Entre
os muitos personagens excepcionalmente construídos, destaca-se Amélia, cuja
presença irá se instalar aos poucos. Primeiro, a sua voz arrastada, falando com cerimônia, seu olhar manso. Logo, a menção aos afazeres – fará o almoço, arrumará o apartamento
e ao seu olhar conhecedor para a cozinha a perceber que a geladeira está nova,
que os armários são espaçosos e forrados
com papel alegre que as folhas das plantas estão tristes e amarelas. E, às opiniões que emite: o mar enferruja as
coisas, é necessário cobrir a geladeira, as plantas foram vendidas sem raiz. E
à promessa de trazer umas espadas-de-são
Jorge e uns tinhorões que se desenvolvem dentro d’água. Páginas adiante,
outros de seus traços (Pequena, mulata
escura, rosto liso, olhos grandes muito abertos para as árvores da calçada,
as folhas que caem, o cachorro doente no canto da rua [...]) e seu modo de
vestir (saia lisa de seda pesada, blusa com enfeite e sem decote, bem lavada e
com tanto uso que a cor mais viva está, apenas, perto das costuras) e de calçar
(sapatos fechados, sem salto). E, entremeados à recordações da narradora, às
suas dúvidas e inquietações dizendo de seu jeito humilde, de sua expressão doce e conformada, de seu sorriso e de sua voz mansa, o retrato vai se
completando. Ao fazer o almoço, olha com
ternura as folhas tenras do espinafre e se interessa em saber como a patroa
prefere. Ao limpar a casa, o faz com cuidado: Quer bem os objetos como se fossem
plantas, animais. Quando serve o chá, bem quente e com limão, se encosta no
batente da porta e tirando um dos pés do sapato, vai encadeando as histórias. E
se permite recriminar a patroa por não ter cuidado e abrir a geladeira com o
corpo quente, por tomar café antes do banho, ou aconselhar que reforce as
fechaduras, que não atenda qualquer um, seja um pedinte, seja uma oferta de
tinturaria. Em sua serenidade, há desconfiança, susto, pressentimentos.
Mas, ao falar das patroas para as quais já trabalhou, lhes elogia a bondade. E
ao se referir ao homem com quem vive, o faz compreensivamente. Porque Amélia é
o exemplo perfeito da Amélia que era
mulher de verdade. Do Joaquim que
trabalha como porteiro da noite de um edifício e lava os automóveis, sente pena
e de manhã, antes de sair – O coitado
chega morto de sono, vive se
queixando – deixa o quarto arrumado e a comida pronta. Na convivência do
cotidiano, vai revelando dessa relação feita só de perdas, continuação da
outra, o ter emigrado para o Rio de Janeiro aos quinze anos, com a madrinha,
sofrimento do qual não está livre, pois alimenta o desejo do retorno. Quando
moça e usava tranças ao redor da cabeça, o
corpo bem feito, e trabalhava no Leblon, Joaquim passava e assobiava. Ela
acenava. Depois foram os presentes: biscoitos, corte de fazenda, pulseirinha de
contas. Um cachorro. Também, um novo nome, Maria, que ela aceitou, dizendo não
se importar: Mania, o que é que se vai
fazer? E, assim, Maria, anônima, a compartilhar esse destino de mulher
anônima, sem valor, conformada em aceitar uma vida a dois da qual os possíveis
benefícios são devidos somente a um. No quarto alugado, no morro, Joaquim
apenas dá o dinheiro para o arroz, o
feijão, o bacalhau. Uma sobremesa, uma fruta – a gente então não gosta dessas coisas? – é Amélia quem compra.
Quando ele juntou dinheiro foi para Portugal. Quis levar enxoval de luxo e presentes.
Amélia mandou fazer-lhe um terno, bordou colchas com rendas ligando os quadrados de linho e ficou pagando o quarto.
Só depois de um ano ele voltou, magro,
estropiado, sem um presente e, ainda, trazendo um filho já homem, pois era
casado em Portugal. Amélia, até que eles achassem trabalho, dava de comer aos
dois, mesmo recebendo o desprezo do rapaz que a chamava de negra e exigia
azeitonas e manteiga, cigarro, cerveja, graxa para os sapatos. Como cuidou do
Joaquim doente, sempre carregada de frutas e doces que levava ao hospital, embora
nada dele tenha recebido: Homem é assim
mesmo a gente tem que passar por cima
dessas coisas. Quando, por sua vez, foi operada e sem poder trabalhar,
gastou todas as economias, dele não recebeu ajuda, uma visita, somente a pecha
de estar na vadiagem.
A
narradora vai se deixando envolver pelas histórias que escuta, pelos percalços
que dificultam a vida de Amélia, tenta ajudar. E seus olhos descobrem o morro e
outras vidas que parecem somente ter o direito de serem maltratadas. Mas, suas
poucas e mornas tentativas fracassam e, na verdade, nada pode fazer. Somente
lhe resta a lucidez para constatar realidades que extrapolam o simples drama
pessoal que é, apenas, conseqüência de outro maior: a ausência de cidadania. Algo
que é possível perceber e que, no entanto, tem, estranhamente, permanecido
distante do mundo ficcional brasileiro.

Nenhum comentário:
Postar um comentário