domingo, 30 de outubro de 1994

O fio da meada:o diálogo




Em 1973, a Noguer de Barcelona publi­cou El hombre que trasladaba las ciu­dades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse re­lato oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras da Literatura do Conti­nente. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapien­tíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas si­nuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permitem seja vislumbrado o universo desconhecido que os espa­nhóis cheios de sonhos e se perdendo no tempo quiseram conquistar.


          Quatro longos capítulos correspondendo cada um deles a uma das mudanças de assento da cidade de Barco constroem El hombre que trasladaba las ciudades. Um texto em que o relato, a descrição, os diálogos e os monólogos se en­trelaçam habilmente e prescindem das convenções literárias usuais para atingir um todo de harmonia perfeita.
 
          Assim, o diálogo entre o capitão Juan Nuñez de Prado e o padre Cedrón. E o diálogo entre Juan Núñez de Prado e Francisco Villagra.
 
          Ora um narrador em terceira pessoa, ora um narrador em primeira pessoa mostra o cenário povoado de sol­dados, animais, sons e imagens de montanhas e de céu diluído na bruma.          Mesclando-se às breves descrições, o registro dos movimentos do padre Cedrón entre os soldados e dos senti­mentos e gestos do capitão em relação a ele. Presume que o olhar do padre se pousará nele cheio de presságios e que ao ler os naipes irá ver a sua morte; quer chamar o padre mas não se atreve e movimenta os borzeguins para chamar sua aten­ção até que por fim opta por se levantar de onde estava.     Sentado perto do fogo, o padre fez um gesto e ele se aproxima. Só então, o diálogo se inicia e, tão sim­plesmente - É um belo fogo, disse - que não deixa prenun­ciar o tema que irá se impôr, estendendo-se por mais de duas páginas: a figura de Cristo. Um Cristo venerado mas feito, verdadeiramente, à imagem e à dimensão do homem.
 
          Já o diálogo entre Juan Nuñez de Prado e Francisco Villagra, o capitão que, partindo do Chile, pre­tende tomar-lhe a cidade que fundara, é relembrado e, consequentemente, se mostra a partir da ótica de um dos in­terlocutores.    Em dado momento, Juan Nuñez de Prado se per­gunta de quem deve salvar a cidade. E explica a si mesmo suas razões: Dom Francisco esteve aqui para me roubar, me fez prisioneiro na minha própria casa, deitado na cama seus sol­dados me amarraram e relata as palavras do capitão que pre­tendia convencê-lo a abrir mão da cidade.
 
          Logo, passa a reproduzir o diálogo que tive­ram, alimentado de dissensões. Os adjetivos que usa para qua­lificar seu interlocutor (ameaçador, seus desconfiados olhos de filho natural e rancoroso, pobre espanhol sem pai), os gestos e intenções que lhe atribui (pondo os pu­nhais sobre a mesa, seus soldados me seguraram pelos bra­ços) e as acusações que dele recebe (de ter assassinado um soldado pelas costas) definem o inimigo. Responde-lhe, justi­ficando os próprios atos e se declarando um soldado enfermo. Mas, sobretudo, senhor absoluto da cidade.
 
          Desenvolvendo-se em meandros e sustentado por inesperados recursos narrativos, esses diálogos se aliam a uma visão dialética da Conquista do Continente e a uma excep­cional concepção da divindade.
 
          Publicado em 1973, trinta anos depois de ter sido escrito, El hombre que trasladaba las ciudades não ape­nas se antecipou a toda uma época, como pela sua profundidade e beleza se constitui uma obra, certamente, inigualável.

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