domingo, 9 de outubro de 1994

O fio da meada. O tempo


                                           Em 1973, a Noguer de Barcelona publicou El hombre que trasladaba las ciudades, um romance    onstruído a partir das crônicas da Conquista da  mérica. Carlos Droguett, se sem afastar  verdade histórica  contida nesse relato oficial, o refaz dando-lhe vida , criando uma das mais perfeitas e belas  bras da Literatura do Continente. Uma expressão rara,  mo que feita somente  de achados, um sapientíssimo  uso  de recursos romanescos, fazem dessa obra um impressionante itinerário onde predominam linhas  nuosas e repetitivas cujo avançar e recuar permitem  seja  vislumbrado  o universo desconhecido   que os espanhóis cheios de sonhos e se perdendo no  tempo quiseram conquistar.
 
 

            Eles se perderam no tempo.Sob as ordens de Juan Núñez de Prado, duzentos espanhóis se adentraram no Continente, vindos do Peru para fundar uma cidade. Foi chamada Barco e para fugir dos espanhóis chefiados por Francisco Villagra a carregaram três vezes no dorso dos índios ou empilhadas nas carretas. Nem bem eram traçadas a rua  e a praça principal e mal se erguiam s primeiras casas tudo era desmanchado para começar mais adiante. [...] estamos em  1550, estamos sozinhos, sem carne  e sem vinho, sem dinheiro, sem naipe, sem esperanças, sem família [...] diz um dos capitães . Mas, em nome de Deus ou do rei ou em nome de suas próprias ambições, eles avançam nesse espaço desejado e num tempo de fluir lento que, certamente, não podem mensurar senão a partir das relações que estabelecem consigo próprios e com essa aventura em que jogam seus destinos. Então, além desse 1500  indicando o ano em que se inicia a luta pela cidade e que irá aparecer num delírio de Juan Núñez de Prado, consta somente outra data, a de 1570. Antecedida, porém de um advérbio de dúvida, talvez já seja o ano de1570 e de uma alegre previsão de futuro: talvez  estejamos magros e grisalhos e sejamos marqueses e duques e barões e tenhamos caixas de rapé sobre a mesa curva e pó de rapé nas fraldiqueiros e rolem carruagens pelas pedras, carruagens cheias de riso de mulheres e não de soldados, de leques,luvas e matilhas e não de arcabuzes, machadinhas, adagas e cordas de enforcado.

            Na verdade, um futuro vislumbrado já a partir do momento em que pensam no traçado da rua principal e que poderá se realizar num tempo impreciso, um ano, cinco anos, dezoito anos. E será a imprecisão que irá prevalecer, quase sempre, no registro do tempo. Seja na menção das estações do ano, seja nessas indicações de tempo precedidas de expressões dando noção de possibilidades como devia ser, seriam ou da conjunção alternativa ou. Assim, devia ser três ou quatro da tarde, seriam nove horas da noite desse dia do mês de maio, cinco ou seis horas da manhã. Imprecisão que se acentua quando a noção do tempo é mudada -  faz oito meses ou oito anos; dentro de algumas semanas ou meses, dentro de umas poucas noites;- indicando desejo de esquecer um momento penoso ou o medo de perigos previsíveis: achegada dos soldados a mando de Valdivia, os representantes do Santo Ofício a cobrar-lhes os atos. E que, muitas vezes,advém de uma indiferença ou desprezo pelo tempo que transcorre, diante da tarefa que se atribuíram: Dois, três dias, quatro dias talvez. Quem poderia dizer? Não se lembrava, nem isso interessava a nenhum de seus tenentes e capitães  quanto tempo caminharam, quantas   vezes no meio do sono e do cansaço e do desalento correram para segurar umas cordas, recolher uns móveis. Alguma cadeira, um par de borzeguins, uma porta violentamente nova e bela que se desprendia e balançava na escuridão, rangiam os eixos, as rodas se afundavam brandamente no barro, relinchavam os cavalos, mugiam os bois [...]

            Daí, certamente, uma percepção do tempo originada de um imediatismo discernível: uma bela tarde de verão: tardes ardentes; madrugada chuvosa; inesperado dia de sol; dia nublado; noite lenta e alta; tempestuosa noite de outono. Embora efêmero e à margem da exatidão cronológica é um elemento que se integra à perfeição  no dinamismo das sequências narrativas.

            Vago, ambíguo, à mercê das emoções dos personagens, eles mesmos extraviados no espaço que buscavam  e perdidos entre dias e noites que não podem contar, o tempo, neste romance de Carlos Droguett é parte imprescindível de uma  estrutura narrativa que, negando-se aos moldes usuais, é,  regida por leis que a fazem única no Continente. E inigualável.

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