Mafalda olha para a pomba
pousada num galho de árvore e lhe pergunta se ela é a pomba da paz. Não obtendo
resposta e para desfazer sua dúvida, ela exclama: Viva a agressão e a bomba H.
Do alto do galho cai a resposta quase sobre Mafalda que, feliz, conclui
tratar-se, efetivamente, da pomba da paz.
A paz que ela, contemporânea
dos Beatles, almeja se concretize num Vietnam que, na condição de David frente
a Golias, ocupou durante dez anos as páginas dos grandes jornais. Nessa
história de Quino, construída em cinco quadrinhos, aparece Mafalda, a árvore, a
pombinha. Uma árvore urbanamente solitária e outonal, de raízes protegidas por
grades e umas poucas folhas. A pombinha pousada num dos galhos adquire, diante
do olhar infantil, um significado que lhe é alheio. E, também, evidentemente,
lhe permanece alheio o sentido que é dado por Mafalda a seu natural ato
fisiológico.
Receptiva a tudo o que
acontece, Mafalda é capaz de discernir as desarmonias que imperam a seu redor
sem que a imaginação própria de sua idade seja cerceada pelo senso crítico que,
repetidamente, ela exerce. É essa imaginação infantil que a faz acreditar ter
estabelecido com a pomba um diálogo que na realidade é um monólogo. Seu poder
sugestivo está precisamente no silêncio de um dos “interlocutores” e na
interpretação, por parte do outro, de que um ato espontâneo seja uma tomada de
posição.
Se os quadrinhos de Quino se
mantém no nível da mais aceitável verossimilhança, o desenho de Edgard Vasques
parte de uma situação fantasiosa que remete a uma situação mimética de um
determinado e conhecido cotidiano. Uma pombinha, voa, altiva, com um ramo de
oliveira no bico. Chaco aponta na sua direção o estilingue e Rango aparece,
correndo, para dizer: Não! Essa aí, não!
Porque Chaco, o índio que
representa a fome na América, como Rango, usa de qualquer expediente para
encontrar o que comer. O surpreendente é que Rango, faminto, chegue para
impedir que ele atinja a pomba da paz e, assustado, intervenha.
O único quadro, em que um
rápido olhar é suficiente para abarcar os três personagens e a frase breve é de
um efeito surpreendente. Seu significado se torna maior, porém, se conhecido o
estatuto dos personagens: continuamente e, pelo que tudo indica, condenados à
fome e em constante busca de comida.
Assim, ter renunciado a
abater a pomba que poderia servir de alimento é um gesto extremamente valioso
pois ainda que miserável e com fome Rango se mostra capaz de uma escolha
altruísta
Sempre tão requisitada num
mundo de conflitos perenes, nessa década 1965-1975 em que no Vietnam foram
despejadas toneladas de bombas, a paz foi desejada não apenas pelas vítimas das
agressões como pelos que entenderam o conflito além do que a potência agressora
queria fazer acreditar.
Se nos quadrinhos de Quino a
pomba da paz, sob os olhos de Mafalda, expressa o seu repúdio à violência, em
acorde com todos os que repudiam a guerra, no desenho de Rango ela passa, sem
perceber os dramas próprios do Terceiro Mundo que está a sobrevoar.
Os anos se passaram, a paz
entre o Vietnam e os Estados Unidos foi assinada, as relações diplomáticas restabelecidas.
Mafalda, porém, continuaria
pensando na paz diante dos novos conflitos bélicos que foram surgindo.
A pomba da paz certamente
prossegue sobrevoando territórios com seu pequeno ramo de oliveira no bico.
E Rango mais do que nunca se
encontra preso no seu monturo.
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