domingo, 16 de outubro de 1994

O fio da meada: o querer


 

Em 1973, a Noguer de Barcelona publi­cou El hombre que trasladaba las ciu­dades, um romance construído a partir das Crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse re­lato oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras da Literatura do Conti­nente. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapien­tíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas si­nuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permitem seja vislumbrado o universo desconhecido que os espa­nhóis cheios de sonhos e se perdendo no tempo quiseram conquistar.

 

Uma vontade superior, regida por altos e imensos interesses determinava-lhes a vinda para o Novo Mundo.

O rei da Espanha perseguia as riquezas; a Igreja, dissimulando iguais desejos de posse, procurava ado­nar-se das almas. Aos que nada tinham sobrava, igualmente, algum querer - um pedaço de terra, algum ouro, uma aventura - e em busca dele atravessavam o Atlântico.

El hombre que trasladaba las ciudades é, tam­bém, a história dessa busca.

Juan Nuñez de Prado funda a cidade de Barco e a cidade passa a lhe pertencer. Desfeita, reconstruída nova­mente traçada e, novamente, aos pedaços, ele a vislumbra no futuro, mais bela, povoada das mulheres que os soldados man­darão buscar e de muitas crianças, uma carreta cheia.

É um querer que seus capitães endossam e que precisa ser, também, o querer dos homens que comanda.

Não são todos mais aventureiros que soldados, não são todos essa tropa de ladrões e assassinos que embar­caram na Espanha para conquistar a terra. Entre eles há os que sonham um mundo, os que acreditam ter encontrado um es­paço que lhes possa pertencer e, então, desejam criar raízes. São melancólicos, diz um dos capitães, se apegam à terra, choram, olhando os jardins pisoteados pelos cavalos, se agar­ram nas laranjeiras e juram e gritam e vociferam que jamais os abandonarão.

São os que vieram para ficar e não querem se­guir as razões que Juan Nuñez de Prado arranca de suas angústias para determinar, em nome do rei e de Deus, que a cidade deve ser mudada, mais uma vez, de lugar. Aqueles que, se admira, ainda, o capitão, não sabem abandonar virilmente uns vasos com flores, uma dúzia de frutas perfumadas.

É o sentimento condenado, é o querer conde­nado, como condenada está a cidade que, em ruínas, fica no abandono, só habitada pelos mortos pendurados nas forcas.

Juan Nuñez de Prado justifica: estamos cons­truindo um mundo. Então, pouco significa para ele, o desejo do outro, a vida dos homens que o acompanham na Conquista, os seus próprios sofrimentos, as suas próprias dúvidas.

É o preço para realizar o sonho que se inven­tou e que o Poder que lhe auferiram ou que ele mesmo se atri­bui em nome de Deus e do rei, lhe permite pagar.

A conquista é uma bela febre, uma maravi­lhosa derrota, ele diz.

E, assim foi.

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