Rango é um personagem de
história em quadrinhos cujo heroísmo consiste em sobreviver no dia a dia. Ele é
definido como o marginal-síntese, sujo, doente, cabeludo, barba apontando, nu e
faminto: desprovido até de aparência humana por seu criador, Edgar Vasques. Cursava
a Faculdade de Arquitetura de Porto Alegre quando numa revista marginal chamada Grilus,
registrou as suas impressões do adolescente que, cotidianamente, presenciava
essa procura de comida no lixo da cidade. E a elaboração artística aconteceu presa
a um objetivo definido: ativar o
raciocínio geral através dessa pílula dourada
que é o humor, conforme disse em matéria publicada no dia 29 de dezembro de
1977 no Estado do Paraná.
Se, no sentido que lhe dá
Ziraldo, o humor é uma defesa de tese, um caminho, uma informação,
em Edgar Vasques, os quadrinhos são o testemunho, a tomada de consciência de
uma realidade nacional: o faminto brasileiro. Aquele cuja potencialidade é
(ficará) desconhecida e que representa um peso morto para o país que somente
pode contar, no que se refere à força de trabalho, apenas com uma parte do povo,apenas.
Rango pertence ao submundo da
grande cidade, vive dos detritos dos quais ela se desfaz. Ele está sempre no
meio de montes de lixo, dentro de latas de lixo, falando sobre o lixo, se
alimentando de lixo. Num contínuo estado de fome que só é atenuado a partir do
monturo. É dele que Rango extrai o que pode ser útil para suprir suas necessidades
básicas: garrafa vazia, lata de conserva vazia, rato, casca de siri. Mas, sempre
remota a possibilidade de saciar, verdadeiramente, uma fome constante.
Daí um repertório
onomatopaico próprio das histórias em quadrinhos – GRONC? RONC? TOC? URC? TIC-TAC – que se
intensifica: GRAAUUR, GROOOONC, GROUOURRRR. Até
o paroxismo: TCHARARÁ TCHAM TCHAM TARIRA MRAMA TARI RARÔ TCHA TCHARA TCHAM
TCHARITCHAROM TARARARAM TCHEM TC TAM TAM e, nada mais é do que os ruídos que
emite o estômago vazio dos personagens.
Porque, em geral, o que
aparece é a pretensão de comer. Uma pretensão que, para ser alcançada, tem como
alternativa viável a procura nas latas de lixo ou no monturo. Ou, os
expedientes os mais fantasiosos: esperar que os morcegos durmam para
“colhê-los”; esperar que o gato cace o rato para caçar o gato; tentar achar o
coelho da cartola do mágico.
E esse estar permanentemente
faminto e consciente de sua fome (a palavra aparece muitas vezes nas
historietas de Rango), convive com a possibilidade de se alimentar
condignamente que só é permitida aos outros: às senhoras gordas da alta sociedade
comendo, com exagero, num chá filantrópico; senhora de alto poder aquisitivo,
explicando uma receita especial para a cozinheira; uma pessoa num restaurante
servindo-se do terceiro bife.
Parafraseando Louis
Althusser, o filósofo francês, Moacy Cirne, no seu trabalho “Semiologia e
Especificidade dos quadrinhos”, disse não haver quadrinhos inocentes.E se o
personagem de Edgar Vasques é a síntese do faminto que, aos milhares, faz parte
da população latino-americana, é verdadeiramente instigante perceber que em qualquer
uma de suas histórias, de “suas aventuras”, a grande presença é uma ausência.
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