domingo, 11 de novembro de 1990

Miguel Cara de Angel

           No ano de 1967, o guatemalteco Miguel Angel Astúrias recebia o Prêmio Nobel de Literatura
com o romance El Señor Presidente, um livro perfeito e terrível como poucos. Em se tratando da Literatura do Continente, tão pródiga em textos que expressam a violência, trata-se de uma obra que contém, talvez, os textos mais sombrios e cruéis sobre os meandros de uma ditadura e sobre a desintegração física e moral de um cidadão dessa ditadura.

            Entre os muitos personagens do romance, destruídos pela vontade onipresente e absoluta do presidente, um deles, Miguel  Cara de Angel é aquele que  sofre todas as degradações a que podem estar sujeitos os que habitam esses espaços que se constituem “territórios de ninguém”, porque, afinal, são territórios que pertencem a uns poucos. Ele  é belo, rico e tem nas mãos o poder fácil, irresponsável daqueles que aceitam ser cognominados favoritos.

            Pouco se conhece de sua vida a não ser que tem caminho livre junto ao presidente. Também se ignora se é feliz. Porém, no momento em que toma consciência do sentimento por  Camila e em que presencia o seu sofrimento, a sua aproximação da morte, presa no terrível círculo que a envolve, aceita, finalmente, a lucidez da qual, por interesse, até então fugira.

            Passa  a ser, então,  intensamente, dominado pela angústia mas, apenas, nos raros instantes em que o amor lhe permite voltar-se para algo que lhe seja estranho. Ou seja, a angústia que o atormenta é pelo ser que ama, pelo medo de perdê-la, de ter a própria felicidade destruída. O que se passa a seu redor continua a perceber  apenas  como sombra e névoa.

            Ao imaginar a possibilidade de fugir,  apenas pensa em correr, voar, salvar-se. Mas, prisioneiro daquele a quem uma vez salvara a vida, é torturado, atirado sobre o esterco num trem cuja viagem não tem retorno.         Passa anos  no calabouço, incomunicável. Seu corpo sem ar, sem movimento, reumático, padecendo nevralgias errantes, quase cego, se desintegra. A angústia do espaço limitado, da irremediável falta de liberdade, da solidão, não consegue, no entanto, tirar-lhe o alento, mantido pela esperança de rever Camila. Mas, não  apenas essa esperança lhe é arrancada, como a própria imagem que restava dela é enlameada, ultrajada, conspurcada.

            Na imundície, na desolação, no desamparo total do homem que em meio a uma incomensurável miséria, ainda recebe algo para torná-lo mais miserável, - a certeza de uma traição – Miguel Cara de Angel morre.

            O ciclo degradante do usufruto do Poder para a condição de vítima desse mesmo Poder,  se completara.

Nenhum comentário:

Postar um comentário