domingo, 18 de novembro de 1990

"Nada do exterior me acontece"

            O mundo não o deixou ficar indiferente. Tanto fez, tanto insistiu que Mário Quintana foi obrigado a percebê-lo e escreveu: Não sei por que diziam que uma humilde cidadezinha / Tinha, por exemplo, umas quinze mil almas.../ Almas? Hoje, o que elas têm são quinze mil bocas ,/ Loucas de fome.  O título desse poema é “Censo demográfico”. Como o primeiro verso de “Um simples lugar comum”  assim, tão incisivo sobre a fome do Continente (Todos esses roubos, todos esses assassinatos vem apenas da fome) é um momento incomum na obra do poeta.  Esses dois poemas, inéditos como os outros setenta e três, formam o livro Velório sem defunto que a Mercado Aberto, de Porto Alegre, acaba  de publicar.
 
            Dos poemas, alguns são muito pequenos, como “Amanhecer”, feito de dois versos: O sol derrama, na calçada ,/ A sua bela, matinal urinada.  Outros, são mais longos, variam entre nove e doze e, só excepcionalmente, quinze versos. Como, por vezes, se formam de versos  longos (mais de vinte sílabas) inspiraram, sem  dúvida, essa composição gráfica que rompe com o esquema tradicional de leitura uma vez que, para realizá-lo, o livro deve ser folheado de baixo para cima ao invés  de sê-lo da direita para a esquerda. E apenas nas suas páginas ímpares.

            O gesto, prazerosamente inusitado para o ato de ler, busca, no entanto, o conhecido gosto da poesia de Mário Quintana e o encontra. A poesia que ele arranca do cotidiano  ampliada em lembranças e em descobertas – como sempre tem feito – e continua a se contaminar de interrogações e de certezas que são as interrogações e as certezas dos humanos ou de alguns privilegiados humanos.

            É uma mesinha de pinho;  a empada de camarão, sem camarões; é a perda de um amor adolescente; a figura do avô para os olhos infantis;  Aquela janela acesa/ No casario/Sou eu..., uma descoberta acaso flaubertiana que irrompe no poema “Noturno”;  as perguntas sobre a vida  e sobre o seu sentido;  a curiosidade em saber qual é o seu melhor poema; e aquela relacionada com o outro ou com si mesmo: E como fazer para que não me esqueças/ (ou eu não te esqueça...).

            E, as incertezas. Onde cabem Deus, Cristo e o amor. Um Deus que, para o poeta nunca existiu e que, de vez em quando, lá está, presença viva, num verso. Um Cristo que, partindo da terra a libertaria de proibições. Amores que são ausências, abandonos.

            Um mundo espiritual (alguém diria) de negativas. Para fazê-lo viver, a poesia. Nela, o tempo não existe diz Mário Quintana. Nela, tudo permanece, ele diz. E nessa Arte Poética que se insinua de vez  em quando nos poemas, ele constata: Esses poetas que tudo dizem / Nada conseguem dizer: / Estão fazendo apenas relatórios....

            Mestre de ligeiros tons, de palavras poucas, de expressão ironicamente ingênua, Mário Quintana, um terremoto na alma, afirma que Nada do exterior me acontece.

            E, desse mundo que nos rodeia,  ele nada (ou quase nada) conta. As vezes, apenas diz de um tom argentino:

                        Nos solenes banquetes de próceres internacionais
                        - em especial sobre desarmamentos -
                        O aparte mais espontâneo
                        É’ o riso de prata de uma colherinha
                        Que por acaso tombou no chão.

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