domingo, 23 de novembro de 2003

As árvores


Por vezes exalam perfumes, se vestem de cores. Ou, apenas, se justificam pelos pássaros que pousam em seus ramos. Em O Fiel e a pedra, mais do que se inscrever na paisagem, as árvores têm o significado que Bernardo e Teresa lhes conferem. Bernardo, passada a surpresa que os tiros de tocaia lhe causaram, caminha devagar e chega perto dos cajueiros que, floridos, liberavam um cheiro de resina de castanhas, levando à lembrança de sua mãe a tirar a casca dos cajus, pô-los num alguidar e depois, a secar ao sol. Teresa, ao chegar na casa, forte construção branca, de telhado quase negro, onde ela e o marido iriam morar, iniciando uma vida nova, viu as duas mangueiras raquíticas, já velhas, de poucas folhas e que pareciam jamais haver florido. No quintal, apenas uma groselheira e, mais distante, um grande laranjal. No topo da colina, podendo serem vistos da cozinha, os eucaliptos. Eram treze, ainda novos. Para Teresa, que logo os vira, significavam uma compensação: Oscilavam sob os ventos do entardecer. As sombras de alguns, desciam sobre o laranjal, animavam o quintal abandonado, faziam estremecer as paredes da cozinha. Os reflexos de ouro e violeta do sol davam às suas folhas, àquela hora, uma aparência de plumagem. Seus troncos macios brilhavam como de porcelana. Teresa, dentro do coração, teve o sentimento que nos meses que viriam, iria ter, nessas árvores que se pareciam com ela no talhe, companheiras fiéis. Elas iriam crescer e ela poderia saber, pela altura das folhas, o tempo de sua reclusão. Pois aquela não era sua casa e ali cumpriria, junto com Bernardo, apenas um tempo. O destinado a obterem meios para viver, alhures, melhor. Daí esse consolo na visão das árvores que encontra Teresa, um traço a completar-lhe o perfil de mulher que se adapta aos percalços da vida. 

            No mesmo ano em que recebia as provas de O Fiel e a pedra para corrigir, Osman Lins vivia a sua experiência na Europa. Seis meses em que, partindo, sempre, de Paris, onde foi bolsista da Aliança Francesa, viajou pela Itália, Espanha, Suíça, Bélgica, Holanda. Do que viu, deixou testemunho: Marinheiro de primeira viagem. Nele, breves cenas de rua, gente com as quais cruzou, rápidas descrições da paisagem no que ela tem de cambiante, de transitório. Assim, as árvores. Embora note, por vezes, somente a sua presença (poucas árvores numa paisagem do interior da França; uma fila de árvores cuja espécie desconhece, levando à pergunta que árvores são essas?) ou as reconhece (macieiras brancas, castanheiros, laranjeiras plantadas em tinas enormes; o salgueiro chorão a se inclinar romanticamente sobre as águas, ostentando seu verde claro e rutilante, como das esmeraldas) é, sobretudo, nas mudanças que sofrem com as estações que ele irá se fixar. Porque, ao chegar na Europa, em pleno inverno, encontrou essa realidade desconhecida para muitos habitantes dos trópicos: as árvores sem folhas. Que meses depois, veria reverdecerem, brilhando em pequenas folhas verdes, revestindo-se de uma penugem de verde ou de vermelho[...]. Causando-lhe a surpresa de descobrir, inesperadamente, essa renovação: Já não eram as árvores desnudas de janeiro ou de dois dias antes, ou da véspera. Envolvia-se uma espécie de nuvem rósea, os brotos estouravam, contavam-se aos milhares os pontos cor de vinho. Um coro vegetal, todas as árvores cantando, naquela tarde, a canção do fim de inverno. Julga compreender que, no mundo das incertezas, a primavera jamais falta ao encontro prometido, razão das festas com que, desde sempre, foi recebida pelos homens. Mas, principalmente, se trata, para Osman Lins de uma transformação que lhe aponta a passagem desse tempo que se escoou. No seu último passeio pelo parque de Luxemburgo, antes de voltar ao Brasil, ele constata: Deixava todas verdes aquelas árvores que, seis meses atrás, encontrara desnudas.

            Depois, em Portugal, já quase embarcando irá, ainda, registrar o transitório: das frutas, das flores e dos tons avermelhados nas vinhas, anunciando o outono.

 

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