domingo, 23 de outubro de 1994

O fio da meada:os soldados



Em 1973, a Noguer de Barcelona publi­cou El hombre que trasladaba las ciu­dades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse re­lato oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras da Literatura do Conti­nente. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapien­tíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas si­nuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permitem seja vislumbrado o universo desconhecido que os espa­nhóis cheios de sonhos e se perdendo no tempo quiseram conquistar.


           Foram duzentos os que seguiram Juan Nuñez de Prado na conquista do território. Aventureiros que partiram dos portos da Espanha - por solitários e abandonados e perdidos viemos para as índias aventurar e matar índios, disse um deles - e se transformaram em soldados do rei.
 
           No romance de Carlos Droguett eles constituem essa presença contínua que faz e desfaz a cidade juntamente com os índios e a enchem de vozes, de risos, de cantos, de murmúrios.
 
           Esse alguém que assobia ou grita irado, ou ri, ou tosse ou cantarola e que não tem rosto ou nome para aqueles que os comandam. Apenas o espanhol, empurrado para as galeras e para a luta, que na Conquista é ferido ou morto, deixando rastros de sangue e, marcando, com os ossos espalha­dos na terra, os caminhos abertos para Deus e para o rei.
 
           Ele cava trincheiras, derruba árvores para construir casas, executa ordens. Pequenas seqüências inter­rompem a narrativa para mostrá-lo dormindo sob o sol, sentado perto de uma fogueira à noite, puxando a passo, uma parelha de cavalos; como sentinela, imóvel sentado vigiando uma porta ou no ir e vir diante de uma casa, como lhe compete. Ou, ainda, revelando-lhe as vontades. A dos aventureiros, dos vis, dos que são capazes de apunhalar pelas costas  que se alegram com a destruição da cidade e a dos que se apegam a suas casas, à terra cultivada e querem preservar a cidade.
 
           Por vezes, algo de seu corpos cansado, mar­tirizado, sofrido é mencionado, em meio à dinâmica da narrativa: um cabelo preto e crespo, um braço purulento, braços suados, feridos e cansados ou simplesmente horríveis e sujos, pés ensanguentados, ombros carcomidos, pernas apodrecidas.
 
           Outras vezes, é uma figura que se desenha a partir do olhar do outro: viu o soldado que roncava, seu ca­belo alvoroçado e suave, sua cabeça ingênua, seu corpo tosco, inerme.
 
           E, também, como peças espalhadas de um que­bra-cabeças, há os retratos que se completam aos poucos, in­seridos em diferentes momentos da narrativa. Como o do sol­dado coxo que Juan Nuñez de Prado e o padre Cedrón descobrem descendo de uma carreta. Voltaram-se para olhá-lo e o soldado ficou da cor da terra, a chuva corria miserável pelo seu rosto doente, era jovem, muito jovem, tinha um rosto audaz e provocador, mas agora estava assustado e passou a mão pela testa para apagar o medo, levantou a muleta para que a vissem e riu com humildade. Eles o vêem desaparecer na chuva, tateando a escuridão com a muleta.
 
           Então, inicia-se um novo fragmento e só algu­mas páginas adiante é que sua figura irá se completar quando o padre, caminhando pelos arredores do lugar escolhido para o novo assento da cidade o vê outra vez: viu os pés do homem, o arcabuz gasto caído por terra, perto da água, era um homem jovem, de rosto trabalhado e audaz, cínico e desperto, tinha os olhos fechados mas não dormia, se queixava com esforço, estava caído no chão, de cara para o céu, a cabeça numa pedra e o peito ensangüentado, o uniforme despedaçado e o borzeguim furado pelo qual assomava um pé branco e aristocrático.
 
           Após um texto em que é descrita a agitação dos soldados perguntando pelo fogo, pela comida, pelo vinho nessa trégua da viagem e, após um outro texto em que uma es­pécie de delírio, o padre Cedrón mescla a figura de Deus e de Cristo com o tormentoso cotidiano da Conquista, ele se lembra ter vislumbrado o soldado coxo, olhando para ele, agarrado na muleta como havia feito algumas horas antes no momento em que os capitães de Juan Nuñez de Prado o haviam querido prender e ele fugira pelo bosque afundando a muleta na terra macia.
 
           O padre torna a olhar para o soldado caído no chão: tinha no peito um pouco de sangue, sangue jovem, des­colorido para esse rosto imberbe, cínico, inocente, audaz até o desespero. E outra vez o padre se lembra de seu gesto le­vantando a muleta para se defender e de sua própria capaci­dade de se manter desperto. Lamenta que se o cansaço não o tivesse obrigado a dormir poderia ter salvo o soldado da morte.
 
           Essa maneira de elaborar o personagem - uma constante em El hombre que trasladaba las ciudades - está em acorde com os demais elementos do romance. A insistente repetição que se apoiando na te­mática orienta o fazer lingüístico e guia as seqüências nar­rativas não tem por fim apenas  a beleza estética, certamente alcançada. Porque se as palavras se repetem, se as seqüências reaparecem, completando-se em outro lugar da narrativa - um bater de teclas sempre o mesmo e renovado - também  os conceitos ideológicos que as acompanham giram em torno de um Continente onde muito pouco ou quase nada se renova  nas trilhas do Velho Mundo.
 
          

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