domingo, 4 de novembro de 1990

A casa


            Ela tinha sessenta e oito anos quando começou a morrer. Era  muito bela, faustosa, rica, imponente. Fora construída por um senador da República, de bela voz e dominado por um incontido fraco pelas mulheres. No jogo da conquista amorosa, lhe era igual recitar os versos de Espronceda para a mulher de um colega do Senado ou para  uma criada. Na casa, ele viveu e seu filhos e netos.

            Das mãos cuidadosas que a planejaram e adornaram com objetos caros e preciosos, a casa passou para outras, indiferentes, que a venderam a estranhos. Começa, então, o seu fim. Arrancam-lhe o mármore das escadas, vendem-lhe a suntuosa porta da entrada, fazem cair o teto e as paredes. Nesses dias que antecedem o seu desaparecimento, em que os operários a invadem, martelando, golpeando, desfazendo, a casa quer falar. Contar dos anos que já passaram, de suas alegrias e tristezas e sustos que  são, também, aqueles sentidos pelos membros da família que nela vivera.

            A partir das peças que descreve – o saguão, os quartos, a sala de jantar – aparecem os personagens e, com eles, as cenas, os hábitos, os dramas, algum fato impossível de esquecer.

            O luxo do casarão se apresenta como o cenário perfeito para o papel que aqueles que o habitam representam: o senador a treinar os seus discursos, diante da estátua do velho fauno, no jardim. O filho Gustavo, formando com a mulher o casal mais chique de seu tempo; Francis, o neto,  que trás a elegância dentro da alma.   E Clara, a mulher, linda e obesa. Fechada, depois de viúva, no quarto japonês cujo estilo, ditado pelos Goncourt irá provocar, anos depois, o desprezo de Francis, a solidão a fará buscar consolo num sem fim de imagens católicas que, então, se acoplam a esse cenário oriental. No amontoado de figuras de gesso, estampas, oleografias,  talhas da Virgem Maria, São José, São Roque, São Judas Tadeu, São Pedro de Alcântara que a aproxima da religiosidade latina, se encontra a única expressão de um sentir próximo do Continente.

            Porque a casa, na sua concepção e nas suas linhas e nos seus detalhes,  copia alguma outra ou algo de alguma outra do Velho Continente  E’como se estivéssemos em Paris, exclamam os visitantes. Impressão que se prolonga nos jardins onde se erguem, entre as plantas, estátuas de inspiração clássica e nas escadarias ornadas de um nicho a abrigar uma cena bíblica;  também, na sala de jantar, magnífica, onde sempre um conviva, ao levantar os olhos para o teto, admirado,  observa: Mas... é um teto italiano!.

            E aí, nessa submissão ao gosto ou ao que se presume ser o gosto de além-mar, estaria contido um dos traços mais profundos dessa elite alienada e a  procurar, alhures, a sua identidade. E a voz do casarão da “calle Florida”, ao esboçar-lhe o perfil no relato dos sucessos que, ao longo dos anos presenciou, espelha à perfeição, as suas imagens ridículas e ultrapassadas  (mas ainda vigentes), sugerindo, então,  umas quantas perguntas a induzir a outras tantas respostas. E, fazendo   com que La casa de Manuel Mujica, publicado em 1954,   seja, na verdade bem mais do que  um  simples livro  “singular e atraente” da Literatura Argentina. 

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