Em 1973, a Noguer de Barcelona publicou El hombre que trasladaba
las ciudades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da
América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse relato
oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras
da Literatura do Continente. Uma expressão rara, como que feita somente de
achados, um sapientíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um
impressionante itinerário onde predominam linhas sinuosas e repetitivas cujo
avançar e recuar permitem seja vislumbrado o universo desconhecido que os espanhóis
cheios de sonhos e se perdendo no tempo quiseram conquistar.
No romance de Carlos
Droguett eles constituem essa presença contínua que faz e desfaz a cidade
juntamente com os índios e a enchem de vozes, de risos, de cantos, de
murmúrios.
Esse alguém que assobia ou
grita irado, ou ri, ou tosse ou cantarola e que não tem rosto ou nome para
aqueles que os comandam. Apenas o espanhol, empurrado para as galeras e para a
luta, que na Conquista é ferido ou morto, deixando rastros de sangue e,
marcando, com os ossos espalhados na terra, os caminhos abertos para Deus e
para o rei.
Ele cava trincheiras,
derruba árvores para construir casas, executa ordens. Pequenas seqüências interrompem
a narrativa para mostrá-lo dormindo sob o sol, sentado perto de uma fogueira à
noite, puxando a passo, uma parelha de cavalos; como sentinela, imóvel sentado
vigiando uma porta ou no ir e vir diante de uma casa, como lhe compete. Ou, ainda,
revelando-lhe as vontades. A dos aventureiros, dos vis, dos que são capazes de
apunhalar pelas costas que se alegram
com a destruição da cidade e a dos que se apegam a suas casas, à terra
cultivada e querem preservar a cidade.
Por vezes, algo de seu
corpos cansado, martirizado, sofrido é mencionado, em meio à dinâmica da
narrativa: um cabelo preto e crespo, um braço purulento, braços suados, feridos e cansados ou simplesmente horríveis e sujos, pés ensanguentados, ombros
carcomidos, pernas apodrecidas.
Outras vezes, é uma figura
que se desenha a partir do olhar do outro: viu
o soldado que roncava, seu cabelo alvoroçado e suave, sua cabeça ingênua, seu
corpo tosco, inerme.
E, também, como peças
espalhadas de um quebra-cabeças, há os retratos que se completam aos poucos,
inseridos em diferentes momentos da narrativa. Como o do soldado coxo que Juan
Nuñez de Prado e o padre Cedrón descobrem descendo de uma carreta. Voltaram-se para olhá-lo e o soldado ficou
da cor da terra, a chuva corria miserável pelo seu rosto doente, era jovem,
muito jovem, tinha um rosto audaz e provocador, mas agora estava assustado e
passou a mão pela testa para apagar o
medo, levantou a muleta para que a vissem e riu com humildade. Eles o vêem desaparecer na chuva, tateando a escuridão com a muleta.
Então, inicia-se um novo
fragmento e só algumas páginas adiante é que sua figura irá se completar
quando o padre, caminhando pelos arredores do lugar escolhido para o novo assento
da cidade o vê outra vez: viu os pés do
homem, o arcabuz gasto caído por terra, perto da água, era um homem jovem, de
rosto trabalhado e audaz, cínico e desperto, tinha os olhos fechados mas não
dormia, se queixava com esforço, estava caído no chão, de cara para o céu, a
cabeça numa pedra e o peito ensangüentado, o uniforme despedaçado e o borzeguim
furado pelo qual assomava um pé branco e aristocrático.
Após um texto em que é
descrita a agitação dos soldados perguntando pelo fogo, pela comida, pelo vinho
nessa trégua da viagem e, após um outro texto em que uma espécie de delírio, o
padre Cedrón mescla a figura de Deus e de Cristo com o tormentoso cotidiano da
Conquista, ele se lembra ter vislumbrado o soldado coxo, olhando para ele,
agarrado na muleta como havia feito algumas horas antes no momento em que os
capitães de Juan Nuñez de Prado o haviam querido prender e ele fugira pelo
bosque afundando a muleta na terra macia.
O padre torna a olhar para o
soldado caído no chão: tinha no peito um
pouco de sangue, sangue jovem, descolorido para esse rosto imberbe, cínico, inocente,
audaz até o desespero. E outra vez o padre se lembra de seu gesto levantando
a muleta para se defender e de sua própria capacidade de se manter desperto.
Lamenta que se o cansaço não o tivesse obrigado a dormir poderia ter salvo o
soldado da morte.
Essa maneira de elaborar o
personagem - uma constante em El hombre
que trasladaba las ciudades - está em acorde com os demais elementos do
romance. A insistente repetição que
se apoiando na temática orienta o fazer lingüístico e guia as seqüências narrativas
não tem por fim apenas a beleza estética, certamente alcançada. Porque se as palavras se repetem,
se as seqüências reaparecem, completando-se em outro lugar da narrativa - um
bater de teclas sempre o mesmo e renovado - também os conceitos ideológicos que as
acompanham giram em torno de um Continente onde muito pouco ou quase nada se
renova nas trilhas do Velho Mundo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário