domingo, 30 de dezembro de 1990

O gaúcho novo de Serafin J. Garcia

            Em 1936, Serafin J. Garcia, nascido em Treinta y Três, cidade uruguaia próxima do Brasil,  publicava Tacuruses. Depois, livros de contos, de poemas, antologias da literatura nativista de seu país se seguiram. Foi Tacuruses, porém, que mereceu mais de dez edições no Uruguai e extrapolou  fronteiras para fazer  leais admiradores no Rio Grande do Sul como bem o registra, no dia 26 de março de 1974, quando, ainda existia  o velho Correio do Povo, o cronista Sérgio da Costa Franco.
            Os poemas de Tacuruses tratam da querência, do botequim, do amor, das brigas, das taperas. Tem como cenário, o campo. E como expressão, a linguagem gauchesca. Um, entre tantos livros de poemas sobre o gaúcho. Mas, um livro que se afasta da trilha conhecida ao enunciar os novos momentos vividos por aquele que foi dono dos pampas e, progressivamente, vai se transformando em agricultor ou vai sendo marginalizado do campo de trabalho para dar lugar aos que semeiam. É o “gaúcho novo” dizem os críticos.

            E o seu protótipo está retratado no poema “Orejano” (orelhano), termo que, no tempo da dominação ibérica designava os animais que não haviam recebido a marca da Coroa, dona das terras e de suas riquezas e que, por extensão, passou, também, a significar “livre”, “sem dono”.

            O gaúcho que se expressa no poema de Serafin J.Garcia é aquele que sobreviveu à limitação dos horizontes pelas cercas de arame farpado, submetendo-se à lei da civilização, da igreja, dos costumes. Deixou de ser aquele gaúcho nômade que roubava a mulher, levando-a na garupa do cavalo para abandoná-la quando o  acabasse o interesse, ignorando o filho que, por ventura, viesse a nascer dessa união;  ou aquele que seguia, com entusiasmo, sem muito entender os porquês, o caudilho eventual.

            Constituiu família e se fixou na terra, o gaúcho  orelhano. Mas, o fez a sua maneira, negando-se a passar por um juiz que lhe oficializasse a união ou pela igreja que lhe batizasse os filhos; negando-se à submissão e ao silêncio. Já não o convencem com quatro mentiras / os graudões que chegam da cidade / para elogiar divisas já desmerecidas / e fazer promessas que jamais cumpriram.

            Essa recusa dos assim chamados valores tradicionais, presente em cada poema de Tacuruses,  verdadeiro enunciado de protesto contra as leis que regem o viver social, irá se fortalecer em Burbujas, livro de contos publicado quatro anos depois onde o campo continua sendo o espaço e o assunto, o contrabando, o drama da prostituição ou da criança abandonada, a situação passiva da mulher e a transformação do gaúcho no homem que planta.

            Nos contos e nos poemas se retrata um mundo dividido: o poder econômico dos estancieiros servido pelo poder público; a força de trabalho exercida pelos peões e pela criadagem quase igualados na pobreza dos marginais ( a prostituta, o ladrão de ovelhas, o contrabandista). Não mais um espaço aberto  sem dono, campos verdes a se perderem de vista,  o gaúcho altivo e valente, dominando a paisagem. A terra dividira-se em propriedades e nela só havia lugar para aquele que aceitasse as novas regras.

            O chamado “gaúcho novo” testemunha a pobreza, a exploração de que são vítimas, sobretudo, as mulheres e as crianças, os homens cujo trabalho não mais interesse aos meios de produção. Seus olhos abertos não se iludem com as bicheiras do sistema e sua voz se ergue para cantar verdades.

domingo, 23 de dezembro de 1990

Mas continuo sendo o rei


            Pero sigo siendo el rey é um romance que, junto com as narrativas, fábulas, contos, testemunho, forma o conjunto da obra de David Sánchez Juliao, um dos pioneiros na América Latina dos textos escritos especialmente para serem gravados em discos e cassetes.

            Colombiano, nascido em 1945, sociólogo, jornalista, professor, roteirista de cinema e televisão, o interesse pela música popular o levou a realizar pesquisas no México onde, entre Guadalajara e Cuernavaca e a capital de seu país, escreveu um romance sui generis.

            Com o sub-título de “Sinfonia para leitor e mariaches, opus 1”, Pero sigo siendo el rey  se apresenta sob o signo da música. O prólogo é uma partitura de José Alfredo Jimenez e de um de seus versos se origina o título do romance que é dividido não em capítulos mas em Movimentos que indicam a cadência e o caráter de uma peça musical: “Allegro contabili”, “Allegretto scherzando”, “Tempo di Minuetto” e “Allegro vivace”.

            Alegre, gracioso, melancólico ou mais lento ou lúdico ou, ainda, lento e por fim alegre: cadências que anunciam uma narrativa construída  em quadros cujo fio condutor são as mortes que, repetidamente, advém, já anunciadas por antigas profecias e que a presença de pombas vermelhas no povoado de Tezontle concretiza.

            Não sucessivamente, mas mesclando-se nos quatro Movimentos, se aproximam,  se afastam, se entrelaçam destinos marcados por grandes paixões amorosas que são interlúdios para a morte. Morte que obedecem sempre a um sentido de honra no qual se incrusta somente a verdade masculina. Uma verdade que é dona da vida e dos sentimentos da mulher.

            A autoridade paterna ajudada pela autoridade religiosa ( Deus fez a mulher assim, inferior, para que o homem fosse o rei), decide a vida sentimental de Flor de Azálea e de Chabela. O sentido de posse masculino proíbe a mulher de sair à rua, ir à festas, expressar o seu pensamento. Não podia permitir que Chabela se desfizesse da camisa de força que sempre tinham usado as mulheres de Tezontle. Nessa mulher mando eu. As tranças de Chabela são rédeas para meu cavalo. Um sentido que lhe permite perder a mulher no jogo, usá-la até que fique uma  flor sem atrativos pois para isso e só para isso existe; matá-la para que não desonre o amigo  ou  apenas por suspeita de infidelidade.

Ninharias  que o código social determina. Uma lei de honra inflexível ( a morte deve ser vingada por outra morte), os usos e costumes consagrados (há homens que à alma e ao bolso convém mais do que os outros), o servir-se da autoridade para obter amores ( Anselma entendeu que com alguém que era ao mesmo tempo homem e autoridade de nada adiantava a linguagem da razão).

            Código que irá determinar o silêncio dos amantes que somente nos monólogos solitários se expressam plenamente pois os diálogos, quando existem ,são cheios de medos, de reticências. Não expresso, o amor se esgueira, se esconde e quando, luminoso, quer desabrochar, a morte o impede de florescer.

            E, em meio ao insólito das pombas vermelhas, do espelho que não reflete a imagem  ou a reflete diante de outros rostos, do morto que volta para completar a vingança, das filhas mortas que falam com as mães (reminiscências, talvez de Gabriel García Márquez e de Rulfo), usando, por vezes,palavras do cancioneiro popular mexicano, os personagens masculinos, sofrem terrivelmente, ( como somente soem sofrer os personagens femininos), mas continuam sendo, sempre,  o rei.
 

domingo, 16 de dezembro de 1990

Hispano-América em O Castelo de Franktein


            Salim Miguel o chama de  estranho castelo. Um castelo todo construído de palavras que se originam de outras. As que, por sua vez, constituem as obras que merecem suas anotações.

            “Anotações sobre autores e livros” é o sub-título de O Castelo de Frankestein  que a editora da Universidade Federal de Santa Catarina publicou em 1986. Formado por quatro capítulos ( Santa Catarina, Brasil, Hispano-américa, Outros )  tem, sempre, o interesse pelos contemporâneos.

            O capítulo terceiro, Hispano-américa, se compõe de dezoito artigos. Um deles, comenta o Prêmio Nobel atribuído a Gabriel Garcia Márquez, outro  a morte de Cortazar. Os demais, tratam de obras latino-americanas,  publicadas no Brasil pelas editoras Difel, Civilização  Brasileira, Global, Alfa-ômega, Nova Fronteira, Paz e Terra, Francisco Alves.

            São obras que, na maioria das vezes,  diferentes razões explicam a qualidade. Também, quase sempre, são oferecidas ao leitor brasileiro sem algumas das referências necessárias – que certas escolas críticas o perdoem – para que  a compreensão do texto ou o prazer da leitura possam ser mais completos e profundos.

            Situando-as no seu contexto geográfico e literário – Argentina, Cuba, Chile, México, Peru – mensurando-lhes as qualidades, os textos de Salim Miguel adquirem, então, essa importância que somente um arauto pode ter. Sobretudo, numa sociedade que, salvo as sempre honrosas exceções, precisa ser guiada nos seu renovado consumismo que, inclui, também o livresco.

            À sensibilidade  com que se aproxima do texto, as informações que oferece sobre o autor e sua vida literária se acrescentam à preocupação de contribuir para a qualidade das traduções com observações necessárias e pertinentes.

            Uma excelente contribuição que Salim Miguel, pelos labirintos de seu castelo,  onde se cruzam Angel Rama ,Cabrera Infante, Jorge Icaza, José Maria Arguedas, Ricardo Güiraldes entre outros, oferece para o conhecimento de uma Literatura, muitas vezes, inigualável que, embora produzida no Continente, ainda continua ignorada pela grande parte dos leitores brasileiros.

            Porque, a maior parte deles, parece não ter se dado conta que faz parte de uma geografia ao sul do rio Bravo e teima em permanecer atrelada aos gosto de leitura de outros centros considerados,  por uma certa elite,  como civilizados e donos da verdade.

domingo, 9 de dezembro de 1990

História para pensar

             Um dos dramas do Continente é essa impossibilidade de se liberar do atrelamento científico, cultural e ideológico dos países do Primeiro Mundo que aqui se instalou,  juntamente, com a chegada dos ibéricos. Uma real incapacidade de serem instituídas fontes de saber ou de criação que não estejam enraizadas nas produções dos grandes centros.

            Situação que se não for hipocritamente negada levará a refletir, entre outras coisas,  sobre o significado desse atrelamento e, então, surgirá, sem dúvida, uma busca para dele se desvencilhar.


            Caminhos do romance brasileiro de João Hernesto Weber (Mercado Aberto, 1990), ao apontar direções inovadoras sobre um assunto que, salvo as raras exceções, reproduz conceitos sempre baseados nas mesmas linhas de historiografia  e de crítica que servem ao estudo da Literatura  de outras latitudes, surge como uma obra de extremo interesse.

            Embora possa ser – certamente o será para muitos – uma obra polêmica, nas palavras de José Hildebrando Dacanal, ela se constitui o mais importante e coerente ensaio até hoje escrito sobre a ficção brasileira do século XIX a nossos dias.

            O sub-título do livro, “De A Moreninha a Os Guaianãs”, indica-lhe cronologicamente, os limites. Sete capítulos traçam a trajetória do romance brasileiro compreendido entre essas duas obras. Introduzindo as análises  de A Moreninha, Senhora, Iracema, Inocência, Memórias de um sargento de milícias, A mão e a luva, Memórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, O cortiço, Triste fim de Policarpo Quaresma, Memórias Sentimentais de João Miramar, São Bernardo, A pedra do reino, Os Guaianãs , a síntese do momento econômico - ideológico em que foram produzidas.

            De confessada “intenção didática”, a sutileza das observações sobre as obras que formam o corpus do trabalho e o abandono dos caminhos consagrados pela Historiografia brasileira fazem desse livro uma referência imprescindível para os especialistas da área e uma sugestiva  leitura para os que desejam pensar o país contido nas obras de ficção.

            Mas é, especialmente, quando João Hernesto Weber assinala essa constante busca por parte dos romancistas brasileiros dos padrões estéticos alienígenas que suas palavras adquirem um maior alcance. Elas não falam somente de obras de ficção, mas, sobretudo, de um dilema de importação cultural. Isto é, elas falam da História do país.

domingo, 2 de dezembro de 1990

Olhos de menina

            Inserido num texto que narra o cotidiano de uma menina, o atentado do dia 9 de abril de 1948, em Bogotá, e os acontecimentos que a ele se seguiram.

            A narração – construída em pequenos textos objetivos e sintéticos, antecedidos de uma marcação de tempo precisa – se inicia com um fato aparentemente sem importância, a chegada de Jorge Eliécer Gaitán a seu escritório às  oito e trinta da manhã.  Continua em mais nove parágrafos até chegar às quatorze horas e cinco minutos, quando morre, vítima de um atentado político, assassinado, como disse um homem do povo, por um  “João Ninguém”.

            No romance, são diferentes vozes que se entrelaçam para reconstruir esse episódio de violência e a violência que dele se originou. E o que aconteceu adquire distintos tons: a primeira dama do país se confessando “desagradavelmente surpresa” ao saber da morte de Gaitán; uma senhora da elite econômica se lamentando de que as coisas  estejam acontecendo exatamente no dia em que iria se apresentar no teatro Colón um afamado cantor; Sabina, uma empregada doméstica, murmura rezas e  acende velas a mando da patroa. E o jovem do povo, levado de roldão à luta armada, testemunhando o horror da frente de combate. Entre essas vozes e tantas outras, a de Ana. Ela  está no terceiro ano da escola primária, já sabe ler e somar. Em meio aos interesses próprios de sua idade ( deliciar-se com goiabas, ganhar a medalha de primeiro lugar, assistir filmes do Gordo e o Magro, comer a merenda), participa, ainda que protegida pela distância, do medo e das dúvidas que dominam a família e a cidade.

            Na escola, as freiras, nervosas  mudam as normas no que se refere à ida para casa: que as meninas não formem fila por ano, como sempre mas, a partir da direção da cidade onde moram; que as mais velhas cuidem das menores e que tão logo saiam do colégio corram o mais depressa possível. É claro que, no lufa-lufa, houve quem deixasse cair os cadernos e quem tivesse medo de que lhe matassem o pai.

            Para Ana, ao chegar em casa, correndo, as reprimendas: como dar ponta-pé no portão? Não lhe ensinaram que se toca a campainha? Ou, ao pedir, faminta, a merenda, receber como resposta que não é hora  de pensar em merenda. E, incompreensível para ela, a incoerência dos adultos  ao determinarem que o momento era grave demais  para lhe matar a fome enquanto, nervosamente, providenciam a compra de muitos gêneros alimentícios antes que a turba saqueie tudo.

            Assim, enquanto a cidade é saqueada, enquanto a multidão se embebeda e cadáveres se espalham pelo chão, enquanto a rádio incita o povo às armas, as perguntas de Ana  vão ficando sem resposta. Somente se lembram dela para  lhe mandar tirar o uniforme.

            Sem muito entender do que se passa – a morte do chefe do “grande Partido Liberal”, as cabeças penduradas nos postes, o medo dos adultos – os sete ou oito anos de Ana darão  o testemunho de um caos que foi vivenciado por Alba Lúcia Angel, romancista colombiana nascida em 1939.

            Ao escrever, entre 1971 e 1975, Estaba la pájara pinta sentada em el verde limón, ela retoma as questões, cujas respostas, provavelmente, também foram escamoteadas quando tinha a idade da sua personagem. E se inscreve entre os escritores que assumem um compromisso com a realidade de seu país, buscando novas formas que possibilitem a compreensão de sua história.

            Daí  esse seu romance conter não somente o atentado do dia 9 de abril de 1948, inserido no cotidiano de uma menina, mas, talvez,  principalmente, o cotidiano de uma menina inserido na violência instaurada, em Bogotá, no dia 9 de abril de 1948.

domingo, 25 de novembro de 1990

Um mundo desejado



            Em outubro do ano passado, numa edição bilíngüe, a Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, publicou Contos da Selva de Horacio Quiroga. O escritor uruguaio havia escrito esses contos para seus filhos e os fora publicando em periódicos até que, em 1918, apareceram em livro editado pela Sociedad Cooperativa Editorial Limitada “Buenos Aires”.

            Juntamente com inúmeros artigos sobre a fauna da região missioneira argentina e sobre a erva-mate, a criação do bicho da seda, o cultivo da mandioca e a  destilação da madeira, esses contos são resultado da vida que passou na selva.

            Uma vida que escolheu ou que foi levado a escolher. Depois de estudos que não completou, depois de escrever versos modernistas e de ir a Paris e de pertencer a um círculo literário de Montevidéu, a tragédia de ter matado, acidentalmente, um de seus melhores amigos, o levou ao auto-exílio.

            Inicialmente, nos primeiros anos de 1900, viveu no Chaco argentino, perto de Resistência onde plantou algodão numa época em que não havia para isso apoio governamental e nem interesse pela  fiação. Mais tarde, se instalou na região das Missões, dedicando-se ao cultivo da erva-mate. O que era feito primitivamente, ele tencionou realizar com método. Mas, foi a época em que aqueles que industrializavam a erva-mate na Argentina, se abasteciam no Brasil e no Paraguai. Então, Horacio Quiroga se lança na venda de laranjas, na produção de sucos, na destilação de azeite.

            No entanto, apesar de sua imensa capacidade de trabalho e do entusiasmo pelo que fazia, seus empreendimentos, por uma razão ou por outra, fracassaram sempre. Como diz Philippe Humbé na orelha da edição brasileira de Contos da Selva: escrever contos para manter plantações não podia dar muito certo. Certo foi, então o quê Horacio Quiroga. Textos que o situam entre os mais expressivos escritores do Continente.

            Ainda que desconhecido do grande público e, sem dúvida, apenas conhecido de alguns críticos literários, sua obra atravessou as fronteiras. A professora Tânia Piacentini que traduziu Contos da Selva para o português encontrou edições de suas obras no México, Venezuela, Chile e Equador. No Brasil, em 1977, Salim Miguel publicou em Ficção, o conto “Os desterrados” e, em 1981, a Rocco publicou Anaconda.

            Contos da Selva se compõe de oito relatos para crianças. Dois deles, são histórias de animais. “A abelha preguiçosa” conta a luta de uma abelha para se salvar num momento de perigo e, então, compreender a necessidade de trabalhar como as outras o quê, até então, não fizera. “As meias dos flamingos” é uma fantasiosa explicação para a cor das pernas  e para o hábito que tem os flamingos de ficarem longo tempo apoiados numa perna só.

            Assim como as abelhas falam e como falam os flamingos nessas duas histórias, nas outras seis os animais também falam. E, não apenas entre si, mas com os humanos. No conto “A guerra dos jacarés”, os homens destroem o dique construído pelos jacarés para impedir a navegação perniciosa que espantava os peixes. Em dois contos, os animais já domesticados, sofrem danos de outros animais selvagens e procuram voltar para junto dos humanos que os tratavam bem e com os quais haviam aprendido a se comunicar.

            Duas histórias tem por personagens homens solitários que vivem em meio à natureza e quando em perigo de vida são salvos por animais .Em outra, é o animal em dificuldades que busca o auxílio do homem e o recebe.

            Muito embora, nesses contos, por vezes sucedam mortes, elas são conseqüência de uma luta, de um enfrentamento cujo motivo se inscreve na lógica da luta pela sobrevivência. Assim, o homem mata tigres para se defender, um navio é destruído pelos jacarés e apenas o velho jacaré desdentado devora um dos adversários: o oficial com galões de ouro na roupa e que dera voz de ataque.

            E o equilíbrio retorna sempre. Com exceção das aves que nunca mais se libertaram dos danos sofridos no conto “As meias dos flamingos” e do quati, vítima  da picada de uma cobra do conto “História de dois filhotes de quati e dois filhotes de homem”, todos os demais têm final feliz.

            O que, no entanto, não significa uma visão de mundo idealizada, simplista ou ingênua.

            Certamente, Horacio Quiroga desejou dar lições a seus filhos. Então, fez falar os animais, fez com que valessem para eles as virtudes que se espera encontrar nos homens. Mas, debatendo-se entre as normas que regem o cotidiano dos homens, solitário  entre os humanos, vencendo, poucas vezes, a muralha da solidão, sobretudo, ele inventou um mundo no qual a gratidão, a fidelidade e o altruísmo fogem das barreiras do impossível para existir na ficção dos animais que falam.

            Refúgio em um mundo desejado.

domingo, 18 de novembro de 1990

"Nada do exterior me acontece"

            O mundo não o deixou ficar indiferente. Tanto fez, tanto insistiu que Mário Quintana foi obrigado a percebê-lo e escreveu: Não sei por que diziam que uma humilde cidadezinha / Tinha, por exemplo, umas quinze mil almas.../ Almas? Hoje, o que elas têm são quinze mil bocas ,/ Loucas de fome.  O título desse poema é “Censo demográfico”. Como o primeiro verso de “Um simples lugar comum”  assim, tão incisivo sobre a fome do Continente (Todos esses roubos, todos esses assassinatos vem apenas da fome) é um momento incomum na obra do poeta.  Esses dois poemas, inéditos como os outros setenta e três, formam o livro Velório sem defunto que a Mercado Aberto, de Porto Alegre, acaba  de publicar.
 
            Dos poemas, alguns são muito pequenos, como “Amanhecer”, feito de dois versos: O sol derrama, na calçada ,/ A sua bela, matinal urinada.  Outros, são mais longos, variam entre nove e doze e, só excepcionalmente, quinze versos. Como, por vezes, se formam de versos  longos (mais de vinte sílabas) inspiraram, sem  dúvida, essa composição gráfica que rompe com o esquema tradicional de leitura uma vez que, para realizá-lo, o livro deve ser folheado de baixo para cima ao invés  de sê-lo da direita para a esquerda. E apenas nas suas páginas ímpares.

            O gesto, prazerosamente inusitado para o ato de ler, busca, no entanto, o conhecido gosto da poesia de Mário Quintana e o encontra. A poesia que ele arranca do cotidiano  ampliada em lembranças e em descobertas – como sempre tem feito – e continua a se contaminar de interrogações e de certezas que são as interrogações e as certezas dos humanos ou de alguns privilegiados humanos.

            É uma mesinha de pinho;  a empada de camarão, sem camarões; é a perda de um amor adolescente; a figura do avô para os olhos infantis;  Aquela janela acesa/ No casario/Sou eu..., uma descoberta acaso flaubertiana que irrompe no poema “Noturno”;  as perguntas sobre a vida  e sobre o seu sentido;  a curiosidade em saber qual é o seu melhor poema; e aquela relacionada com o outro ou com si mesmo: E como fazer para que não me esqueças/ (ou eu não te esqueça...).

            E, as incertezas. Onde cabem Deus, Cristo e o amor. Um Deus que, para o poeta nunca existiu e que, de vez em quando, lá está, presença viva, num verso. Um Cristo que, partindo da terra a libertaria de proibições. Amores que são ausências, abandonos.

            Um mundo espiritual (alguém diria) de negativas. Para fazê-lo viver, a poesia. Nela, o tempo não existe diz Mário Quintana. Nela, tudo permanece, ele diz. E nessa Arte Poética que se insinua de vez  em quando nos poemas, ele constata: Esses poetas que tudo dizem / Nada conseguem dizer: / Estão fazendo apenas relatórios....

            Mestre de ligeiros tons, de palavras poucas, de expressão ironicamente ingênua, Mário Quintana, um terremoto na alma, afirma que Nada do exterior me acontece.

            E, desse mundo que nos rodeia,  ele nada (ou quase nada) conta. As vezes, apenas diz de um tom argentino:

                        Nos solenes banquetes de próceres internacionais
                        - em especial sobre desarmamentos -
                        O aparte mais espontâneo
                        É’ o riso de prata de uma colherinha
                        Que por acaso tombou no chão.

domingo, 11 de novembro de 1990

Miguel Cara de Angel

           No ano de 1967, o guatemalteco Miguel Angel Astúrias recebia o Prêmio Nobel de Literatura
com o romance El Señor Presidente, um livro perfeito e terrível como poucos. Em se tratando da Literatura do Continente, tão pródiga em textos que expressam a violência, trata-se de uma obra que contém, talvez, os textos mais sombrios e cruéis sobre os meandros de uma ditadura e sobre a desintegração física e moral de um cidadão dessa ditadura.

            Entre os muitos personagens do romance, destruídos pela vontade onipresente e absoluta do presidente, um deles, Miguel  Cara de Angel é aquele que  sofre todas as degradações a que podem estar sujeitos os que habitam esses espaços que se constituem “territórios de ninguém”, porque, afinal, são territórios que pertencem a uns poucos. Ele  é belo, rico e tem nas mãos o poder fácil, irresponsável daqueles que aceitam ser cognominados favoritos.

            Pouco se conhece de sua vida a não ser que tem caminho livre junto ao presidente. Também se ignora se é feliz. Porém, no momento em que toma consciência do sentimento por  Camila e em que presencia o seu sofrimento, a sua aproximação da morte, presa no terrível círculo que a envolve, aceita, finalmente, a lucidez da qual, por interesse, até então fugira.

            Passa  a ser, então,  intensamente, dominado pela angústia mas, apenas, nos raros instantes em que o amor lhe permite voltar-se para algo que lhe seja estranho. Ou seja, a angústia que o atormenta é pelo ser que ama, pelo medo de perdê-la, de ter a própria felicidade destruída. O que se passa a seu redor continua a perceber  apenas  como sombra e névoa.

            Ao imaginar a possibilidade de fugir,  apenas pensa em correr, voar, salvar-se. Mas, prisioneiro daquele a quem uma vez salvara a vida, é torturado, atirado sobre o esterco num trem cuja viagem não tem retorno.         Passa anos  no calabouço, incomunicável. Seu corpo sem ar, sem movimento, reumático, padecendo nevralgias errantes, quase cego, se desintegra. A angústia do espaço limitado, da irremediável falta de liberdade, da solidão, não consegue, no entanto, tirar-lhe o alento, mantido pela esperança de rever Camila. Mas, não  apenas essa esperança lhe é arrancada, como a própria imagem que restava dela é enlameada, ultrajada, conspurcada.

            Na imundície, na desolação, no desamparo total do homem que em meio a uma incomensurável miséria, ainda recebe algo para torná-lo mais miserável, - a certeza de uma traição – Miguel Cara de Angel morre.

            O ciclo degradante do usufruto do Poder para a condição de vítima desse mesmo Poder,  se completara.

domingo, 4 de novembro de 1990

A casa


            Ela tinha sessenta e oito anos quando começou a morrer. Era  muito bela, faustosa, rica, imponente. Fora construída por um senador da República, de bela voz e dominado por um incontido fraco pelas mulheres. No jogo da conquista amorosa, lhe era igual recitar os versos de Espronceda para a mulher de um colega do Senado ou para  uma criada. Na casa, ele viveu e seu filhos e netos.

            Das mãos cuidadosas que a planejaram e adornaram com objetos caros e preciosos, a casa passou para outras, indiferentes, que a venderam a estranhos. Começa, então, o seu fim. Arrancam-lhe o mármore das escadas, vendem-lhe a suntuosa porta da entrada, fazem cair o teto e as paredes. Nesses dias que antecedem o seu desaparecimento, em que os operários a invadem, martelando, golpeando, desfazendo, a casa quer falar. Contar dos anos que já passaram, de suas alegrias e tristezas e sustos que  são, também, aqueles sentidos pelos membros da família que nela vivera.

            A partir das peças que descreve – o saguão, os quartos, a sala de jantar – aparecem os personagens e, com eles, as cenas, os hábitos, os dramas, algum fato impossível de esquecer.

            O luxo do casarão se apresenta como o cenário perfeito para o papel que aqueles que o habitam representam: o senador a treinar os seus discursos, diante da estátua do velho fauno, no jardim. O filho Gustavo, formando com a mulher o casal mais chique de seu tempo; Francis, o neto,  que trás a elegância dentro da alma.   E Clara, a mulher, linda e obesa. Fechada, depois de viúva, no quarto japonês cujo estilo, ditado pelos Goncourt irá provocar, anos depois, o desprezo de Francis, a solidão a fará buscar consolo num sem fim de imagens católicas que, então, se acoplam a esse cenário oriental. No amontoado de figuras de gesso, estampas, oleografias,  talhas da Virgem Maria, São José, São Roque, São Judas Tadeu, São Pedro de Alcântara que a aproxima da religiosidade latina, se encontra a única expressão de um sentir próximo do Continente.

            Porque a casa, na sua concepção e nas suas linhas e nos seus detalhes,  copia alguma outra ou algo de alguma outra do Velho Continente  E’como se estivéssemos em Paris, exclamam os visitantes. Impressão que se prolonga nos jardins onde se erguem, entre as plantas, estátuas de inspiração clássica e nas escadarias ornadas de um nicho a abrigar uma cena bíblica;  também, na sala de jantar, magnífica, onde sempre um conviva, ao levantar os olhos para o teto, admirado,  observa: Mas... é um teto italiano!.

            E aí, nessa submissão ao gosto ou ao que se presume ser o gosto de além-mar, estaria contido um dos traços mais profundos dessa elite alienada e a  procurar, alhures, a sua identidade. E a voz do casarão da “calle Florida”, ao esboçar-lhe o perfil no relato dos sucessos que, ao longo dos anos presenciou, espelha à perfeição, as suas imagens ridículas e ultrapassadas  (mas ainda vigentes), sugerindo, então,  umas quantas perguntas a induzir a outras tantas respostas. E, fazendo   com que La casa de Manuel Mujica, publicado em 1954,   seja, na verdade bem mais do que  um  simples livro  “singular e atraente” da Literatura Argentina. 

domingo, 28 de outubro de 1990

Quando o monólogo é preciso


            Isabel e Idolina, Julia e Mercedes. Quatro destinos privados de horizontes numa estrutura social extremamente conservadora e religiosa.

            Ciudad Real se encrava no vale, fundada por espanhóis na Península de Yucatán, próximo à Guatemala. Apesar do nome, é uma pequena cidade, orgulhosa dos que nela nascem e da língua que falam. Suas mulheres, modestas e castas, se encerram nos solares avoengos e os dias amanhecem e anoitecem sem que suceda outra coisa senão suas mudanças de luz. O quê pouco importa para as mulheres que olham a vida através dos cristais das janelas e evitam o sol para preservar a brancura da pele. E, assim pouco importa, também, para Isabel ou Idolina.

            Isabel Zebadua pertence àquelas famílias cujo nome é “um talismã”. Usá-lo, significa prescindir de qualidades pois a sua posse, de per si,  tudo garante: nenhuma crítica pode alcançá-la, nenhum elogio enaltecê-la ainda mais.

            Sem o amor do marido, interessado em qualquer outra, sem o amor da filha, criada por uma ama, ela prefere estar no  quarto de costura, pensando nas suas desditas.Quando delas fala para a filha, não obtém resposta; quando delas fala para o marido, acaba calando. Então, murmura consigo mesma sobre a humilhação de ser  traída com as índias  ou com uma branca sua igual para concluir que, finalmente, nada está a perder porque, há muito, o marido já não lhe pertencia e que, tanto faz que delapide o seu capital porque dela não irá obter ajuda, mais tarde, quando vier pedir.

            Idolina é a filha enferma que jamais abandona o leito. As confidências que a mãe faz, buscando consolo e perdão pelo abandono a que a havia condenado, só obtém, como resposta,  o silêncio. No íntimo, se regozija pelo fracasso amoroso da mãe e se sente vingada de suas ausências, de ter sido delegada a uma índia que não somente a amamentava como lhe dava todos os cuidados . E seus próprios medos e angústias – deseja se queixar, protestar – não têm a quem se dirigir. Enche uma página e outra com sua letra grande e desgovernada, daqueles acostumados a outros afazeres. E’um grito tumultuoso, uma confissão infantil, o último grito de quem se afoga. Quando termina, está ofegante como se tivesse feito um grande esforço físico. Dobra os papéis e os guarda num envelope. Somente então, se dá conta que não tem a quem dirigi-los. Por isso, o destrói na chama da vela.

            Julia é a forasteira que chega na cidade. Não é casada com o homem com quem vive e aspira pertencer ao círculo das senhoras ricas e respeitáveis. Não o consegue nem com a simpatia, nem com a insistência. Somente uma complicada “rede de evoluções e táticas” lhe fazem chegar as visitas que desejara. Mas, nos seus salões, as mínimas normas sociais são desrespeitadas e ela, a anfitriã, mantida fora do círculo das conversações. Quando pretende rompê-lo, aventurando-se numa pergunta, a resposta lhe é dada vagamente ou com impaciência como se a sua curiosidade não fosse lícita nem oportuna. Ao sair a última convidada, Julia mensura, então, seus esforços e os resultados e, sozinha, se pergunta se vale a pena se empenhar tanto  em penetrar num mundo tão fechado, galgar uma hierarquia tão inacessível.

            Mercedes, que na sua juventude ofertava seus favores dentro  de casa, como uma rainha, vai envelhecendo e se perdendo. Um dos homens a quem iniciou nos jogos amorosos, agradecido, a mantém como alcoviteira o que não impede que esteja marginalizado de tudo. Mesmo aqueles que, ainda, a cumprimentam, em lembranças de antigos tempos, o fazem medrosos de serem vistos. O temperamento alegre de Mercedes, porém, não se habitua a esses silêncios, impostos pelas circunstâncias  e, para espantá-los inventa um vago auditório a quem vai contando seu passado e comentando coisas do presente.

            Ou porque não se submetem aos deveres familiares – Isabel não assume os encargos maternos, Idolina ignora o afeto filial – ou porque as normas sociais impedem o acesso ao círculo dos eleitos àquelas considerados marginais – Julia por não ser casada, Mercedes por seu “ofício”- são mulheres condenadas à solidão.

            Personagens de Oficio de tinieblas ( México, 1962), romance que mesclando a ficção e a crônica fala de um mundo que tem sido sempre o mundo dos latino-americanos, dividido  em pobres e ricos, em brancos e índios, em trabalhadores e ociosos. Nesse mundo, os personagens femininos também estão impregnados dessas dicotomias e, ainda,  daquelas  advindas das estruturas familiares e sociais e das relações que nela se estabelecem.

            Qualquer que seja a cor de sua pele, a classe a qual pertence, o poder econômico que possua  esse personagem feminino será mantido, embora tenha voz e queira usá-la, com as palavras na garganta.

            No seu romance, Rosário Castellanos, romancista do Continente, quis livrá-las  do silêncio.

domingo, 21 de outubro de 1990

Da marginalidade e do escrever


            E’na Universidade de Poitiers, a 340 quilômetros de Paris, que se inscreve um dos mais prestigiosos centros de estudos sobre literatura latino-americana. Em 1981, continuação de um programa que já havia sido dedicado a Pablo Neruda, Juan Carlos Onetti, Augusto Roa Bastos, César Vallejo, Graciliano Ramos e Machado de Assis, foi realizado um Colóquio Internacional sobre a obra de Carlos Droguett.

            Extremamente importante pelo número e pelo nível dos trabalhos apresentados e pela documentação sobre o autor, presente ao evento, realizada em vídeo, representou, sobretudo, a partir de uma presença efetiva na Universidade francesa, um marco para a história literária do romancista chileno no que se refere ao que a Literatura Comparada chama “fortuna” de uma obra.

Na verdade, um acréscimo pois textos de Carlos Droguett há muitos anos, já haviam chegado na França. Seus primeiros contos que passaram despercebidos no Chile como, de certo modo e durante muito tempo, todos os seus romances, foram traduzidos por Francis de Miomandre que os considerava admiráveis e os publicou em revistas literárias francesas.

            Mais tarde, em  1977, foi a vez de Eloy, romance publicado na Espanha antes de sê-lo no Chile, ser traduzido para o francês e publicado pela Maspero. E, em 1983, pela Denoël, numa tradução verdadeiramente brilhante de Jean Marc Pelorson, apareceu Patas de perro. E, anunciada para breve, a tradução de El Compadre.

            Até certo ponto, seguindo os passos  dessa trajetória da obra de Carlos Droguett no circuito comercial francês e, logo o acompanhando, a crítica universitária se faz presente. Em 1980, Ana Maria Díaz-Moreno defendeu uma tese sobre Eloy e, agora, bem recentemente ( o trabalho não trás data), uma nova tese é defendida, desta vez sobre Patas de perro, romance considerado por muitos como a obra-prima de Carlos Droguett: Une étude de la marginalité dans Patas de perro, de Carlos Droguett. Seu autor, Jean Paul Audoin, se debruça sobre a marginalidade de Bobi, o personagem principal do romance, num mundo hostil em que prevalecem as normas e as leis. Procura mostrar como a marginalidade é ligada à sociedade da qual o marginal procura fugir e como essa sociedade está na origem do processo de marginalização e com as conseqüências que lhe são inerentes.             Antecedido por um estudo sobre a gênese da história, sobre a solidão que alimenta os dois personagens principais e sobre as buscas de Bobi, uma orientada para a religião, outra para a política, “Escrita e marginalidade” a quarta parta do trabalho se detém em dois aspectos que são de suma importância na obra de Carlos Droguett: o procurar transgredir as normas vigentes na construção do romance e o oferecer um universo romanesco fragmentado através de explosões de palavras que, aparentemente, podem parecer caóticas. Sobretudo, porque nem sempre, os tempos verbais se justapõem e as frases começam onde parecem estar terminando. Este contrariar da lógica, diz Jean Paul Audoin, permite reviver do interior do personagem este fluxo de paixões que nascem e desmaiam, que são gravadas e apagadas. Assim, as impressões  criadas são mais próximas de uma verdade emocional do que qualquer outra escrita em que os esquemas estejam previstos de antemão. Uma desordem que, de certa maneira, se inscreve na natureza e na sociedade: desordem de idéias e de sentimentos que, no entanto, frisa o estudioso francês, são o suporte dessa sociedade normalizada e intolerante. Razão de sobra para que nela existam os oprimidos, os marginalizados.

            E’por eles que o romancista chileno escreve. Em Patas de perro como o demonstrou Jean Paul Adouin, ele modelou a escrita à imagem do seu personagem: marginais ambos. Na sua concepção revolucionária do mundo – de um mundo que ele anseia diferente – a rigidez da escrita deve ser quebrada como devem ser quebrados os laços que aprisionam o homem. E, Jean Paul Adouin cita as palavras que, em 1981, Carlos Droguett pronunciou em Poitiers: ser marginal significa ser livre.

domingo, 14 de outubro de 1990

Os Conquistadores.3


Sou um simples instrumento de umas mãos altas  e distantes, de uma garras, talvez.
                                                                                                          Carlos Droguett           

            Obedeciam às ordens do Rei e inventavam as próprias. Dispunham da vida e dos sonhos dos soldados que comandavam: os capitães.

            Don Juan Núñez de Prado, partindo de Potosi se internara pelas terras do Continente para fundar uma cidade. Duzentos homens o acompanhavam e alguns índios.

            Quando, no desejo de defender a cidade dos ataques dos espanhóis, vindos do Chile ele a mudou de lugar três vezes, teve que enfrentar dissidências dos que não queriam partir, mas se enraizar, simplesmente cuidar de uma árvore, construir os próprios móveis. Capitão, governador da cidade, ele e seus capitães são os instrumentos da Coroa Espanhola e nela buscam as razões para aplicar a justiça. Então, ao desejar refazer a cidade espanhola nas terras da América – vislumbrá-la com as ruas calçadas onde  passem  carruagens cheias de risos femininos e mantilhas  e leques, com as casas de sacadas feitas de ferro e ornadas de  flores – lhes é permitido ignorar os sofrimentos e prender e matar e condenar à morte àqueles que a isso se opõem. Não podemos compreender ninguém, diz o capitão Vásquez. E diz o capitão Juan Núñez de Prado: eu não quero, nem quer o rei, espanhóis sedentários e sim aventureiros, seres infelizes e desenraizados, ardentes, fortes, orgulhosos. E, assim eles deverão permanecer – os doentes, os feridos, os medrosos serão destruídos -  até que a sua vontade determine o assento da cidade quando, então, os sonhos dos soldados e os seus próprios sonhos poderão ser os mesmos. Enquanto tal não acontece, apenas ele, o que ordena, é dono da razão. Uma razão em que se mesclam a obediência às ordens recebidas do Vice-rei, isto é da Coroa, com as ambições e os sonhos que levam Juan Núñez de Prado a ver-se e a seus capitães como a futura nobreza da nova cidade por eles criada.

            Se, no Velho Mundo, interesses temporais bem  precisos se entrelaçaram sempre aos interesses espirituais que procuraram torná-los justificáveis, assim continuou a sê-lo também no Continente pois Deus e o rei vão junto na Conquista desta terra.  Para explicar seus atos, diz Juan Núñez de Prado: estas são as mãos do rei. Para negá-lo, lhe responde o capelão:  e estas são as mãos de Deus . E um e outro se apóiam no verdugo, no garrote, no Santo ofício. Apóiam-se numa justiça que se proclama de origem real e divina.

            Senhores absolutos do destino de seus semelhantes e do universo no qual eles adentram para tomar posse, os capitães duvidam e temem. Duvidam das próprias decisões sem, no entanto, a elas se poderem furtar; temem a traição dos seus ou o gesto que irá apunhalar um moribundo. Mergulhados numa solidão tão grande como o espaço que os rodeia, eles transferiram, no desalento ou na alegria, para outras mãos ( certamente, para outras garras) a conquista do Continente.

            Seus feitos – heroísmo e miséria – foram resgatados por Carlos Droguett. Sem se afastar do que narra a crônica da Conquista da América, o escritor chileno, num dia de maio de 1967, decidiu trazer esses conquistadores e o mundo que conquistaram, novamente para a vida. E escreveu um dos mais belos romances de que pode se orgulhar a Literatura do Continente:  El hombre que trasladaba las ciudades ( Barcelona, Noguer, 1973).  

Carlos Droguett, ex-exilado do governo Pinochet, completará 78 anos no dia 15 de outubro, na Suíça.

 

 

 

 

 

 

domingo, 7 de outubro de 1990

Os Conquistadores. 2


O rei precisa soldados, cada vez, mais soldados, mais cruzes.  Carlos Droguett           

            Muitos deles são sentinelas cujos passos ressoam, guardando a cidade e a casa do Governador: batem na terra com negligência, sem olhar para parte alguma como cegos ou adormecidos.  Outros, muitos, presença constante, embora registrada apenas por vozes, gritos, queixas, murmúrios, cantos. São imagens  que se diluem na cor da noite, na chuva, na névoa. Uma e outra vez fixados numa atitude, num gesto, numa expressão. E’um soldados que dobra a bandeira, um outro que dá golpes de martelo na parede de uma casa, ainda o que abate ramos das árvores ou aquele que bebe água na fonte. São mãos agarradas nas espadas e lancas e arcabuzes e punhais e adagas ou simplesmente empunhadas num pequeno gesto dramático e incompleto.  São olhos que riem ou que tem medo,  são dentes ávidos, rostos suados e envelhecidos.

            Eles avançam para conquistar a América. Da Espanha, eles vieram  Cavalheiros empobrecidos e sonhadores, lustrosos de miséria, perseguidos e sozinhos para serem soldados. El hombre que trasladaba las ciudades (Noguer, Barcelona, 1973) é, também,  a sua saga. Uma saga de heróis sem história que, em busca de um futuro, desembarcaram neste outro lado do mar.

            No romance de Carlos Droguett, a crueldade não está, apenas, diante da resistência encontrada no Continente, mas na própria ação empreendida. Parte da expedição formada para fundar uma cidade, o homens-soldado, foi vítima  das agruras do traslado, do choque de ambições daqueles a quem estavam subordinados.

            Entre o riso e a esperança, alimentando-se de sonho e de imagens do passado, repetindo rituais e obediências que trouxeram com eles, percorrem o caminho que lhe traçam. O Continente vai sendo dilacerado por seus instrumentos que abem sulcos na terra, derrubam árvores  e por suas armas.

            Sujos e desamparados, jovens e alegres, os espanhóis vão se perdendo. Houve os que adoeceram, os que foram feridos ou presos ou condenados à morte. E, houve os que passaram frio. Doentes, febris, cheios de dores, cheios de tosses, desfigurados, terrivelmente brancos, olhos enormes, cheios de lágrimas, diante da falta de cuidados em que se encontravam e diante da ameaça de serem abandonados quando da mudança da cidade, só podiam ter esperanças na religião. Feridos, tem o peito ensangüentado no uniforme feito pedaços ou o braço maltratado, escorrendo sangue. Coxos ou cegos, sabem que isso os condena à morte porque para a nova cidade não irão os imperfeitos. Condenados, perto da forca já são incapazes de qualquer esforço, mesmo o de chorar de medo ou de piedade. E, morrendo longe da terra que lhes viu a infância, nela não terão, ao menos uma lápide que lhes guarde o nome.

            São os soldados da Conquista. Carlos Droguett em El hombre que trasladaba las ciudades não apenas os redime do esquecimento como -  sem que nisso esteja contido um perdão – os enumera, também, como vítimas dessa conquista.

domingo, 30 de setembro de 1990

Os Conquistadores.1

            Na Espanha, as terras áridas e a aridez mental dos que tudo possuíam os havia relegado a pobres ofícios: eram guardadores de porcos, eram “lavradores de terra má” e, ao conseguir-lhes os frutos, esses já se lhes escapavam das mãos, pertencendo aos outros, antes mesmo de serem colhidos.

            Da América, esperavam riquezas. O ouro, quase sempre se diz, é o que eles vinham buscar e para isso atravessavam os mares.  Entre os que sonhavam, no entanto, haveria, talvez, aqueles que apenas teriam desejado um pedaço de terra onde encravar raízes o que lhes tinha sido, até, então, negado. Poucos são os que falam desses sonhadores, se é que eles existiram.

            Em El hombre que trasladaba las ciudades (Noguer, 1973) de Carlos Droguett, eles são personagens de ficção. Pobres homens pobres, fundadores de uma cidade da qual acreditavam possuir uma parcela. Construíram a casa, plantaram o jardim e o pomar. Então, o Governador deu ordem de mudança. Deveriam despregar portas e janelas, destruir o espaço construído, aceitar que desaparecesse o universo que, em meio a penas, medos, carências, haviam, finalmente, conseguido criar. Rebelaram-se contra as ordens de partir para mudar o assento da cidade. Negaram-se a assinar a notificação: não assino, me matem, me enforquem, me amarrem na fogueira, mas não assino, não irei embora, não abandonarei meus cavalos, nem minhas flores, quero cuidar de minhas árvores, um deles grita.

            E, na luta entre a autoridade que se quer oriunda de Deus e do Rei e a vontade de quem deseja possuir uns metros de chão e uma casa, a destruição. Jogados nas terras do Continente, objetos que poderiam conter a civilização: alguma roupa, fivelas e botões, pedaços de papel, um livro desfeito, um baralho, gavetas abertas, mapas, um pequeno martelo.

            Na resistência passiva,  aquele  que ignora ordens e senta-se para comer. Diante do prato de sopa e do copo de vinho, o cão a seus pés, ele conhece o preço da desobediência.  De crueldade extrema  é a cena: o Governador ao entrar e vê-lo obstinado, sabe que essa obstinação, em se opor à mudança, o marcará para a morte. O homem,  embora incrédulo, embora indignado – me salvar, deixando minhas madeiras, meus móveis? também sabe que na decisão de permanecer na casa que havia construído, o seu destino fora selado.    A autoridade, convicta de que está  baseada em princípios ( bons ou maus, válidos ou não), deve se fazer valer. A escolha do indivíduo se firma na crença de um direito conquistado e não deve ceder.

            Na sua casa, diante do prato de sopa, o homem luta para perder. A vida e o pouquinho que, por  pouco tempo, lhe fora dado possuir.

            No Continente, de vastas terras e ( digamos) de inesgotáveis riquezas, o Velho Mundo renascia impávido e tirano.

domingo, 23 de setembro de 1990

Eles são diferentes

            País sem poder de decisão econômica é país sem poder de decisão cultural.

         Com estas palavras, terríveis, na medida em que expressam não somente a realidade do Brasil, mas a de todos os países do Continente que se situam ao sul do Rio Grande, inicia José Ramos Tinhorão o seu artigo “Pesquisador brasileiro sofre!” publicado no D.O.  Leitura  de 9 de setembro passado. Um artigo lúcido e extremamente oportuno como todos aqueles que dizem verdades, buscando soluções. Sua leitura será de real proveito para o pesquisador que, mais uma vez, irá constatar que não está só nesse perseguir o acervo que necessita para  seu trabalho, nesse enfrentar dificuldades originadas de um meio cético ou hostil, nessa espera, após o trabalho terminado, de um editor que, geralmente, prefere os sucessos estrangeiros freqüentemente de qualidade duvidosa.  E, mais do que proveito, de imprescindível leitura para os que gerem os órgãos responsáveis pela realização de pesquisas no país que, salvo as sempre honrosas exceções, inexplicavelmente, parecem ignorar o que acontece na área. Inclusive que, talvez, o maior problema seja a falta de ética ( ou, simplesmente de honestidade) que leva muitos daqueles que se intitulam pesquisadores a usufruírem de bolsas de estudo e do privilégio de se ausentarem de suas instituições sem se sentirem obrigados a prestar contas, isto é, apresentarem concluído o trabalho que pretenderam e com o qual se comprometeram .

            Diante de tal quadro, tornam-se valiosos para uma Instituição, os pesquisadores que apresentam o resultado de sua pesquisa, mormente quando ela se volta para temas nacionais.       

            Ao traçar a trajetória do grupo étnico  “brasileiro” em dois municípios do oeste catarinense, voltado à atividade extrativa da erva-mate, a tese de Mestrado de Arlene Renk que acaba de ser defendida no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, procurou respostas para um aspecto da realidade nacional.

            Num trabalho de 415 páginas, baseado em fontes primárias, material bibliográfico e em pesquisa de campo, a autora procurou reconstruir o trajeto da expropriação do “brasileiro” e sua transformação em ervateiro/tarefeiro o que levou, também, a tratar de sua diferenciação étnica.

            Uma trajetória que se inicia nas terras dos municípios de Ponte Serrada  e Vargeão no oeste catarinense. Pertencentes ao Estado, eram terras habitadas por “brasileiros”( também designados por caboclos) que dela se apropriavam espontaneamente. Escolhiam o lugar, erguiam o seu rancho, plantavam sua roça, criavam seus animais.  E, dali, se mudavam quando assim lhes aprouvesse.

            Nas primeiras décadas deste século, essas terras foram vendidas e passaram às mãos de colonos de origem italiana, vindo do Rio Grande do Sul. Os “brasileiros” perderam seu espaço e seu modo tradicional de vida foi desestruturado. Diante da nova realidade instaurada, a industrialização da erva-mate sob a iniciativa dos recém-chegados na região,  houve um novo reagrupamento dos “brasileiros”, agora, para extrair a erva-mate. Passaram a ser ervateiros/tarefeiros o que significava viver em barraca no meio do mato, sem grandes pertences e sem instalações sanitárias, realizar uma tarefa sazonal  quando o tempo o permite, estar impossibilitado de oferecer continuidade de  estudos aos filhos e sofrer de doenças que a falta de conforto mínimo origina. E, ao se esgotar o tempo de corte da erva-mate, dedicar-se a biscates ou à mendicância. Pela  forma como constituem família (aceitação fácil de uniões consuetudinárias), pelo fato de se afastarem da religião católica (por falta de fé, por enfrentamento com o catolicismo oficial, pela utilização do ritual popular); pela desconfiança em relação à Escola ( considerar que alfabetizar-se e conhecer as quatro operações é suficiente pois muito estudo atrapalha; pela descrença na Medicina (  manifestada na indocilidade em seguir os tratamentos prescritos e na convicção de que os remédios são menos eficazes do que os benzimentos); pela opção em se refugiar no passado ( considerado como  tempo de fartura e liberdade  e negação de  preparar o futuro), os “brasileiros”se aprisionam em fronteiras estanques.

            Aos olhos  dos italianos, possuidores do “fascínio da terra” que os conduz ao respeito pela família monogâmica e à preocupação em assegurar o futuro dos filhos, transmitindo-lhes valores em que o esforço e o trabalho são privilégios, os “brasileiros”só servem para cortar erva-mate porque somente isso sabem fazer.

            Estão marginalizados da posse da terra, encurralados numa única possibilidade de trabalho, prisioneiros de suas atitudes e práticas e de sua visão de mundo, os “brasileiros”, tarefeiros/ervateiros passaram a ser diferentes a partir da chegada dos outros.

            “A luta da erva: um ofício étnico da “nação brasileira”no oeste catarinense” dá conta de sua peculiaridades, oferece muitas respostas e possibilita outras tantas indagações. O que, no entanto, é importante neste trabalho é a postura da pesquisadora. Não se afastando das leis que regem os trabalhos acadêmicos e científicos, Arlene Renk trás esse homem que estudou e seu destino para a outra realidade do país: aquela que poderá transformar esse destino.

            Nos países do Continente, aí estaria a verdadeira resposta para as perguntas.