O
mundo não o deixou ficar indiferente. Tanto fez, tanto insistiu que Mário
Quintana foi obrigado a percebê-lo e escreveu: Não sei por que diziam que uma humilde cidadezinha / Tinha, por exemplo, umas quinze mil almas.../ Almas?
Hoje, o que elas têm são quinze mil bocas
,/ Loucas de fome. O título desse poema é “Censo demográfico”.
Como o primeiro verso de “Um simples lugar comum” assim, tão incisivo sobre a fome do
Continente (Todos esses roubos, todos
esses assassinatos vem apenas da fome)
é um momento incomum na obra do poeta.
Esses dois poemas, inéditos como os outros setenta e três, formam o
livro Velório sem defunto que a Mercado Aberto, de Porto Alegre,
acaba de publicar.
Dos
poemas, alguns são muito pequenos, como “Amanhecer”, feito de dois versos: O sol derrama, na calçada ,/ A sua bela, matinal urinada. Outros, são mais longos, variam entre nove e
doze e, só excepcionalmente, quinze versos. Como, por vezes, se formam de
versos longos (mais de vinte sílabas)
inspiraram, sem dúvida, essa composição
gráfica que rompe com o esquema tradicional de leitura uma vez que, para
realizá-lo, o livro deve ser folheado de baixo para cima ao invés de sê-lo da direita para a esquerda. E apenas
nas suas páginas ímpares.
O
gesto, prazerosamente inusitado para o ato de ler, busca, no entanto, o
conhecido gosto da poesia de Mário Quintana e o encontra. A poesia que ele
arranca do cotidiano ampliada em
lembranças e em descobertas – como sempre tem feito – e continua a se
contaminar de interrogações e de certezas que são as interrogações e as
certezas dos humanos ou de alguns privilegiados humanos.
É
uma mesinha de pinho; a empada de
camarão, sem camarões; é a perda de um amor adolescente; a figura do avô para
os olhos infantis; Aquela janela acesa/ No casario/Sou eu..., uma descoberta acaso
flaubertiana que irrompe no poema “Noturno”;
as perguntas sobre a vida e sobre
o seu sentido; a curiosidade em saber
qual é o seu melhor poema; e aquela relacionada com o outro ou com si mesmo: E como fazer para que não me esqueças/ (ou
eu não te esqueça...).
E,
as incertezas. Onde cabem Deus, Cristo e o amor. Um Deus que, para o poeta
nunca existiu e que, de vez em quando, lá está, presença viva, num verso. Um
Cristo que, partindo da terra a libertaria de proibições. Amores que são
ausências, abandonos.
Um
mundo espiritual (alguém diria) de negativas. Para fazê-lo viver, a poesia.
Nela, o tempo não existe diz Mário Quintana. Nela, tudo permanece, ele diz. E
nessa Arte Poética que se insinua de vez
em quando nos poemas, ele constata: Esses
poetas que tudo dizem / Nada conseguem dizer: / Estão fazendo apenas relatórios....
Mestre
de ligeiros tons, de palavras poucas, de expressão ironicamente ingênua, Mário
Quintana, um terremoto na alma, afirma que Nada
do exterior me acontece.
E,
desse mundo que nos rodeia, ele nada (ou
quase nada) conta. As vezes, apenas diz de um tom argentino:
Nos solenes banquetes de próceres internacionais
Nos solenes banquetes de próceres internacionais
- em especial sobre
desarmamentos -
O aparte
mais espontâneo
É’ o riso de prata de uma colherinha
Que por acaso tombou no chão.

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