sábado, 1 de outubro de 1994

O fio da meada: o cenário


Em 1973, a Noguer de Barcelona publi­cou El hombre que trasladaba las ciu­dades, um romance construído a partir das crônicas da Conquista da América. Carlos Droguett, sem se afastar da verdade histórica contida nesse re­lato oficial, o refaz dando-lhe vida e criando uma das mais perfeitas e belas obras da Literatura do Conti­nente. Uma expressão rara, como que feita somente de achados, um sapien­tíssimo uso dos recursos romanescos fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas si­nuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permitem seja vislumbrado o universo desconhecido que os espa­nhóis cheios de sonhos e se perdendo no tempo quiseram conquistar.


          As carretas, adentrando-se em terras desco­nhecidas, avançam carregadas, procurando um lugar onde assen­tar a cidade recém fundada. Elas fazem parte de um cenário que o romancista já afirmou desconhecer e que, então, ele constrói apenas a partir de breves referências à topografia e, sobretudo, a partir de elementos essencialmente sensori­ais.
 
          Nas raras vezes em que uma serra, um rio, uma planície recebe menção  nesse acompanhar do mover-se lento das carretas, é apenas para relacionar o aspecto da paisagem com algo que acontece: cavalos despencando-se pelas serras abaixo, ovelhas fugindo esbaforidas pelo mato fechado, o capitão olhando para um monte que parece se desfazer na neblina do sol. Mas,ainda assim, no breve   espaço esboçado se  estabelece o cenário de cores, sons, odores, de luminosidade cambiante onde irá se desenrolar o trágico per­curso dos espanhóis conquistadores.
 
          É o azul do céu ou é o céu avermelhado cheio de nuvens e de nevoeiro ou é o céu negro, carregado de água. É o grasnar de bandadas de pássaros, o latir dos cães, o re­linchar dos cavalos, o sussurrar do vento, o ruído da fo­gueira se consumindo. É o perfume das flores e das macegas, das pétalas trêmulas, das folhas frescas e da seiva, o per­fume seco do milho e do trigo.
 
          São notas esparsas, vagas e imprecisas que pontilham o denso texto em que o escritor chileno retoma o recorrido dos espanhóis chefiados por Juan Nuñez de Prado em busca da posse do Continente.
 
          Não o retrata mimeticamente mas em imagens fugazes que lhe conferem uma presença plena, contínua, veros­símil e de muita beleza.

Nenhum comentário:

Postar um comentário