domingo, 28 de dezembro de 2003

O almoço 1

            Do mundo que ela quis fugir, lembra os cenários. Esse quarto da casa da avó onde, por vezes, dormia, móveis de pau marfim – guirlandas entalhadas na cabeceira da cama, pequenos laços, flores. Psichê com espelho de três faces, escrivaninha, cortinado de tule, caindo do teto. E as bandejas de prata, os compridos vasos com flores, os aparadores de estilo da casa da mãe, cujos desejos (fontes, pérgulas de mármore, empregado de jaqueta com botões dourados para abrir o portão, casamento da filha numa igreja decorada com lírios e camélias, quatro meninas da família, vestidas de rosa pálido, abrindo o cortejo que passaria entre senhoras de lornhão a elogiar a noiva, o bom gosto do vestido, a distinção da mãe, a estirpe dos padrinhos) não levavam em consideração a situação difícil do marido a pagar dívidas de outros por letras que endossara.


            Na mediocridade de sua vida – casar-se à revelia da família não lhe fora proveitoso –, procura mostrar à mãe quando, por uma vez, a visita no Rio de Janeiro, um ambiente agradável, padrão ideal de vida para as jovens bem nascidas [...].Também, faz um esforço para conviver, ainda que por pouco tempo, com a família ao ir a São Paulo para um enterro. Difícil lhe resulta escutar o que dizem os primos e o que diz desse convívio, mostra o lamentável e o ridículo dos que se acreditam superiores aos demais, não parecendo, porém, saber, exatamente, em que.

            Nesse relato que, então, faz,  mal se desenham as primas: Maria Elisa com sua beleza de governanta belga, Dinah tão gorda, quase irreconhecível. Distantes pelo tempo que passou e pelos rumos diferentes que seguiram, o passado em comum não é suficiente para um reencontro, marcado pela impossibilidade de comunicação. Tento conversar, ela diz  mas sinto a boca presa por nervos que a repuxam, silenciando-me. Cheia de significados, então, a descrição do almoço que reúne a família. Servido às duas horas da tarde de um domingo, na mesa, toalha de linho irlandês, bordada à mão, tendo, no centro, tulipas alaranjadas. E uma abundância na qual se mesclam a salada de maionese, enfeitada com tomates recheados, ovos cozidos, fatias de rosbife, torta de camarão, risoto, pernil com farofa, ameixa preta e abacaxi passados na chapa, vagem e cenoura e salada de pepino em pequena salva de cristal, virado de feijão com lingüiça calabresa. O parágrafo que se lhe segue, é uma espécie de título, A família está reunida, ironicamente anunciando os diálogos e o universo no qual eles se inscrevem. Rostos parecidos, tiques semelhantes. Já não há parentescos mencionados, tampouco nomes. Apenas breves frases, curtas seqüências que expõem as opiniões de uma classe que se quer de elite e denota viver no mais exíguo dos mundos: observações sobre comidas (Faz referência, com certa languidez, a pratos de outros domingos, Recorda-se um passado strogonoff, Eu faço essa torta com galinha, também fica gostosa), formaturas, necessidade de chuva, empregada doméstica. Estreiteza de um universo completado nas sequências seguintes,  que se alternam para esboçar, já agora, os mundos que se opõem. Um deles, presente nas palavras dos convivas, feitas de saudosismo (Eu tinha quem fizesse meus cachos, quem calçasse meus sapatos), fórmulas para emagrecer (Esses remédios descontrolam os nervos. O negócio é regime, passar fome:, Já ouvi falar nesse médico. Ele faz a gente emagrecer quatro quilos em poucas semanas), casa nova (Acho jardim de inverno indispensável), decoração de Natal em Nova Iorque (vai ser uma beleza), piada preconceituosa (em Nova Iorque decerto vão dar um negro para cada criança branca acender, na janela, ao romper do Ano Bom”), construção de uma capela no jardim do asilo, família (Filho é bom porque distrai, Eu ficando sem empregada, já disse: restaurante, meus filhos.), carro, cabeleireiro, comentários presumivelmente definitivos (Povos atrasados não podem ser livres). O outro mudo, presente nas constatações da narradora a historiar um fato lamentável (morre um rapaz por falta de assistência médica e a mãe ao se desesperar e agredir o poder público é presa e, ao ser  solta, já não mais é dona de seu juízo perfeito) e de referências a cifras vergonhosas (80% das habitações em Belém são servidas por água de poço; em Fortaleza, 71%; em São Paulo, 50%), de constatações (somente as famílias que recebem mais de 4 salários mínimos conseguem equilibrar seus orçamentos. Um equilíbrio que desmorona a cada sarampo, a cada Dia das Mães).

            Entremeando-se a esses lugares comuns, enunciados pelos convivas ao redor da mesa e as informações da narradora sobre uma realidade que não convém mencionar, a enumeração de sobremesas que, também, delimitam cenário e figurantes: pavê de chocolate, pudim de laranja, baba de anjo, doce de leite.

             Estabelecida a narrativa num jogo do tempo (ora presente, ora passado) e dos diálogos (múltiplas vozes de indeterminados interlocutores) e conduzida pelo testemunho de uma narradora que se move entre a lucidez, o espanto e a inércia, Julieta de Godoy Ladeira cria em Entre Lôbo e cão (José Olympio, 1971), não apenas uma elaborado mundo ficcional, mas uma contundente crônica da mentalidade de sua época. E com a maestria que justifica ter sido considerada por Dyonélio Machado em entrevista concedida a Miguel de Almeida (Folha de São Paulo de 8 de novembro de 1981), a mais completa entre as romancistas atuais no Brasil.

domingo, 21 de dezembro de 2003

Charla de Natal

 

    O título do poema anuncia uma conversa, mas, na verdade, as palavras pertencem, apenas, ao emissor da mensagem. Cinco estrofes, quartetos de rimas perfeitas, inscritas num universo gauchesco de fronteira para se aproximar, a seu modo, de um tema universal: o nascimento de Cristo. No primeiro verso, o possessivo meu (meu Cristo) indica uma relação afetiva que se amplia no emprego de um inusual diminutivo, igualmente precedido do possessivo de primeira pessoa (meu Jesus-Cristinho). E permite esse ir chegando (que a expressão se não levar a mal, advoga), após longa jornada (que o adjetivo basteriado, classificando o cavalo, denuncia) e desmontar (implícito no verbo desencilho ), dando por assente a permissão para um ato já consumado.

            O segundo quarteto, repete a expressão afetiva, antecedendo-a, não mais, do cumprimento Buenas (simplificação do espanhol platino para “buenas tardes”, “buenas noches”), mas de um agradecimento, gracias (igualmente um termo espanhol, “obrigado”) pela acolhida na estrebaria. Palavra que remete a um espaço e a um momento determinado, o nascimento de Cristo, já anunciado na menção da palavra Estrela, grafada com letra maiúscula para reafirmar a sua condição de única, de guia e antecedida, também, (como estrebaria) do pronome de terceira pessoa a revelar um possuidor (da Estrela e da estrebaria) inegável que irá justificar o diminutivo Jesus-Cristinho, pois é ao Cristo recém nascido que as palavras se dirigem. Nas três estrofes que seguem, subjacentes, as figuras dos Reis Magos quando explica porque não oferta incenso, nem ouro, só a mirra. Nega-se a louvar o menino (Não vim, Jesús-Cristinho pra incensá-lo),  amparando-se na sua rústica e convicta altivez e se iguala ao cambará de cerno duro (nas três palavras, a expressão de resistência, de invencibilidade) e nas suas convicções e nas suas crenças: acredita no maléfico da vida e endeusa as mulheres e o cavalo. Se não lhe dá ouro é porque nada possui, chega de mãos vazias e só tem de seu, pessuelos magros, uma lasca de charque, avios de mate para suprir as necessidades e uma garrafa de cachaça como remédio, caso seja preciso, para o mal de amor. A mirra, sim, lhe traz. Feita de sua humanidade – pecados ou sina – que se ilumina no sofrimento de saber, de adivinhar a terrível morte que ao menino está adjudicada para saldar culpas alheias. Parte das quais – entendendo-se por homem marcado pelo pecado – ele assume ao compreender que essa morte será, também, por seus diabos, seus pecados.

            Remetendo à verdade bíblica, ainda que limitado no possessivo de primeira pessoa, meus diabos, o último verso sensibiliza pela imensidade do drama (a morte de um inocente) que não deixa de ser lamentado pelos cristãos. Porém, o que, no poema, se faz profundamente tocante é a ingênua, espontânea, solidariedade expressa no segundo quarteto, posso ajudá-lo, já que está sozinho, relacionada com o verso anterior, embora apeie com estas mãos vazias a significar que ninguém é tão pobre que nada possa oferecer. Seja, apenas, esse préstimo para minorar a solidão, sentimento inerente à condição dos homens e do qual Jesús Cristo, deus feito homem, e homem pobre, não foi poupado.

            Por esse inesperado trato do tema religioso, pelo inspirado das determinações de tempo e espaço e pela qualidade do ritmo, “Charla de Natal”, de Apparicio Silva Rillo, publicado em 19 de dezembro de 1981 no “Letras e Livros”, do Correio do Povo de Porto Alegre, se constitui , neste enraizar-se no linguajar campeiro do Rio Grande do Sul e neste perfil do gaúcho feito de altivez desmesurada, de crenças e descrenças e de um parco possuir, como tantas vezes, um momento privilegiado da sua produção poética.

 

 

Basteriado: o animal que sofreu escoriações causadas pelo atrito do lombilho com a pele .No poema, usado na forma próxima do espanhol, bastereado e não da forma portuguesa basteirado, da qual é uma variante. Boteja: ainda que a palavra conste como botelha no Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, com o significado de garrafa e tendo como origem, a palavra francesa bouteille, conforme consta no poema é a grafia de botella, termo espanhol que os platinos pronunciam com o som de jota português. Está registrado no Vocabulário de Regionalismo do Rio Grande do Sul, de Zeno e Rui Cardoso Nunes e não no Vocabulário Sul Riograndense, editado pela Globo de Porto Alegre o que indica um uso menos frequente ou mais recente.


Canha: grafado com nh e com o significado de cachaça, está registrado no Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda como oriundo do espanhol platino e como regionalismo do Rio Grande do Sul.


Charla: que no Aurélio consta como oriundo do italiano, significando tagarelice, é registrado pelos irmãos Cardoso Nunes como conversa, conforme é o uso dos platinos.

China: nos três dicionários já referidos, aparece com várias conotações, entre elas, a de mulher descendente de índios, mulher morena e mulher de vida fácil. No poema é usado, na acepção (além dessas referidas) que lhe conferem os platinos: mulher, no sentido carinhoso; mulher amada. (Diccionario del lenguaje campesino rioplatense, de Juan Carlos Guarnieri e Diccionario de Voces y expresiones argentinas, de Felix Coluccio).

 

domingo, 14 de dezembro de 2003

Mantônia

            Mantônia. Maria Antonia de Oliveira. Porque era assim que as crianças a chamavam. As crianças que ela criou e que não mais existem, cresceram, se transformando em adultos. Mantônia, minha pajem há quantos anos atrás?, se pergunta a narradora do romance de Julieta Godoy de Ladeira, Entre lobo e cão (Rio de Janeiro, José Olympio, 1971), entre outras perguntas, a buscar verdades. Cortou as amarras, deixando a família, e sua paisagem para viver longe e de maneira diversa. O que não a fez alcançar a maturidade e sim a deixou à mercê da tristeza, da solidão, da nostalgia do passado. Na mediocridade de seus dias sem rumo, se insinuam as lembranças e a menina, a adolescente, a recém-casada emergem do relato que avança e retrocede numa hábil combinação do que já passou com o que está a se passar. Entre as figuras que povoam o seu passado, Mantônia. Ela era o prato de comida, o doce, o sono e a espera, era o quarto, o jardim a casa, a infância.


            Presença que lhe aparece em breves imagens fugidias: Mantônia, chamando as crianças na hora do jantar, indo para a fila do pão ou do açúcar, decretando que a água fria fazia mal, banana com leite também. Mantônia, oferecendo os pastéis vendidos pelo italiano que as mães negavam; a imitar, paciente, o lobo, com o xale da avó, repetindo, sempre, a mesma história porque, outra, as crianças não queriam; atravessando, da porta ao altar, de joelhos, a igreja de Pirapora, a segurar uma vela da altura da narradora nos seus onze anos, para que ficasse curada do ouvido; dando-lhe, escondida atrás da porta de serviço, com a sua mão escura, um dinheiro de presente de casamento (É só uma lembrança, não repare. Que Nossa Senhora e o Sagrado Coração protejam você).  Ou na expressão de profundo, insubstituível, afeto enraizado nas emoções primeiras: depois dos braços roliços de Mantônia, nos primeiros anos, conheci poucos aconchegos, Mantônia e seu cheiro de leite. Mantônia, lugar de repouso, companhia certa quando, através da vidraça, esperava a mãe chegar. No presente, o desejo de se subtrair ao sofrimento de a encontrar diferente, magra, fraca, pisando mal, a voz dificultada pela boca torta de quem sofreu um derrame, sem o controle das mãos a segurar, com gestos estranhos, a xícara. A xícara que é prato para a sopa, terrina para o café, caneca para o leite. E, se mostra incapaz de esquecer essas palavras de Mantônia que expressam não apenas uma visão de mundo, mas a aceitação de um destino. Eu servi, diz Mantônia ao mencionar as crianças de que cuidou. Eu servi, responde quando lhe é perguntado o que fez durante a vida inteira. E sem o saber, inserindo-se no universo daqueles que da vida somente recebem deveres e trabalhos – alijados dos mínimos direitos, inclusive daquele de poder dispor de si mesmo – diante de outra pergunta, A senhora gostaria de ter feito alguma outra coisa além de apenas servir, laconicamente responde: Eu nunca pude escolher. E de outra feita: Nunca me ensinaram, nunca me disseram. No entanto, pensava em coisas bem simples, jogando no bicho, acreditando que um dia pegaria uma centena para ter um canto seu. Pequeno, onde coubessem uma cama e o oratório e, nos fundos, tivesse um pouco de terra para plantar couve, regar depois do sol, olhar de manhã cedo. Sempre esperando pela sorte grande, embora jamais comprasse um bilhete. Porque nunca teve dinheiro e nunca pode comprar o que era novo. Só uma vez, um casaco escuro, a prestação e que durou anos. Ganhava menos do que as outras empregadas, pois Era como se fosse da família, ajudara a cuidar das meninas. Se não quisessem ajudá-la, depois de velha e doente, ficaria na rua, como acontece a tantas que passaram a vida servindo.
            Velha, doente, fraca, respirando com esforço – arteriosclerose, reumatismo, pressão alta – fica sentada perto do armário da cozinha. Chora ao ganhar um presente, receber uma gentileza.
            No hospital, inconsciente por ter se excedido nos calmantes, a narradora ainda pergunta: Mantônia. Você está aí?.

domingo, 7 de dezembro de 2003

O morro

            Amélia mora no morro e desce para trabalhar em Copacabana. A patroa gosta de seu jeito, escuta as suas histórias e, assim, vai lhe conhecendo as vizinhas e a luta sem vitórias do cotidiano da pobreza no seu cenário degradado. Nele, e nos seus habitantes, se detém, por vezes, Entre lobo e cão, romance de Julieta de Godoy Ladeira, publicado, em 1971, pela José Olympio do Rio de Janeiro
   
         Uma voz feminina é dona do relato. O laço afetivo que irá estabelecendo com a nova empregada e a solidão em que vive a levam a visitá-la no dia do aniversário. Sobe o morro e se depara com o que já conhecia pelas palavras de Amélia: a rua sem calçamento, a venda, o portão de madeira, as plantas. Antes, o trajeto que, aos poucos, vai anunciando outra história urbana: as primeiras casas depois dos prédios, placas anunciando quartos para alugar, samambaias plantadas em latas, cimento batido, mato invadindo canteiros. E a subida das escadas, permitindo, então, ver o mar. Também, sentir o cheiro da favela e outro cenário feito da encosta violenta coberta de mato, sulcos arenosos, marcas de pé. Cantares errantes. Galinhas ciscando, gatos se distendendo, o porco fuçando o lixo, uma criatura desgrenhada empurrando a janela, outra escolhendo, num alguidar, restos de verdura, frutas de mau aspecto. Na casa de Amélia, a ingenuidade dos objetos, a boneca, vestida de tafetá, embrulhada em celofane por causa das moscas. Branca, cabelos louros as palmas bentas, a imagem de São Jorge, o rádio de cabeceira, a colcha de rendas forrada de seda salmão, tapete de retalhos. Nas vizinhas, a mesma submissão diante da vida. A mulher, cujo marido é bêbado e quebra as coisas; a outra, que sai para trabalhar e deixa as crianças trancadas em casa; a que se mata de lavar roupa para fora e, ainda, apanha do marido; ou a que é lavadeira e à noite, lhe roubam a roupa que estendeu para secar; a que deseja constituir família e bebe e fica triste e, finalmente, se suicida por estar cansada de viver; a que decide dar o filho antes de nascer porque não tem condições de criar. Evidente o descompasso dessas vidas – e da vida do homem que foi preso em 45 e desde então não arranja emprego, do que foi torturado pela polícia sem nunca ter se filiado a nenhum partido, do que não trabalha, do que se embebeda – com aquela que deveriam ter o direito de viver. Porém, só lhes resta aceitar viver em barracos, no morro, onde fazer bom tempo é importante, pois, se chove, a enxurrada cobre de terra as escadas, as pedras desmoronam e falta água e falta luz.

Ao entardecer, quase noite, depois do bolo e dos biscoitos, das balas enroladas em papel de seda, a descida, deixando para trás o rego de água, as plantas do quintal, o puxado da cozinha, os homens sem sapatos, sem camisa, a fazer a barba na frente de um espelho. O cheiro da favela, onda quente, como se exalada de um grande cadáver exposto que fica na roupa, nas mãos, na garganta, deixando a impressão de que nunca sairá, nenhum sabão o poderá tirar. Em Copacabana, a agitação de sempre com seus cinemas e seus bares, contraste com a realidade feita de sofrimentos – as inadaptações, as surpresas, as impossibilidades, o pasmo – que se repetem, sempre, para a gente que sobe o morro, no fim do dia, com seus desejos sempre mais distantes.

            Prisioneira dos liames com os quais se enredou para fugir daqueles que a tolhiam, alheia ao mundo dos seus e incapaz de se inserir no mundo dos outros, a narradora de Entre lobo e cão, atônita e rebelde, permanece entre dois mundos. Mas, sem inocência.

domingo, 30 de novembro de 2003

Amélia

            Três são as palavras, cada uma com a sua letra inicial maiúscula e com vida própria na qual não interfere a pontuação: enigmáticos títulos dos vinte e dois capítulos desse primeiro romance de Julieta de Godoy Ladeira, Entre lobo e cão (José Olympio, 1971) e que a revela uma escritora de imenso talento. Inicia-se com um episódio muito chão: a escolha de uma empregada doméstica entre as candidatas que foram se apresentando ao anúncio publicado. Nele, informando das condições de trabalho – apartamento pequeno, casal sem filhos – já se delineia algo da personagem que, no segundo parágrafo irá assumir o relato. Um relato denso em que as vozes se alternam, se entremeiam os tempos narrativos, mostrando, sem retoques, um universo feminino e o mundo pleno de contradições, espaço de uma trajetória desorientada, permeável a todas as agressões. Breves gestos, triviais cenas do cotidiano, enumeração de objetos, efêmeras imagens que a cidade oferece, escassas palavras, silêncios, lembranças e um testemunho lúcido sobre a sociedade com seus valores, na qual, ainda que à revelia, a dona da narrativa precisa viver.
 

            Entre os muitos personagens excepcionalmente construídos, destaca-se Amélia, cuja presença irá se instalar aos poucos. Primeiro, a sua voz arrastada, falando com cerimônia, seu olhar manso. Logo, a menção aos afazeres – fará o almoço, arrumará o apartamento e ao seu olhar conhecedor para a cozinha a perceber que a geladeira está nova, que os armários são espaçosos e forrados com papel alegre que as folhas das plantas estão tristes e amarelas. E, às opiniões que emite: o mar enferruja as coisas, é necessário cobrir a geladeira, as plantas foram vendidas sem raiz. E à promessa de trazer umas espadas-de-são Jorge e uns tinhorões que se desenvolvem dentro d’água. Páginas adiante, outros de seus traços (Pequena, mulata escura, rosto liso, olhos grandes muito abertos para as árvores da calçada, as folhas que caem, o cachorro doente no canto da rua [...]) e seu modo de vestir (saia lisa de seda pesada, blusa com enfeite e sem decote, bem lavada e com tanto uso que a cor mais viva está, apenas, perto das costuras) e de calçar (sapatos fechados, sem salto). E, entremeados à recordações da narradora, às suas dúvidas e inquietações dizendo de seu jeito humilde, de sua expressão doce e conformada, de seu sorriso e de sua voz mansa, o retrato vai se completando. Ao fazer o almoço, olha com ternura as folhas tenras do espinafre e se interessa em saber como a patroa prefere. Ao limpar a casa, o faz com cuidado: Quer bem os objetos como se fossem plantas, animais. Quando serve o chá, bem quente e com limão, se encosta no batente da porta e tirando um dos pés do sapato, vai encadeando as histórias. E se permite recriminar a patroa por não ter cuidado e abrir a geladeira com o corpo quente, por tomar café antes do banho, ou aconselhar que reforce as fechaduras, que não atenda qualquer um, seja um pedinte, seja uma oferta de tinturaria. Em sua serenidade, há desconfiança, susto, pressentimentos. Mas, ao falar das patroas para as quais já trabalhou, lhes elogia a bondade. E ao se referir ao homem com quem vive, o faz compreensivamente. Porque Amélia é o exemplo perfeito da Amélia que era mulher de verdade. Do Joaquim que trabalha como porteiro da noite de um edifício e lava os automóveis, sente pena e de manhã, antes de sair – O coitado chega morto de sono, vive se queixando – deixa o quarto arrumado e a comida pronta. Na convivência do cotidiano, vai revelando dessa relação feita só de perdas, continuação da outra, o ter emigrado para o Rio de Janeiro aos quinze anos, com a madrinha, sofrimento do qual não está livre, pois alimenta o desejo do retorno. Quando moça e usava tranças ao redor da cabeça, o corpo bem feito, e trabalhava no Leblon, Joaquim passava e assobiava. Ela acenava. Depois foram os presentes: biscoitos, corte de fazenda, pulseirinha de contas. Um cachorro. Também, um novo nome, Maria, que ela aceitou, dizendo não se importar: Mania, o que é que se vai fazer? E, assim, Maria, anônima, a compartilhar esse destino de mulher anônima, sem valor, conformada em aceitar uma vida a dois da qual os possíveis benefícios são devidos somente a um. No quarto alugado, no morro, Joaquim apenas dá o dinheiro para o arroz, o feijão, o bacalhau. Uma sobremesa, uma fruta – a gente então não gosta dessas coisas? – é Amélia quem compra. Quando ele juntou dinheiro foi para Portugal. Quis levar enxoval de luxo e presentes. Amélia mandou fazer-lhe um terno, bordou colchas com rendas ligando os quadrados de linho e ficou pagando o quarto. Só depois de um ano ele voltou, magro, estropiado, sem um presente e, ainda, trazendo um filho já homem, pois era casado em Portugal. Amélia, até que eles achassem trabalho, dava de comer aos dois, mesmo recebendo o desprezo do rapaz que a chamava de negra e exigia azeitonas e manteiga, cigarro, cerveja, graxa para os sapatos. Como cuidou do Joaquim doente, sempre carregada de frutas e doces que levava ao hospital, embora nada dele tenha recebido: Homem é assim mesmo a gente tem que passar por cima dessas coisas. Quando, por sua vez, foi operada e sem poder trabalhar, gastou todas as economias, dele não recebeu ajuda, uma visita, somente a pecha de estar na vadiagem.

            A narradora vai se deixando envolver pelas histórias que escuta, pelos percalços que dificultam a vida de Amélia, tenta ajudar. E seus olhos descobrem o morro e outras vidas que parecem somente ter o direito de serem maltratadas. Mas, suas poucas e mornas tentativas fracassam e, na verdade, nada pode fazer. Somente lhe resta a lucidez para constatar realidades que extrapolam o simples drama pessoal que é, apenas, conseqüência de outro maior: a ausência de cidadania. Algo que é possível perceber e que, no entanto, tem, estranhamente, permanecido distante do mundo ficcional brasileiro.

domingo, 23 de novembro de 2003

As árvores


Por vezes exalam perfumes, se vestem de cores. Ou, apenas, se justificam pelos pássaros que pousam em seus ramos. Em O Fiel e a pedra, mais do que se inscrever na paisagem, as árvores têm o significado que Bernardo e Teresa lhes conferem. Bernardo, passada a surpresa que os tiros de tocaia lhe causaram, caminha devagar e chega perto dos cajueiros que, floridos, liberavam um cheiro de resina de castanhas, levando à lembrança de sua mãe a tirar a casca dos cajus, pô-los num alguidar e depois, a secar ao sol. Teresa, ao chegar na casa, forte construção branca, de telhado quase negro, onde ela e o marido iriam morar, iniciando uma vida nova, viu as duas mangueiras raquíticas, já velhas, de poucas folhas e que pareciam jamais haver florido. No quintal, apenas uma groselheira e, mais distante, um grande laranjal. No topo da colina, podendo serem vistos da cozinha, os eucaliptos. Eram treze, ainda novos. Para Teresa, que logo os vira, significavam uma compensação: Oscilavam sob os ventos do entardecer. As sombras de alguns, desciam sobre o laranjal, animavam o quintal abandonado, faziam estremecer as paredes da cozinha. Os reflexos de ouro e violeta do sol davam às suas folhas, àquela hora, uma aparência de plumagem. Seus troncos macios brilhavam como de porcelana. Teresa, dentro do coração, teve o sentimento que nos meses que viriam, iria ter, nessas árvores que se pareciam com ela no talhe, companheiras fiéis. Elas iriam crescer e ela poderia saber, pela altura das folhas, o tempo de sua reclusão. Pois aquela não era sua casa e ali cumpriria, junto com Bernardo, apenas um tempo. O destinado a obterem meios para viver, alhures, melhor. Daí esse consolo na visão das árvores que encontra Teresa, um traço a completar-lhe o perfil de mulher que se adapta aos percalços da vida. 

            No mesmo ano em que recebia as provas de O Fiel e a pedra para corrigir, Osman Lins vivia a sua experiência na Europa. Seis meses em que, partindo, sempre, de Paris, onde foi bolsista da Aliança Francesa, viajou pela Itália, Espanha, Suíça, Bélgica, Holanda. Do que viu, deixou testemunho: Marinheiro de primeira viagem. Nele, breves cenas de rua, gente com as quais cruzou, rápidas descrições da paisagem no que ela tem de cambiante, de transitório. Assim, as árvores. Embora note, por vezes, somente a sua presença (poucas árvores numa paisagem do interior da França; uma fila de árvores cuja espécie desconhece, levando à pergunta que árvores são essas?) ou as reconhece (macieiras brancas, castanheiros, laranjeiras plantadas em tinas enormes; o salgueiro chorão a se inclinar romanticamente sobre as águas, ostentando seu verde claro e rutilante, como das esmeraldas) é, sobretudo, nas mudanças que sofrem com as estações que ele irá se fixar. Porque, ao chegar na Europa, em pleno inverno, encontrou essa realidade desconhecida para muitos habitantes dos trópicos: as árvores sem folhas. Que meses depois, veria reverdecerem, brilhando em pequenas folhas verdes, revestindo-se de uma penugem de verde ou de vermelho[...]. Causando-lhe a surpresa de descobrir, inesperadamente, essa renovação: Já não eram as árvores desnudas de janeiro ou de dois dias antes, ou da véspera. Envolvia-se uma espécie de nuvem rósea, os brotos estouravam, contavam-se aos milhares os pontos cor de vinho. Um coro vegetal, todas as árvores cantando, naquela tarde, a canção do fim de inverno. Julga compreender que, no mundo das incertezas, a primavera jamais falta ao encontro prometido, razão das festas com que, desde sempre, foi recebida pelos homens. Mas, principalmente, se trata, para Osman Lins de uma transformação que lhe aponta a passagem desse tempo que se escoou. No seu último passeio pelo parque de Luxemburgo, antes de voltar ao Brasil, ele constata: Deixava todas verdes aquelas árvores que, seis meses atrás, encontrara desnudas.

            Depois, em Portugal, já quase embarcando irá, ainda, registrar o transitório: das frutas, das flores e dos tons avermelhados nas vinhas, anunciando o outono.

 

domingo, 16 de novembro de 2003

Outra paisagem

            Havia terminado de escrever O fiel e a pedra e embarca para a Europa, como bolsista da Aliança Francesa, para uma permanência de seis meses que, mais tarde, afirmaria ter lhe sido marcante e, então, o assunto de Marinheiro de primeira viagem. Um livro que Osman Lins escreveu para se libertar das lembranças, fazer com que aquela pausa e seu encantamento passassem a fazer parte do passado. Nele evitou as descrições que podem ser encontradas em guias turísticos ou em enciclopédias e buscou fixar o transitório. Como disse numa entrevista, em 1963, quando o livro foi publicado: Do que não virá a repetir-se. E isto, o único, pode se constituir dos encontros que teve com Michel Butor, Robbe-Grillet, Jean Louis Barrault ou dos espetáculos de Edith Piaf, Juliette Greco, Edwige Feuillère, Léo Ferre que assistiu, de uma ou outra peripécia (dessas que soem acontecer aos turistas), das gravuras de Goya, dos quadros de Rousseau, do teatro de guignol, no Jardim de Luxemburgo, das estátuas de Rodin. E das notas sobre a paisagem.

            Na verdade, elas não são muitas. E, sempre, muito breves, apontando para o movimento, as cores e, por vezes, se entrelaçando às impressões do narrador. Este narrador que, no intuito de se poupar da intromissão do eu, diante de seus próprios olhos – assim o explica na mencionada entrevista a Esdras do Nascimento para A Tribuna do Rio de Janeiro – faz a narrativa na terceira pessoa. Mas, assim como a primeira pessoa do singular se permite, ainda que raramente, irromper no relato (acontece quando conta de suas andanças em busca do túmulo de Públio Virgílio Varo ou no texto em que sugere um certo restaurante de Amsterdam ou quando o narrador se torna presente ao empregar uma segunda pessoa plural, exigindo um interlocutor e, ainda, na seqüência em que o narrador concede voz à primeira pessoa), assim transparece, por momentos, embora disfarçada no outro, a presença desse eu que Osman Lins, por pudor (é a palavra que emprega) quer esconder.

            Em Capri, o vinho que bebe verte no seu coração, em grandes ondas, uma alegria que se derrama sobre a menina de tranças, os mastros dos navios, a fachada frutal da mercearia, a praia de pedrinhas, o reflexo do sol na proa dos veleiros, os peixes escondidos, as lâminas de sol no mar azul. E, espiam-no as casas de Sorrento, amontoadas umas sobre as outras, silenciosas, com as suas grandes arcadas senhoris. Fiel a sua determinação de fixar o passageiro, apenas uma expressão, uma curta frase lhe são suficientes para compor a imagem que deseja registrar. Ao viajar pela Holanda, as imagens se sucedem, muito rápidas e rápidas são as notas que originam: Roosendaal. Cortinas. Campos verdes, cisnes deslizando num lago, bois sob as macieiras. O primeiro moinho, rodeado de árvores como se lhes contasse uma história. Rotterdam, casas populares, panos coloridos nas janelas, secando ao sol, chaminés, guindastes, milhares de antenas de TV. Novamente o campo, outros moinhos. Delft, plantações em estufas, terraços com solenes frisos de cortinas, parecendo pálios. Haia, flores na estação, adeus, novas pastagens, Leiden, campos de tulipas amarelas, róseas, cor de laranja, canais, canais, Amsterdam. São impressões que se fixam no que não mais irá se repetir: cores, formas, detalhes, uma presença humana.

             Numa parede branca, os cachos de laranja cor de ouro; na paisagem, os campos verdes, as verdes planícies, um rio, os trigais, os girassóis, as flores cor de abóbora. Também, as cidades pardas sob a chuva, agudos campanários, casas de tijolo vermelho, telhados de ardósia, janelas brancas, vidraças esplendentes, cortinas rendadas. O mover-se de uma péniche, de alguém a vender rosas ou que, de mãos nos bolsos, olha o trem passar.

            Uma simplicidade no dizer que, vez ou outra, permite uma comparação: laranjas que pendem de pregos como de um altar pagão; por toda parte, em Volendam, gente de pincel na mão, pintando as esquadrias das casas. Como se o país fosse um navio. Ou, inesperadas combinações; gaivotas voando sobre um rebanho de ovelhas, vacas e bois deitados entre as tulipas, um cemitério no meio de uma plantação, vacas entre flores amarelas.

            Uma austeridade a cercear, sempre, as expansões da alma. Se expressas, deixam ver as sutilezas de um olhar para o mundo que percebe, como poucos, as nuanças do cenário que tem diante de si e o faz compreender, certa tarde, em Paris, que uma perspectiva, bela ao pôr do sol pode não o ser ao meio-dia, assim como as árvores desnudas pelo inverno podem revelar, em toda a sua elegância, um edifício em outras estações oculto pelo espessor da folhagem. E, também, que as mudanças, tão perfeitamente discerníveis – árvores nuas do inverno, árvores que reverdecem na primavera – anunciam o irreversível fluir do tempo. E o fluir do tempo nunca deixa de lhe estar presente – a alegria de pensar que, se quiser, poderá reter um pouco da manhã: estes barcos no rio, este casal sentado no café, o pombo que voou e foi pousar, suavemente, na torre de Saint Germain de Près – e, então, estar presente nos escritos que refazem seus dias na Europa. Que ele encerra num círculo ao fundir as primeiras impressões da viagem com as últimas para dar a impressão, ele explica, de que se trata de uma fase não inscrita no seguimento normal de sua vida.

            Fase que, passada, deixará lugar à vida por viver. Vida que o irá esperar do outro lado do Atlântico quando ele deixa para trás Paris, todas as suas lembranças para embarcar, assoviando, no avião que o leva de volta para casa.

domingo, 9 de novembro de 2003

Paisagem


            Densidade dramática no contínuo trato que deve ter Bernardo Vieira Cedro com o mundo medíocre e desprezível que o rodeia – luta ferrenha entre o se manter digno e norteado por princípios e o ceder à oferta de ganhos fáceis. Inusitado e profundo lirismo. Romance feito de trama simples – conflito entre o que tem posses e, conseqüentemente, poder e o desprovido de bens, mas cioso de uma absoluta integridade – que se enriquece nos embates travados por Bernardo consigo mesmo.

            O fiel e a pedra, publicado em 1961, na opinião de Massaud Moisés, expressa no texto que antecede o romance (edição da Summus, 1979) é, na trajetória de Osman Lins, um autêntico divisor de águas entre suas primeiras obras, O Visitante (1955) e Os gestos (1957) e as que mais tarde se lhe seguiram Nove, novena (1966) e Avalovara (1973). E nas palavras de quem, na mesma edição, lhe tece breve comentário, a observação de que, nesse romance, surgem descrições de ambientes exteriores não encontradas nos que o precederam.

 Na verdade, rápidas descrições da paisagem se inserem no relato. Repetidas vezes, se trata de um breve traço do narrador. Ao entrarem na cidade, Bernardo e sua mulher Teresa atravessam um parque de diversões: um vento agitava de leve as flâmulas de cor e por cima das barracas fechadas, dos carrosséis parados e desertos, a velha acácia floria contra o céu azul, os ramos cor-de-rosa pareciam cantar! Noutros, também um fixar-se no céu: o que se desanuvia depois da chuva, deixando brilhar as estrelas que, logo, dão lugar ao nascimento da manhã; o céu que, ainda, noturno, já se mostra de um azul mais frágil, mais polido e tênue, um azul vítreo. Igualmente fugaz, algo da paisagem em momentos que o personagem se dá conta do cenário que o rodeia. Teresa, pressentindo que, ao partir, sentiria saudades das verdes ondulações com suas claridades e sombras; Bernardo, olhando com desafogo a paisagem, os verdes tranquilos, o céu doce, o frio bueiro do engenho envolto numa luz dourada que se derramava sobre as telhas negras.

            Mas é, sobretudo, em dois recursos que se revela o domínio da narrativa que possui Osman Lins. Ao registrar as mudanças que ocorrem na paisagem – luz, movimentos, sons, cores, formas – o que aparece repetidas vezes, entrelaçado à percepção de Bernardo e de Teresa. Numa seqüência, Bernardo se lembra de uma tarde em que se sentiu calmo, em paz com seu destino: então, o animal em que montava bebia, balançando a cauda, as libélulas voavam, um casal de canários pousara nos arbustos e depois, voara, desaparecendo, cigarras cantavam e uma nuvem passara, mudara a cor das águas, avançara devagar, túrgida por um vento alto. Em outra, é Teresa que percebe as transformações pelas quais passa – ou segundo as horas ou segundo as épocas – a encosta próxima de sua casa e da certeza de que sempre a lembraria, cheia de névoa e tristeza nas manhãs de inverno, brilhante após a chuva, radiosa quando o sol nascia e tão bela nas tardes claras quando as sombras dos eucaliptos desciam lentamente a colina [...]. Pouco adiante, o narrador menciona a nuvem grande e cheia de vagar que passa diante do sol, o efêmero pousar de canários num ramo e o seu partir célere, duas setas amarelas afugentadas [...] e a emoção de Teresa quando, livre da nuvem, a luz voltou e ela viu as rosas: uma nascia e outra parecia cantar, as pétalas vermelhas desdobradas, tão farta em sua glória que o frágil caule pendia. Nas duas seqüências, diante do cenário feito de transitórias luzes e transitórias sombras, os personagens, repentinamente, têm consciência da felicidade plena que os invade e da tristeza que, imediata, irrompe para negar essa felicidade. Para Bernardo, uma faca a feri-lo no júbilo nascente, com tal violência e tanta rapidez, que a alegria ficara na ponta da lâmina, ainda viva, perdurável após o golpe. Para Teresa, ao olhar as rosas, o mundo esplendeu e ela sentiu-se também cheia de luz e alegre, soerguida numa onda muda que a houvesse arrebatado. Foi só um momento.

            E, muito hábil, a presença da paisagem, quando cenário para os atos dos homens e, principalmente, com a função de quebrar o ritmo da narrativa nos seus momentos de maior tensão. Como nas páginas finais do romance quando se enfrentam Bernardo Vieira Cedro e seu inimigo Nestor Benício para fazer o balanço na casa de comércio da qual era proprietário. Um diálogo difícil nas suas frases pequenas e incisivas se estabelece entre eles e, num crescendo, caminha para uma incontornável violência. Nestor Benício insiste na busca de uma definição, face as suas propostas inescrupulosas e deve, diante do silêncio do interlocutor, repetir o que dissera. Entre as duas interrogações, uma seqüência descritiva interrompe o fluir da ação: Cresciam as sombras. O claro chão do alpendre e o chão do pátio, verdes remotos, tudo se fechava, tendia para um negror de portas velhas. Na paisagem, como que nublada, naquela mútua infiltração e cores, terra e folhagem entretecendo-se, começando a fundir-se no tom pesado e baço do anoitecer, os homens quase imóveis destacavam-se, revestidos de um esplendor que os fazia mais sinistros, a luz em torno deles, lembrando esse fulgor mortal com que, em certos dias de chuva, um sol oculto endurece as saliências das nuvens. Vinham as sombras, marcavam as pregas das roupas, cavidades, rugas: e ombros, zigomas, dorsos das mãos, tudo fulgia como um brilho frio de arranhões no chumbo. Mais adiante, outra vez a proposta inescrupulosa, depreciando a plantação que estava a ser vendida e, entre ela -Dou duzentos! e a resposta -Por duzentos, prefiro não vender [...], a menção ao vento que agita a paisagem e que tendo passado a deixa imóvel: Na tarde de verão, houve como um ríspido vento de agosto, que agitou o bamburral, as árvores distantes, as bananeiras no córrego, o alpendre, deslizou pesado sobre as telhas. Um turbilhão de flocos voou das barrigudas gêmeas, girou suavemente em torno dos capangas. Passado o vento, a tarde pareceu mais dura e iníqua. Longe, contra o céu rosado, erguiam-se as mangueiras imóveis e nem as folhas dos bambus fremiam. Um mundo inteiriçado.

            Como que um paralelo com a ação que, na paisagem, se estava a incrustar: algo de violento e de passageiro antes de um retorno à imobilidade. Porém, o mundo dos homens não desfruta de lógicas nem de harmonias. Osman Lins, no desejo de esperanças, permitiu que, no seu relato, o degladiar-se, na certeza de bons motivos, tivesse algo de luminoso. Como luminosa foi a paisagem que os homens acompanhou.

domingo, 2 de novembro de 2003

Lembranças


Vinte anos se passaram desde que foi publicado, pela Martins Livreiro de Porto Alegre, O menino submerso, coletânea de vinte e dois sonetos (à qual se acrescem dez poemas), introduzidos por um breve texto: Fiquei para sempre com este ar de guri desconsolado / A olhar, a olhar o terreno baldio / Donde o circo partiu um dia antes...
 

            Na verdade, o guri desconsolado é esse menino submerso de um título que introduz a busca de Afif Jorge Simões Filho: a infância perdida. Porque, se os seus versos se detém no tempo que passa e na solidão, nas ausências e nos amores, ao longo deles se irá completar esse retrato que, acaso, pretendeu terminado. Mas, cujos traços se encontram nos cenários que inventa – um descampado de pedras, uma praia silenciosa e deserta, umas ladeiras de sonho – ou que a lembrança pontilha de tons luminosos: flor silvestre, ovelhas e balidos, paz campestre, cheiro bom de pastos florescidos, rumina o gado manso e distraído, olor casto de estábulo, prados floridos. E nos detalhes de um perfil: cabelos que embranquecem, olhar que se perde ou se cansa, mãos que ficam pálidas, dizem de um tempo que passou, de um ser solitário e em meio a muitas ausências que, na verdade, se entrega nas confissões doloridas, enleando-se em sentimentos que vivem na lembrança ou aspiram realizar-se. Os pais já não estão, os afetos e a velha casa não mais existem e as mulheres que amou, trilham outros caminhos. E os amores são feitos de anseios da presença feminina - Falta a tua presença ardente que resume / Todo o esplendor da vida e toda a primavera

- e do enlevo que ela pode oferecer.

            Embora pairem tristezas e melancolias em todos os sonetos, pois ao poeta ninguém escuta e  a solidão o tornou amargo e porque o seu canto  não é mais grito e a felicidade foi perdida, porque trança rugas o tempo tecedor é no “Soneto ante a tapera de meus pais” que se eleva, intensamente emocionado, o lamento sobre o que foi e não retorna. Um antes e um agora no conflito que o passar do tempo determina: o esboroar-se de um mundo (madeira podrida, triste alvenaria em decadência, extintos figurantes, pais distantes), num  mundo que continua a ser igual (são diversos os bois, mas o mugido / É o mesmo. O mesmo arroio entre amarilhos, no seu longo soluço enternecido  / o arvoredo alto...). Nesse mundo que existe e não existe, vencido pelo inevitável, o adulto a carregar dentro de si o eterno menino, o menino submerso que deseja a liberdade das lágrimas para chorar o quê a vida legislou: a perda da infância, a perda dos pais, a perda do primeiro ninho. Então, entre as lembranças do bem que passou e o presente, envolto no imutável e povoado de vazios, as certezas que os dois últimos versos enunciam: Que todas as moradas são exílios, / E aqui, onde eu não moro, é que é meu lar. E nesses versos se configuram a síntese perfeita de toda a emoção expressa nas estrofes anteriores e a obediência às leis da métrica tradicional que pede assim, numa expressão intocável, finalize o soneto.

            Em decassílabos, próprios do soneto clássico, “Soneto ante a tapera de meus pais” não transporta a rima para o segundo quarteto e nos tercetos as dispõe livremente, como o permite a estrutura do soneto moderno numa junção que, aliada ao domínio da palavra – reconhecido por Mario Quintana, Carlos Nejar e Eduardo Degrazia, membros da Comissão Julgadora que lhe concedeu o prêmio Apesul Revelação 78 –, justifica figurar o seu autor, um gaúcho de São Sepé, entre os sonetistas famosos da Literatura Brasileira, como bem o lembrou Carlos Reverbel ao assinar o prefácio de O menino submerso.

domingo, 26 de outubro de 2003

As invenções do dizer 4



Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. O segundo capítulo, “El segundo traslado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. No relato, se pontilham as hesitações expressas pela conjunção alternativa  que diluem as certezas dos homens da Conquista.
           

            No seu livro La novelística de Carlos Droguett (Madrid, Playor, 1983), Francisco A. Lomelí, no capítulo dedicado a El hombre que trasladaba las ciudades, diz que o escritor chileno, nesse livro, desenvolve duas correntes simbólicas: o significado da Conquista da América ibérica e a psique contraditória de Juan Núñez de Prado que, no romance, a representa, encarnando os sonhos desmedidos e a crueldade dos conquistadores.

            Lembranças, ações presentes, sonhos, impressões num todo movido ao ritmo das paixões a se expressar na voz de vários narradores que se incrustam nesse mundo caótico dos primeiros tempos do Continente, feito, sobretudo, de morte e de destruição. Daí, esse constante oscilar entre uma idéia e outra, entre um sentir e outro, entre uma ação e outra.

            Juan Núñez de Prado se vê diante das armas apontadas para ele, para protegê-lo ou para guardá-lo ou para matá-lo.  Seu olhar para os capitães, no desejo de que entendam que não estava nem a troçar nem a ameaçar, pode ser inocente ou aquoso. E seus atos, questionados pelo capelão por ter sido cruel ou injusto. Igualmente, seus capitães e seus frades – no fazer e desfazer da cidade – se submetem ao cambiante das coisas e das situações: Vasquez, a espada agarrada na mão, desejoso de se enfurecer em dois minutos para sair correndo atrás dos índios ou dos prisioneiros atados ou dos móveis antes de que os matassem ou amarrassem ou queimassem. Humarán, olhando os móveis quebrados ou novos, amontoados na rua como se não lhe interessassem em absoluto nem desejasse compra-los, desprezá-los ou despedaçá-los com as patas dos cavalos ou a ponta da espada [...]. O padre Carvajal a gritar friamente, como descobrindo uma destemperança, uma falta de cavalheirismo ou uma armadilha no trato que lhe era devido. E os soldados e os índios, por sua vez, sofrem a sina dos mais fracos e indefesos. Querendo ficar na casa, na cidade construída, eles, porém, chegam ou partem; ausentes, desaparecem os seus gritos de protesto ou explicação; adormecidos, o padre Carvajal lhes descobre uma febre ou um terror na escuridão; diante da ordem que não querem cumprir, deixam ver os olhos aterrorizados ou fatigados. Por vezes, são individualizados: um deles tem umas horríveis mãos de cigano ou aventureiro ou de bandido; outro, barba de berbere ou marroquino ou mudéjar ou turco; e  o que parecia zangado ou defraudado;  ainda,  o que respirava com cansaço ou com novo medo.  Este medo que é constante entre os índios: continuamente, bestas de carga, a levar nas costas os pedaços da cidade, há o que esmagado pela roupa ou pelo medo ou pela escuridão, ria sarcástico ou chorava de terror ou estranheza.        

             E no cenário das relações degradadas, estabelecidas com a chegada dos ibéricos, elas se expressam até mesmo pelo que é inanimado: viu brilhar os pés da cadeira na escuridão e caminhou até ela, a levantou e viu que havia outra, outra mais, todas em fila, colocadas de pé ou viradas, viradas pelo terror ou lufada de vento, pela urgência do terror ou da lufada de vento.

            Breves e incisivas, disseminadas no texto, essas expressões estampam intenções e sentimentos que as alternativas possíveis fazem oscilar: inspirado estratagema estilístico para expressar o que afirma, o que nega, o que duvida. Pois, assim, sinuoso e incerto, tresloucado nas certezas e nas crueldades o caminho dos ibéricos no Continente foi, outra vez, criado por Carlos Droguett.

 

domingo, 19 de outubro de 2003

As invenções do dizer 3


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir das Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes .O segundo capítulo, “El segundo traslado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no  lugar. No relato, o uso das comparações cumpre o desígnio de reafirmar nos símiles a conturbada alma dos homens e os seus atos.

 

            Há o trajeto dos homens e seus animais, que se adentram no Continente em busca de bens antes nunca possuídos. E o caminho das paixões, percorrido na alma de cada um. E, assim emergem, profusamente ricos, no texto de El hombre que trasladaba las ciudades  os matizes  da afetividade nos quais se inscrevem as comparações. Disseminadas no romance, se constroem em seqüências que não apenas retratam o ser humano e o desvelam como, na sua diversidade, reafirmam a inconfundível habilidade estilística de Carlos Droguett. Tomadas a esmo ao longo das páginas do segundo capítulo, “El segundo traslado”, o exame de cinqüenta delas, introduzidas pelo comparativo como, revela que, muitas vezes, o primeiro elemento da comparação é um capitão, soldados,  padres ou índios.

            Nomeado, o capitão Guevara, Cortés e Pizarro e Anton de Luna. O capitão parecia mais tranquilo e mais despreocupado como o homem que faz uma coisa e pensa em outra. E Cortés e Pizarro, são aqueles que não conheceram, afirma Juan Núñez de Prado, estes tremores, este suave desejo de ser bom e sanguinário como uma necessidade, como uma fatalidade que te alimenta. Anton de Luna, já morto, é retirado da forca por um dos padres e levado até a cova recém cavada: rodou sobre si mesmo e caiu de frente como se estivesse embriagado demais[...]. Mencionado antes ou depois da sequência comparativa que, no entanto, a ele se refere, o padre Carvajal parecia muito cansado, lançando, agora, seu cansaço como uma febre feia, como uma desolação infinita que não lhe correspondia conservar.  Ou sentindo-se muito sozinho, caminhou até o quarto e dormitou com pressa e aquilo era como se recém viesse chegando, como se acabasse de descer do cavalo e cair desmaiado no chão [...].

            Referidos apenas como esses anônimos que se diluem no meio de tantos, os soldados e os índios. Entre eles, o soldado que não queria abandonar a cidade e agredido pelos outros que o empurraram, caminhou como bêbado, mas não estava bêbado, tinha sede, desejos de beber vinho e dormitar agora e esquecer os golpes[...]. Ou, os temerosos de sofrer demais, de não serem capazes de suportar um terrível sofrimento e como o selvagem no fundo da caverna ou a criança no fundo da escuridão, gritam para espantar seu temor [...]. E os índios escondidos nas madeiras e nas roupas olhavam com seus rostos inexpressivos como se formassem parte da solidão, como se os golpes que haviam despedaçado os troncos, afundados os tetos e os forros e espalhado as portas e as arcas os tivessem salpicado também [...].

            Nessa repetição que norteia a estrutura do romance e é presença constante na sua expressão lingüística, o segundo elemento da comparação traça perfis, estados de alma, sofrimentos. O que irá ocorrer, igualmente, nas seqüências em que o primeiro elemento é um animal cujo padecer, no entanto, é devido aos humanos: os bois arrastando as carretas à beira do abismo fugindo com os focinhos cheios de babas, os olhos exorbitados e tranqüilos como ignorantes e torpes, sem saber como enfrentar a morte  e a desolação. O cão que pertencera a dois soldados assassinados dentro de casa por não aceitarem partir com a cidade, corria e voltava,  a uivar como se desculpando, como desejando acender esse curto uivo para iluminar seus amos.

Com exceção de estrelas, comparadas a pedregulhos sujos; das espadas nuas, feias, velhas, como se enrugando ao sol;  do ouro que brilhava e fugia sob a água como peixes; do sangue que brilhava ao sol como bandeira;  da cidade que crescia sem pressa como as árvores que rodeavam a praça;  do incêndio que tal como a água passa encima e limpa toda sujeira, em que ambos elementos são reais, em  outras comparações em que  o primeiro elemento designa seres inanimados, o segundo os vai humanizar: o sol no alto do céu como que olha para o capitão, como que adivinha o seu frio; as luzes se inclinavam para o outro lado como se tivessem desejado deixá-lo a sós, discutindo suas traições e suas tramóias com o padre Cedrón.

Enleando-se em pleonasmos, acrescentando-se adjetivos, mesclando uns e outros na busca do universo intrínseco desses homens que lhe povoam a ficção, Carlos Droguett  se renova sempre.Como um mago das palavras faz alguém evocar, nesse árido mundo das conquistas o feminino ausente e, então, esparso em nomes, não, porém na paixão que, num crescendo de brasa-braseiro- incêndio faz viver e nesse viver, se diluir: ai Juan, as noites mornas de primavera, as noites rangentes do verão quando o céu reluz como uma espaçosa brasa e a boca de Amparo ou Consuelo ou Assunção ou Rosário ou Claudia ou Marcela Paz está ardente e olhas para ela na treva luminosa, ves seu  colo, seu peito ardente como uma brasa, como um braseiro, como um incêndio alvo que te incorpora e te dissolve, Juan[...]      

domingo, 12 de outubro de 2003

As invenções do dizer 2


El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. O segundo capítulo, “El segundo traslado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Ações e gestos se cumprem outra vez e temores e dúvidas e certezas e sofrimentos. No relato, igualmente, expressões se repetem e significados se volvem mais intensos e de grande força poética.
           
            Em 1977, na Suíça, onde vivia como exilado político, Carlos Droguett disse a Francisco A. Lomeli, numa entrevista, que o revolucionário de um escritor é reescrever a História e falar de sua terra, contar a História que os historiadores não escreveram. Nos seus romances da Conquista, ele não inventa personagens nem episódios e em El hombre que trasladaba las ciudades, o terceiro da trilogia, o dilema de Juan Núñez de Prado – entregar a outro a cidade que fundara ou defendê-la como algo que lhe pertence –, registrado nas fontes históricas se adentra nos desejos e obsessões que o romance delineia: o turbilhão de sonhos e lutas em que ele e seus capitães e seus soldados se enredaram e o martírio que o perseguir esses sonhos representou. E se a paisagem com as árvores, as águas, os montes, o céu, as flores e com os animais, os cavalos, as ovelhas, as mulas, os cães e os pássaros se mostram, freqüentemente, plenos de vida, as relações entre os homens, por sua vez, se mostram, sempre cruéis. E submissas, sempre, aos renovados conflitos que no relato labiríntico do romance, muitas vezes, se reafirmam num dizer de vasto e engenhoso uso do pleonasmo.
            No segundo capítulo, “El segundo traslado”, eles são numerosos. Alguns, relacionados ao cenário em que se inscrevem as paixões dos homens onde o gado bramava, roçando as árvores e lançando sua gritaria lastimosa na direção do céu, esse céu cálido e cheio de fumaça e havia ruído, ruído de soldados que caminhavam sobre a madeira ruído de conversas, onde se escutavam vozes, queixas, murmúrios, rezas talvez, murmúrios misteriosos e fatais e viam-se flores, grandes vasos de flores, uma sacada inteira florida. Porém, principalmente, se referem ao estado dos prisioneiros (era tão velho, tão velho, estavam amarrados, amarrados firmemente, vira a cabeça triste, ligeiramente triste, do padre Carvajal (estava cansado, cansado), dos soldados (as cadeiras sem fundo, as cadeiras coxas como soldados, como pobres e tristes soldados que retornam da deserção, da traição, da forca [...]), dos feridos (tão quebrados, quebrados como as portas e janelas). Também, abundantes, os que se referem às relações entre os homens. Quando o capitão Miguel Ardiles, com seus soldados chega na cidade a meio desmanchar, Juan Núñez de Prado se espanta: viu as cordas que atavam os prisioneiros e viu Ardiles rir nervosamente, seus belos dentes agora carcomidos, seu belo riso franco e audaz agora atemorizado e incrédulo [...]. E a presença do verbo, repetido para duas realidades, ambas degradadas (homens amarrados, significando dissidências e um riso nervoso a indicar insegurança) e a presença do advérbio agora deixam mais cruel a transformação ocorrida, como cruel é o que diz: trago feridos e doentes, doentes e feridos te trago [...]. Palavras que repete, mudando-lhes o lugar na frase, a confirmar sofrimentos e a sua emoção que o narrador registra e que vai ao encontro da emoção de Juan Núñez de Prado: soluçava e ele soluçava[...]. Ou, quando um soldado, querendo defender o seu direito de ficar onde construíra a casa, enfrenta Juan Núñez de Prado ao constatar o possível anseio de procurar um apoio, no verbo agarrar: tens medo e te agarras a uma adaga, te agarras a teu medo para não rodar no abismo [...]. E, também, às convicções. Diz Vázquez ao padre Cedrón que o acusa de matar soldados: Não, padre, eu não os mato, os mata o vice rei e o rei também, e o vice rei é, além disso, sacerdote, os mata Deus e olha que Deus gosta da justiça molhada, espremo as folhas do antigo testamento e vejo que gotejam. Como gotejam tuas mãos, Vasquez, disse lentamente o padre, dando-lhe uma bofetada. O pleonasmo, nesse caso, se apresenta com o uso do verbo no fim da frase, enunciada por um interlocutor e a sua repetição na frase seguinte,  introduzida por uma comparação, pelo outro interlocutor e possuindo, então, sujeitos diferentes.
            Evidente, nestas seqüências, a capacidade inventiva do escritor chileno que se revela, e em profusão, no uso de pleonasmo atido a qualquer classe de palavra, seja ela um advérbio, um verbo, um pronome, uma preposição, um adjetivo ou um substantivo.
            Assim, nada mais que em relação a alguns substantivos e adjetivos, é fácil perceber que o pleonasmo se apresenta com dois substantivos justapostos (tinha a cara cheia de lágrimas e sangue, lágrimas e sangue do padre); um substantivo repetido, sendo, o segundo,  modificado por um adjetivo anteposto (o velho deve ser um malvado, um suave malvado); um adjetivo anteposto no primeiro deles e por dois, pospostos no segundo (com receosa ironia, uma ironia provisória e insegura); um substantivo e um adjetivo repetidos, tendo, entre eles, uma oração (é um homem bom, juro que é um homem bom); um substantivo e um adjetivo repetidos, mas para qualificar seres distintos (cavalos cansados, índios cansados, delgado sol, delgado medo), um adjetivo repetido, sendo, o segundo, modificado por um advérbio de modo (era evidente, era tristemente evidente); um adjetivo para completar o sentido de dois verbos distintos (despertavam nervosos e se limpavam nervosos do barro e do sangue).
            No romance em que se sucedem as noites e os dias no céu cambiante, em que o vento, a chuva, os ruídos, dos homens e dos animais, aparecem e tornam a aparecer, o uso do pleonasmo é, sem dúvida, parte desse repetir-se incessante, que o talento de Carlos Droguett torna cheio de  fascínio.