domingo, 2 de dezembro de 1990

Olhos de menina

            Inserido num texto que narra o cotidiano de uma menina, o atentado do dia 9 de abril de 1948, em Bogotá, e os acontecimentos que a ele se seguiram.

            A narração – construída em pequenos textos objetivos e sintéticos, antecedidos de uma marcação de tempo precisa – se inicia com um fato aparentemente sem importância, a chegada de Jorge Eliécer Gaitán a seu escritório às  oito e trinta da manhã.  Continua em mais nove parágrafos até chegar às quatorze horas e cinco minutos, quando morre, vítima de um atentado político, assassinado, como disse um homem do povo, por um  “João Ninguém”.

            No romance, são diferentes vozes que se entrelaçam para reconstruir esse episódio de violência e a violência que dele se originou. E o que aconteceu adquire distintos tons: a primeira dama do país se confessando “desagradavelmente surpresa” ao saber da morte de Gaitán; uma senhora da elite econômica se lamentando de que as coisas  estejam acontecendo exatamente no dia em que iria se apresentar no teatro Colón um afamado cantor; Sabina, uma empregada doméstica, murmura rezas e  acende velas a mando da patroa. E o jovem do povo, levado de roldão à luta armada, testemunhando o horror da frente de combate. Entre essas vozes e tantas outras, a de Ana. Ela  está no terceiro ano da escola primária, já sabe ler e somar. Em meio aos interesses próprios de sua idade ( deliciar-se com goiabas, ganhar a medalha de primeiro lugar, assistir filmes do Gordo e o Magro, comer a merenda), participa, ainda que protegida pela distância, do medo e das dúvidas que dominam a família e a cidade.

            Na escola, as freiras, nervosas  mudam as normas no que se refere à ida para casa: que as meninas não formem fila por ano, como sempre mas, a partir da direção da cidade onde moram; que as mais velhas cuidem das menores e que tão logo saiam do colégio corram o mais depressa possível. É claro que, no lufa-lufa, houve quem deixasse cair os cadernos e quem tivesse medo de que lhe matassem o pai.

            Para Ana, ao chegar em casa, correndo, as reprimendas: como dar ponta-pé no portão? Não lhe ensinaram que se toca a campainha? Ou, ao pedir, faminta, a merenda, receber como resposta que não é hora  de pensar em merenda. E, incompreensível para ela, a incoerência dos adultos  ao determinarem que o momento era grave demais  para lhe matar a fome enquanto, nervosamente, providenciam a compra de muitos gêneros alimentícios antes que a turba saqueie tudo.

            Assim, enquanto a cidade é saqueada, enquanto a multidão se embebeda e cadáveres se espalham pelo chão, enquanto a rádio incita o povo às armas, as perguntas de Ana  vão ficando sem resposta. Somente se lembram dela para  lhe mandar tirar o uniforme.

            Sem muito entender do que se passa – a morte do chefe do “grande Partido Liberal”, as cabeças penduradas nos postes, o medo dos adultos – os sete ou oito anos de Ana darão  o testemunho de um caos que foi vivenciado por Alba Lúcia Angel, romancista colombiana nascida em 1939.

            Ao escrever, entre 1971 e 1975, Estaba la pájara pinta sentada em el verde limón, ela retoma as questões, cujas respostas, provavelmente, também foram escamoteadas quando tinha a idade da sua personagem. E se inscreve entre os escritores que assumem um compromisso com a realidade de seu país, buscando novas formas que possibilitem a compreensão de sua história.

            Daí  esse seu romance conter não somente o atentado do dia 9 de abril de 1948, inserido no cotidiano de uma menina, mas, talvez,  principalmente, o cotidiano de uma menina inserido na violência instaurada, em Bogotá, no dia 9 de abril de 1948.

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