domingo, 30 de novembro de 2003

Amélia

            Três são as palavras, cada uma com a sua letra inicial maiúscula e com vida própria na qual não interfere a pontuação: enigmáticos títulos dos vinte e dois capítulos desse primeiro romance de Julieta de Godoy Ladeira, Entre lobo e cão (José Olympio, 1971) e que a revela uma escritora de imenso talento. Inicia-se com um episódio muito chão: a escolha de uma empregada doméstica entre as candidatas que foram se apresentando ao anúncio publicado. Nele, informando das condições de trabalho – apartamento pequeno, casal sem filhos – já se delineia algo da personagem que, no segundo parágrafo irá assumir o relato. Um relato denso em que as vozes se alternam, se entremeiam os tempos narrativos, mostrando, sem retoques, um universo feminino e o mundo pleno de contradições, espaço de uma trajetória desorientada, permeável a todas as agressões. Breves gestos, triviais cenas do cotidiano, enumeração de objetos, efêmeras imagens que a cidade oferece, escassas palavras, silêncios, lembranças e um testemunho lúcido sobre a sociedade com seus valores, na qual, ainda que à revelia, a dona da narrativa precisa viver.
 

            Entre os muitos personagens excepcionalmente construídos, destaca-se Amélia, cuja presença irá se instalar aos poucos. Primeiro, a sua voz arrastada, falando com cerimônia, seu olhar manso. Logo, a menção aos afazeres – fará o almoço, arrumará o apartamento e ao seu olhar conhecedor para a cozinha a perceber que a geladeira está nova, que os armários são espaçosos e forrados com papel alegre que as folhas das plantas estão tristes e amarelas. E, às opiniões que emite: o mar enferruja as coisas, é necessário cobrir a geladeira, as plantas foram vendidas sem raiz. E à promessa de trazer umas espadas-de-são Jorge e uns tinhorões que se desenvolvem dentro d’água. Páginas adiante, outros de seus traços (Pequena, mulata escura, rosto liso, olhos grandes muito abertos para as árvores da calçada, as folhas que caem, o cachorro doente no canto da rua [...]) e seu modo de vestir (saia lisa de seda pesada, blusa com enfeite e sem decote, bem lavada e com tanto uso que a cor mais viva está, apenas, perto das costuras) e de calçar (sapatos fechados, sem salto). E, entremeados à recordações da narradora, às suas dúvidas e inquietações dizendo de seu jeito humilde, de sua expressão doce e conformada, de seu sorriso e de sua voz mansa, o retrato vai se completando. Ao fazer o almoço, olha com ternura as folhas tenras do espinafre e se interessa em saber como a patroa prefere. Ao limpar a casa, o faz com cuidado: Quer bem os objetos como se fossem plantas, animais. Quando serve o chá, bem quente e com limão, se encosta no batente da porta e tirando um dos pés do sapato, vai encadeando as histórias. E se permite recriminar a patroa por não ter cuidado e abrir a geladeira com o corpo quente, por tomar café antes do banho, ou aconselhar que reforce as fechaduras, que não atenda qualquer um, seja um pedinte, seja uma oferta de tinturaria. Em sua serenidade, há desconfiança, susto, pressentimentos. Mas, ao falar das patroas para as quais já trabalhou, lhes elogia a bondade. E ao se referir ao homem com quem vive, o faz compreensivamente. Porque Amélia é o exemplo perfeito da Amélia que era mulher de verdade. Do Joaquim que trabalha como porteiro da noite de um edifício e lava os automóveis, sente pena e de manhã, antes de sair – O coitado chega morto de sono, vive se queixando – deixa o quarto arrumado e a comida pronta. Na convivência do cotidiano, vai revelando dessa relação feita só de perdas, continuação da outra, o ter emigrado para o Rio de Janeiro aos quinze anos, com a madrinha, sofrimento do qual não está livre, pois alimenta o desejo do retorno. Quando moça e usava tranças ao redor da cabeça, o corpo bem feito, e trabalhava no Leblon, Joaquim passava e assobiava. Ela acenava. Depois foram os presentes: biscoitos, corte de fazenda, pulseirinha de contas. Um cachorro. Também, um novo nome, Maria, que ela aceitou, dizendo não se importar: Mania, o que é que se vai fazer? E, assim, Maria, anônima, a compartilhar esse destino de mulher anônima, sem valor, conformada em aceitar uma vida a dois da qual os possíveis benefícios são devidos somente a um. No quarto alugado, no morro, Joaquim apenas dá o dinheiro para o arroz, o feijão, o bacalhau. Uma sobremesa, uma fruta – a gente então não gosta dessas coisas? – é Amélia quem compra. Quando ele juntou dinheiro foi para Portugal. Quis levar enxoval de luxo e presentes. Amélia mandou fazer-lhe um terno, bordou colchas com rendas ligando os quadrados de linho e ficou pagando o quarto. Só depois de um ano ele voltou, magro, estropiado, sem um presente e, ainda, trazendo um filho já homem, pois era casado em Portugal. Amélia, até que eles achassem trabalho, dava de comer aos dois, mesmo recebendo o desprezo do rapaz que a chamava de negra e exigia azeitonas e manteiga, cigarro, cerveja, graxa para os sapatos. Como cuidou do Joaquim doente, sempre carregada de frutas e doces que levava ao hospital, embora nada dele tenha recebido: Homem é assim mesmo a gente tem que passar por cima dessas coisas. Quando, por sua vez, foi operada e sem poder trabalhar, gastou todas as economias, dele não recebeu ajuda, uma visita, somente a pecha de estar na vadiagem.

            A narradora vai se deixando envolver pelas histórias que escuta, pelos percalços que dificultam a vida de Amélia, tenta ajudar. E seus olhos descobrem o morro e outras vidas que parecem somente ter o direito de serem maltratadas. Mas, suas poucas e mornas tentativas fracassam e, na verdade, nada pode fazer. Somente lhe resta a lucidez para constatar realidades que extrapolam o simples drama pessoal que é, apenas, conseqüência de outro maior: a ausência de cidadania. Algo que é possível perceber e que, no entanto, tem, estranhamente, permanecido distante do mundo ficcional brasileiro.

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