consumindo. É o perfume das flores e das macegas, das pétalas trêmulas, das folhas frescas e da seiva, o per­fume seco do milho e do trigo.
 
          São notas esparsas, vagas e imprecisas que pontilham o denso texto em que o escritor chileno retoma o recorrido dos espanhóis chefiados por Juan Nuñez de Prado em busca da posse do Continente.
 
          Não o retrata mimeticamente mas em imagens fugazes que lhe conferem uma presença plena, contínua, veros­símil e de muita beleza.

sábado, 1 de outubro de 1994

O fio da meada: o cenário


Em 1973, a Noguer de Barcelona publi­cou El hombre que trasladaba las ciu­dades, um romance construído a partir das crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse re­lato oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras da Literatura do Conti­nente. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapien­tíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas si­nuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permitem seja vislumbrado o universo desconhecido que os espa­nhóis cheios de sonhos e se perdendo no tempo quiseram conquistar.


          As carretas, adentrando-se em terras desco­nhecidas, avançam carregadas, procurando um lugar onde assen­tar a cidade recém fundada. Elas fazem parte de um cenário que o romancista já afirmou desconhecer e que, então, ele constrói apenas a partir de breves referências à topografia e, sobretudo, a partir de elementos essencialmente sensori­ais.
 
          Nas raras vezes em que uma serra, um rio, uma planície recebe menção  nesse acompanhar do mover-se lento das carretas, é apenas para relacionar o aspecto da paisagem com algo que acontece: cavalos despencando-se pelas serras abaixo, ovelhas fugindo esbaforidas pelo mato fechado, o capitão olhando para um monte que parece se desfazer na neblina do sol. Mas,ainda assim, no breve   espaço esboçado se  estabelece o cenário de cores, sons, odores, de luminosidade cambiante onde irá se desenrolar o trágico per­curso dos espanhóis conquistadores.
 
          É o azul do céu ou é o céu avermelhado cheio de nuvens e de nevoeiro ou é o céu negro, carregado de água. É o grasnar de bandadas de pássaros, o latir dos cães, o re­linchar dos cavalos, o sussurrar do vento, o ruído da fo­gueira se consumindo. É o perfume das flores e das macegas, das pétalas trêmulas, das folhas frescas e da seiva, o per­fume seco do milho e do trigo.
 
          São notas esparsas, vagas e imprecisas que pontilham o denso texto em que o escritor chileno retoma o recorrido dos espanhóis chefiados por Juan Nuñez de Prado em busca da posse do Continente.
 
          Não o retrata mimeticamente mas em imagens fugazes que lhe conferem uma presença plena, contínua, veros­símil e de muita beleza.

domingo, 25 de setembro de 1994

O lugar certo


          Acaba de sair, pela José Olympio, As armas secretas, o décimo sexto livro de Julio Cortázar publicado em português. Eric Nepomuceno, o tradutor, num posfácio à obra, diz que ela chegouao Brasil com o absurdo atraso de trinta e cinco anos.
 
         Efetivamente, As armas secretas, apareceu, pela primeira vez, na Argentina, em 1958, vinte anos depois de ter sido publicada a primeira obra de Julio Cortázar, Pre­sencia, um livro de sonetos, antecedido de Los reyes (1949) e de Bestiário (1951).
 
         Nos cinco textos de Las armas secretas, o ce­nário é Paris e os personagens, seres inquietos em busca de algo que talvez nem saibam o quê seja.
          Julio Cortázar já então vivia na França e o Continente para ele estava em distante. O que escreve parece  estar igualmente distante daquilo que Ernesto  Sabato presume ser a expectativa dos europeus em relação à Literatura Argentina: a descrição de selvagens cavalgadas de gaúchos nas planícies [...] o exotismo, a cor local.     .

         Nesses contos de Las armas secretas é como se tratasse de um cotidiano quase banal em que, imperceptivel­mente, se instala uma inquietude, um inexplicável, um incom­preensível. E um pouco do fantástico, um pouco do lúdico in­vadem o território do mimético para diluir certezas pois, de­las, a narração pode prescindir.
 
         No segundo conto do livro, “Os bons servi­ços”, a narrativa é feita por uma primeira pessoa, Madame Francinet, e nela aparece essa realidade que lhe é dado per­ceber e que as suas condições de vida tornam muito limitadas.Muito do que acontece nessas horas em que trabalha para a família Rosay lhe escapa e a informação que oferece ao interlocutor a quem se dirige, é truncada; a sua ingenuidade e a submissa aceitação no jogo que lhe é ofere­cido não escondem, no entanto, o antagonismo que define as relações entre as classes.
 
         Assim, contratada para, durante uma recepção, cuidar dos cães da casa ela apenas vê a cozinha e o local em que estavam os animais. As salas onde se realizava a festa, as pessoas que lá estavam e o que entre elas se passava não devia lhe concernir.

         Na cozinha, sim, pode ver as pilhas de louças por lavar e os copos ainda cheios de bebidas e pode se admi­rar de que os cachorros vivessem num quarto, em vez de estarem num canil e que dormissem em colchões e se alimen­tassem de belos pedaços de carne. Ela, que viera apenas para impedir que eles brigassem, vivia num cômodo só - alguns mó­veis e o fogão - com cheiro de cebola e de xixi de gato.
 
         E, na casa dos Rosay, é tratada exatamente de acordo com o valor que lhe dão: uma peça na engrenagem armada para que eles possam se divertir sem preocupações. Mal lhe dirigem a palavra, não lhe oferecem de comer ou de beber e, quando sua tarefa termina, deve caminhar sob a neve até che­gar, tarde da noite, em casa. Na segunda parte do conto, o serviço solici­tado exige-lhe a presença entre os ricos e no espaço em que vivem. Agora ela pode ver e participar - é então a figura principal - do que acontece. Mas, continua sem saber o sen­tido dos atos que lhe pediram para realizar.As barreiras sociais são o seu limite. E, diz Rodolfo Borello, crítico argentino, também a sua falta de cultura, de imaginação, de curiosidade que tornam, plano, su­perficial, quase fotográfico o seu testemunho pois é incapaz de compreender e de analisar.

         Preencher as lacunas, estabelecer os elos au­sentes cabe, então, ao leitor que irá encontrar essa coerên­cia que, aparentemente, falta ao relato. Cumplicidade que irá tornar mais evidente a maestria de Julio Cortázar na arte do conto. Porém, que pouco mais irá acrescentar à dicotomia que rege a sociedade dividindo-a ferozmente e que mesmo no Pri­meiro Mundo, permite que Madame Francinet, velha, pobre, so­zinha e doente, saiba reconhecer o seu lugar e nele se acomo­dar.

         A dedicatória do conto faz saber que Madame Francinet não é uma invenção.