domingo, 2 de novembro de 2003

Lembranças


Vinte anos se passaram desde que foi publicado, pela Martins Livreiro de Porto Alegre, O menino submerso, coletânea de vinte e dois sonetos (à qual se acrescem dez poemas), introduzidos por um breve texto: Fiquei para sempre com este ar de guri desconsolado / A olhar, a olhar o terreno baldio / Donde o circo partiu um dia antes...
 

            Na verdade, o guri desconsolado é esse menino submerso de um título que introduz a busca de Afif Jorge Simões Filho: a infância perdida. Porque, se os seus versos se detém no tempo que passa e na solidão, nas ausências e nos amores, ao longo deles se irá completar esse retrato que, acaso, pretendeu terminado. Mas, cujos traços se encontram nos cenários que inventa – um descampado de pedras, uma praia silenciosa e deserta, umas ladeiras de sonho – ou que a lembrança pontilha de tons luminosos: flor silvestre, ovelhas e balidos, paz campestre, cheiro bom de pastos florescidos, rumina o gado manso e distraído, olor casto de estábulo, prados floridos. E nos detalhes de um perfil: cabelos que embranquecem, olhar que se perde ou se cansa, mãos que ficam pálidas, dizem de um tempo que passou, de um ser solitário e em meio a muitas ausências que, na verdade, se entrega nas confissões doloridas, enleando-se em sentimentos que vivem na lembrança ou aspiram realizar-se. Os pais já não estão, os afetos e a velha casa não mais existem e as mulheres que amou, trilham outros caminhos. E os amores são feitos de anseios da presença feminina - Falta a tua presença ardente que resume / Todo o esplendor da vida e toda a primavera

- e do enlevo que ela pode oferecer.

            Embora pairem tristezas e melancolias em todos os sonetos, pois ao poeta ninguém escuta e  a solidão o tornou amargo e porque o seu canto  não é mais grito e a felicidade foi perdida, porque trança rugas o tempo tecedor é no “Soneto ante a tapera de meus pais” que se eleva, intensamente emocionado, o lamento sobre o que foi e não retorna. Um antes e um agora no conflito que o passar do tempo determina: o esboroar-se de um mundo (madeira podrida, triste alvenaria em decadência, extintos figurantes, pais distantes), num  mundo que continua a ser igual (são diversos os bois, mas o mugido / É o mesmo. O mesmo arroio entre amarilhos, no seu longo soluço enternecido  / o arvoredo alto...). Nesse mundo que existe e não existe, vencido pelo inevitável, o adulto a carregar dentro de si o eterno menino, o menino submerso que deseja a liberdade das lágrimas para chorar o quê a vida legislou: a perda da infância, a perda dos pais, a perda do primeiro ninho. Então, entre as lembranças do bem que passou e o presente, envolto no imutável e povoado de vazios, as certezas que os dois últimos versos enunciam: Que todas as moradas são exílios, / E aqui, onde eu não moro, é que é meu lar. E nesses versos se configuram a síntese perfeita de toda a emoção expressa nas estrofes anteriores e a obediência às leis da métrica tradicional que pede assim, numa expressão intocável, finalize o soneto.

            Em decassílabos, próprios do soneto clássico, “Soneto ante a tapera de meus pais” não transporta a rima para o segundo quarteto e nos tercetos as dispõe livremente, como o permite a estrutura do soneto moderno numa junção que, aliada ao domínio da palavra – reconhecido por Mario Quintana, Carlos Nejar e Eduardo Degrazia, membros da Comissão Julgadora que lhe concedeu o prêmio Apesul Revelação 78 –, justifica figurar o seu autor, um gaúcho de São Sepé, entre os sonetistas famosos da Literatura Brasileira, como bem o lembrou Carlos Reverbel ao assinar o prefácio de O menino submerso.

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