domingo, 13 de novembro de 1994
Mafalda
Em 29 de setembro de 1964,
pela primeira vez, Mafalda aparecia numa história em quadrinhos. E durante dez
anos com suas tiradas e reflexões ela expressou as inquietudes dos argentinos e
de muito mais gente, haja visto que suas histórias foram traduzidas em vinte e
seis países e os livros que as reuniram vendidos aos milhares.
Contestadora foi sempre o
adjetivo mais usado para defini-la e, na verdade, o seu olhar de menina de seis
anos para o mundo que a rodeia tem uma surpreendente e instigante lucidez. Sobre
a situação da Argentina, por vezes, semelhante a de outros países do Terceiro
Mundo, sobre a situação mundial. Sobre os hábitos, preconceitos e lugares
comuns de uma classe média cujos valores não se resigna a acatar mas a cujo
perfil não pode fugir.
Mora confortavelmente num
pequeno apartamento sob os cuidados da mãe, cuidadosa e voltada para o lar e do
pai cujo salário é suficiente para oferecer à família uma vida correta. Sem
dúvida, pouco lhe falta e, certamente, algo lhe sobra.
Muitas são as histórias em
que o tema é o repúdio da sopa. No volume nº 1 de Mafalda das Ediciones
de la Flor (Buenos Aires, 1974) esse repúdio se repete e sempre com indignação:
de que os adultos afirmem que somente crescem as crianças que tomam sopa, de
que a liberdade de imprensa permita que sejam publicadas receitas de sopa; que
a geometria sirva também para o preparo de sopa em cubos.
E, considerando que a sopa é um nome feio, observa que não é uma
palavra que possa ser pronunciada à mesa. Se o dicionário não a registra como
palavrão, ela joga o dicionário no lixo. Só adquire um ar alegre diante do
argumento de que o aumento da população ocasionará falta de alimento o que a
leva a imaginar uma manchete de jornal: Escassez
mundial de sopa.
Assim, é capaz de enunciar que a sopa é para a
infância o que o comunismo é para a democracia e de observar que reinaria a tranquilidade no mundo
se Marx não tivesse tomado sopa.
Nessa ojeriza pela sopa se
inserem, porém, outros temas: a preocupação que sobrevém aos que estão acostumados
a comer diante da possibilidade de que diminua a quantidade da comida face o
aumento da população; o desprezo pelo livro ou pela ciência ou pela liberdade de imprensa que, no seu entender, nem sempre possuem verdadeiras ou pertinentes respostas.
Ao mesmo tempo em que se
insurge contra o código reinante – no caso a importância do alimento para quem
dele pode usufruir – Mafalda assume valores da classe a que pertence ao
pretender que tudo esteja a serviço de seus interesses, expressando a ambiguidade
que lhe é própria ao oscilar entre alguns valores humanistas e o que acredita
lhe seja devido. Mas em cada uma de suas tiradas, Mafalda contesta essa sua
classe, a critica, a reflete e não lhe dá trégua.
Licenciada por vontade de seu
criador, os anos que se passaram desde a publicação dos últimos quadrinhos em
que apareceu não lhe tiraram a razão.
Se o seu criador, Quino –
nascido Joaquin Lavado, na Argentina – continuasse a desenhá-la e a fazê-la
falar, Mafalda provavelmente continuaria a dizer as mesmas coisas que já disse.
Porque o mundo para melhor, pouco mudou.
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