domingo, 23 de setembro de 1990

Eles são diferentes

            País sem poder de decisão econômica é país sem poder de decisão cultural.

         Com estas palavras, terríveis, na medida em que expressam não somente a realidade do Brasil, mas a de todos os países do Continente que se situam ao sul do Rio Grande, inicia José Ramos Tinhorão o seu artigo “Pesquisador brasileiro sofre!” publicado no D.O.  Leitura  de 9 de setembro passado. Um artigo lúcido e extremamente oportuno como todos aqueles que dizem verdades, buscando soluções. Sua leitura será de real proveito para o pesquisador que, mais uma vez, irá constatar que não está só nesse perseguir o acervo que necessita para  seu trabalho, nesse enfrentar dificuldades originadas de um meio cético ou hostil, nessa espera, após o trabalho terminado, de um editor que, geralmente, prefere os sucessos estrangeiros freqüentemente de qualidade duvidosa.  E, mais do que proveito, de imprescindível leitura para os que gerem os órgãos responsáveis pela realização de pesquisas no país que, salvo as sempre honrosas exceções, inexplicavelmente, parecem ignorar o que acontece na área. Inclusive que, talvez, o maior problema seja a falta de ética ( ou, simplesmente de honestidade) que leva muitos daqueles que se intitulam pesquisadores a usufruírem de bolsas de estudo e do privilégio de se ausentarem de suas instituições sem se sentirem obrigados a prestar contas, isto é, apresentarem concluído o trabalho que pretenderam e com o qual se comprometeram .

            Diante de tal quadro, tornam-se valiosos para uma Instituição, os pesquisadores que apresentam o resultado de sua pesquisa, mormente quando ela se volta para temas nacionais.       

            Ao traçar a trajetória do grupo étnico  “brasileiro” em dois municípios do oeste catarinense, voltado à atividade extrativa da erva-mate, a tese de Mestrado de Arlene Renk que acaba de ser defendida no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, procurou respostas para um aspecto da realidade nacional.

            Num trabalho de 415 páginas, baseado em fontes primárias, material bibliográfico e em pesquisa de campo, a autora procurou reconstruir o trajeto da expropriação do “brasileiro” e sua transformação em ervateiro/tarefeiro o que levou, também, a tratar de sua diferenciação étnica.

            Uma trajetória que se inicia nas terras dos municípios de Ponte Serrada  e Vargeão no oeste catarinense. Pertencentes ao Estado, eram terras habitadas por “brasileiros”( também designados por caboclos) que dela se apropriavam espontaneamente. Escolhiam o lugar, erguiam o seu rancho, plantavam sua roça, criavam seus animais.  E, dali, se mudavam quando assim lhes aprouvesse.

            Nas primeiras décadas deste século, essas terras foram vendidas e passaram às mãos de colonos de origem italiana, vindo do Rio Grande do Sul. Os “brasileiros” perderam seu espaço e seu modo tradicional de vida foi desestruturado. Diante da nova realidade instaurada, a industrialização da erva-mate sob a iniciativa dos recém-chegados na região,  houve um novo reagrupamento dos “brasileiros”, agora, para extrair a erva-mate. Passaram a ser ervateiros/tarefeiros o que significava viver em barraca no meio do mato, sem grandes pertences e sem instalações sanitárias, realizar uma tarefa sazonal  quando o tempo o permite, estar impossibilitado de oferecer continuidade de  estudos aos filhos e sofrer de doenças que a falta de conforto mínimo origina. E, ao se esgotar o tempo de corte da erva-mate, dedicar-se a biscates ou à mendicância. Pela  forma como constituem família (aceitação fácil de uniões consuetudinárias), pelo fato de se afastarem da religião católica (por falta de fé, por enfrentamento com o catolicismo oficial, pela utilização do ritual popular); pela desconfiança em relação à Escola ( considerar que alfabetizar-se e conhecer as quatro operações é suficiente pois muito estudo atrapalha; pela descrença na Medicina (  manifestada na indocilidade em seguir os tratamentos prescritos e na convicção de que os remédios são menos eficazes do que os benzimentos); pela opção em se refugiar no passado ( considerado como  tempo de fartura e liberdade  e negação de  preparar o futuro), os “brasileiros”se aprisionam em fronteiras estanques.

            Aos olhos  dos italianos, possuidores do “fascínio da terra” que os conduz ao respeito pela família monogâmica e à preocupação em assegurar o futuro dos filhos, transmitindo-lhes valores em que o esforço e o trabalho são privilégios, os “brasileiros”só servem para cortar erva-mate porque somente isso sabem fazer.

            Estão marginalizados da posse da terra, encurralados numa única possibilidade de trabalho, prisioneiros de suas atitudes e práticas e de sua visão de mundo, os “brasileiros”, tarefeiros/ervateiros passaram a ser diferentes a partir da chegada dos outros.

            “A luta da erva: um ofício étnico da “nação brasileira”no oeste catarinense” dá conta de sua peculiaridades, oferece muitas respostas e possibilita outras tantas indagações. O que, no entanto, é importante neste trabalho é a postura da pesquisadora. Não se afastando das leis que regem os trabalhos acadêmicos e científicos, Arlene Renk trás esse homem que estudou e seu destino para a outra realidade do país: aquela que poderá transformar esse destino.

            Nos países do Continente, aí estaria a verdadeira resposta para as perguntas.

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