domingo, 27 de novembro de 1994

Rango


         Rango é um personagem de história em quadrinhos cujo heroísmo consiste em sobreviver no dia a dia. Ele é definido  como o marginal-síntese, sujo, doente, cabeludo, barba apontando, nu e faminto: desprovido até de aparência humana por seu criador, Edgar Vasques.  Cursava a Faculdade de Arquitetura de Porto Alegre  quando numa revista marginal chamada Grilus, registrou as suas impressões do adolescente que, cotidianamente, presenciava essa procura de comida no lixo da cidade. E a elaboração artística aconteceu presa a um objetivo definido: ativar o raciocínio geral através dessa pílula dourada que é o humor, conforme disse em matéria publicada no dia 29 de dezembro de 1977 no Estado do Paraná.

         Se, no sentido que lhe dá Ziraldo, o humor é uma defesa de tese, um caminho, uma informação, em Edgar Vasques, os quadrinhos são o testemunho, a tomada de consciência de uma realidade nacional: o faminto brasileiro. Aquele cuja potencialidade é (ficará) desconhecida e que representa um peso morto para o país que somente pode contar, no que se refere à força de trabalho,  apenas com uma parte do povo,apenas.
 
         Rango pertence ao submundo da grande cidade, vive dos detritos dos quais ela se desfaz. Ele está sempre no meio de montes de lixo, dentro de latas de lixo, falando sobre o lixo, se alimentando de lixo. Num contínuo estado de fome que só é atenuado a partir do monturo. É dele que Rango extrai o que pode ser útil para suprir suas necessidades básicas: garrafa vazia, lata de conserva vazia, rato, casca de siri. Mas, sempre remota a possibilidade de saciar, verdadeiramente, uma fome constante.

         Daí um repertório onomatopaico próprio das histórias em quadrinhos – GRONC? RONC? TOC? URC? TIC-TAC – que se intensifica: GRAAUUR, GROOOONC, GROUOURRRR. Até o paroxismo: TCHARARÁ TCHAM TCHAM TARIRA MRAMA TARI RARÔ TCHA TCHARA TCHAM TCHARITCHAROM TARARARAM TCHEM TC TAM TAM e, nada mais é do que os ruídos que emite o estômago vazio dos personagens.

         Porque, em geral, o que aparece é a pretensão de comer. Uma pretensão que, para ser alcançada, tem como alternativa viável a procura nas latas de lixo ou no monturo. Ou, os expedientes os mais fantasiosos: esperar que os morcegos durmam para “colhê-los”; esperar que o gato cace o rato para caçar o gato; tentar achar o coelho da cartola do mágico.

         E esse estar permanentemente faminto e consciente de sua fome (a palavra aparece muitas vezes nas historietas de Rango), convive com a possibilidade de se alimentar condignamente que só é permitida aos outros: às senhoras gordas da alta sociedade comendo, com exagero, num chá filantrópico; senhora de alto poder aquisitivo, explicando uma receita especial para a cozinheira; uma pessoa num restaurante servindo-se do terceiro bife.
         Parafraseando Louis Althusser, o filósofo francês, Moacy Cirne, no seu trabalho “Semiologia e Especificidade dos quadrinhos”, disse não haver quadrinhos inocentes.E se o personagem de Edgar Vasques é a síntese do faminto que, aos milhares, faz parte da população latino-americana, é verdadeiramente instigante perceber que em qualquer uma de suas histórias, de “suas aventuras”, a grande presença é uma ausência.

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