domingo, 11 de dezembro de 1994

O mito

           Mafalda olha para a pomba pousada num galho de árvore e lhe pergunta se ela é a pomba da paz. Não obtendo resposta e para desfazer sua dúvida, ela exclama: Viva a agressão e a bomba H. Do alto do galho cai a resposta quase sobre Mafalda que, feliz, conclui tratar-se, efetivamente, da pomba da paz.

           A paz que ela, contemporânea dos Beatles, almeja se concretize num Vietnam que, na condição de David frente a Golias, ocupou durante dez anos as páginas dos grandes jornais. Nessa história de Quino, construída em cinco quadrinhos, aparece Mafalda, a árvore, a pombinha. Uma árvore urbanamente solitária e outonal, de raízes protegidas por grades e umas poucas folhas. A pombinha pousada num dos galhos adquire, diante do olhar infantil, um significado que lhe é alheio. E, também, evidentemente, lhe permanece alheio o sentido que é dado por Mafalda a seu natural ato fisiológico.

           Receptiva a tudo o que acontece, Mafalda é capaz de discernir as desarmonias que imperam a seu redor sem que a imaginação própria de sua idade seja cerceada pelo senso crítico que, repetidamente, ela exerce. É essa imaginação infantil que a faz acreditar ter estabelecido com a pomba um diálogo que na realidade é um monólogo. Seu poder sugestivo está precisamente no silêncio de um dos “interlocutores” e na interpretação, por parte do outro, de que um ato espontâneo seja uma tomada de posição.

           Se os quadrinhos de Quino se mantém no nível da mais aceitável verossimilhança, o desenho de Edgard Vasques parte de uma situação fantasiosa que remete a uma situação mimética de um determinado e conhecido cotidiano. Uma pombinha, voa, altiva, com um ramo de oliveira no bico. Chaco aponta na sua direção o estilingue e Rango aparece, correndo, para dizer: Não! Essa aí, não!

           Porque Chaco, o índio que representa a fome na América, como Rango, usa de qualquer expediente para encontrar o que comer. O surpreendente é que Rango, faminto, chegue para impedir que ele atinja a pomba da paz e, assustado, intervenha.

           O único quadro, em que um rápido olhar é suficiente para abarcar os três personagens e a frase breve é de um efeito surpreendente. Seu significado se torna maior, porém, se conhecido o estatuto dos personagens: continuamente e, pelo que tudo indica, condenados à fome e em constante busca de comida.

           Assim, ter renunciado a abater a pomba que poderia servir de alimento é um gesto extremamente valioso pois ainda que miserável e com fome Rango se mostra capaz de uma escolha altruísta
           Sempre tão requisitada num mundo de conflitos perenes, nessa década 1965-1975 em que no Vietnam foram despejadas toneladas de bombas, a paz foi desejada não apenas pelas vítimas das agressões como pelos que entenderam o conflito além do que a potência agressora queria fazer acreditar.

           Se nos quadrinhos de Quino a pomba da paz, sob os olhos de Mafalda, expressa o seu repúdio à violência, em acorde com todos os que repudiam a guerra, no desenho de Rango ela passa, sem perceber os dramas próprios do Terceiro Mundo que está a sobrevoar.

           Os anos se passaram, a paz entre o Vietnam e os Estados Unidos foi assinada, as relações diplomáticas restabelecidas.

           Mafalda, porém, continuaria pensando na paz diante dos novos conflitos bélicos que foram surgindo.

           A pomba da paz certamente prossegue sobrevoando territórios com seu pequeno ramo de oliveira no bico.

           E Rango mais do que nunca se encontra preso no seu monturo.

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